A importância da representatividade nas HQs!

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A importância da representatividade nas HQs!

Por Gus Fiaux

A ideia central é discutir o porquê da incorporação de personagens que representem minorias nos quadrinhos. Como é de entendimento geral, nos últimos anos, as editoras tem prezado por uma ampliação de personagens femininos, não-caucasianos e LGBT fortes e em papeis centrais nas tramas.

Além disso, outros heróis clássicos, com um histórico já pré-determinado acabaram passando por mudanças – sejam étnicas (Flash Wally West), em relação à sexualidade (Lanterna Verde Alan Scott, Homem de Gelo) ou então passando o manto para personagens de gênero oposto (A nova Thor, Capitã Marvel).

Isso, contudo, tem levantado constante ira em fãs que defendem uma “estagnação” do personagem do modo que foi criado. Quando os cinemas e a TV se propõem a modificar certos personagens, como em casos recentes como o Tocha Humana do mais recente filme do Quarteto Fantástico, a ideia do Punho de Ferro asiático ou até mesmo, fugindo desse âmbito midiático, a Hermione na peça de Harry Potter, a ira aumenta. Mas afinal… por quê?

Antes de começarmos a discutir a matéria em si, tenha em mente que, vindo de mim, o autor da matéria, não espere outra postura além da defesa na inclusão igualitária de minorias, então se você espera o contrário e não está aberto ao debate com argumentação, é melhor que saia enquanto ainda dá tempo. Caso discorde, mas queira dar sua opinião de forma racional, pode ter certeza que iremos ter um interessante debate nos comentários. E por favor, lembrem-se. Defender igualdade independe de postura ideológica política. Ainda que os movimentos sociais estejam intrinsecamente ligados com um ramo ideológico, não significa que apenas esse ramo defenda a luta. Então sem rotulações políticas e comentários ignorantes. Que tal? Mas enfim, comecemos:

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A importância da representatividade

Afinal de contas, qual a necessidade de representatividade nos quadrinhos e nas mídias relacionadas aos super-heróis? Bem, antes disso, temos que analisar o impacto dos super-heróis na vida das pessoas, de forma geral. Temos três filmes de heróis entre as dez maiores bilheterias do mundo. Quadrinhos nunca venderam tanto, e a mídia aprendeu a se beneficiar disso. O "gênero" se popularizou de tal forma que a sociedade precisou se adaptar ao mundo dos heróis. A prova viva disso é esse mesmo site. Portais de notícias focados apenas em super-heróis eram raríssimos no passado, e atualmente, eles estão em voga entre os mais acessados da internet. O mundo aprendeu o que é o peso de um manto heroico.

Para a maior parte dos leitores, adultos, isso conta apenas como entretenimento puro. Como uma catarse momentânea que, fechado o gibi ou encerrado o filme, passou. Porém, na mentalidade do leitor mais novo, é uma representação do cotidiano. Quem, quando criança, nunca sonhou em ser convidado para o Instituto Xavier, e poder descobrir seus poderes mutantes? Quem nunca quis viver combatendo o crime como o Batman? Quem nunca quis ter os poderes do Homem-Aranha. Lembro bem, até hoje, do meu primeiro contato com super-heróis. Se deu em Homem-Aranha 2. Saí da sala de cinema me sentindo o próprio Peter Parker, desejando arduamente os poderes daquele que viria a ser um dos maiores heróis da minha infância e juventude. Porém, ao mesmo tempo, sempre quis um herói com quem pudesse me relacionar. Isso só seria possível quase uma década depois, quando eu iria descobrir os Jovens Vingadores, em um especial lançado no Brasil. Ali, conheci o Wiccano. Além de compartilhar dos mesmos gostos - e características, em relação à sexualidade e ao uso do seu codinome (que condiz com a minha religião) -, via nele um herói admirável, e uma representação minha.

Mas afinal, de que importa representar um escritor qualquer de um site de notícias de super-heróis? Bem, então tentemos lembrar de um exemplo mais importante. Gail Simone é uma célebre roteirista de quadrinhos, com fase marcante na Mulher Maravilha e na Batgirl. Nesse ano de 2015, quando Yvonne Craig, a Batgirl da série do Batman de 1966 faleceu, Simone veio a escrever um magnífico texto em seu tumblr, a respeito da inspiração que ela tomou na atriz e sua personagem. Confira um pequeno trecho: "Um dia tive de ir à casa de um primo e acabei assistindo uma reprise do seriado do Batman. Eu nunca tinha visto. E então vi Yvonne Craig como Batgirl e minha mentalidade de garotinha ficou encantada. Não é exagero dizer que minha vida foi mudada para sempre. Uma garota que conseguia detonar bandidos, que era bibliotecária, que possuía CABELOS RUIVOS, que era inteligente, durona e andava de moto. Eu não posso nem descrever o que aquilo significou para mim. Eu já disse isso várias vezes, mas depois de ver Yvonne Craig na televisão, eu passei a ficar mais confiante na minha escola. Eu falava um pouco mais alto na sala de aula, e quando valentões aterrorizavam outras crianças, eu os enfrentava. Por causa da Batgirl. Por causa de Yvonne Craig."

Então, se formos analisar de forma geral, essa é a importância da representatividade nos quadrinhos de super-heróis. Você empodera pessoas. Dá a elas o direito de sonhar, e consegue mudar a vida delas através disso. Observar essas narrativas é um modo de encarar a si mesmo como alguém confiante. Porém, a partir do momento em que nós observamos a nossa confiança como algo natural, começamos a menosprezá-la. Dessa forma, muitos leitores passaram a dizer que você se sentir representado por um herói é loucura. É asneira. É coisa de gente com problema. Bem, é essa gente com problema que dá bilhões de dólares todos os anos para as indústrias. É essa gente que compra e lê quadrinhos como algo a mais que diversão. São essas pessoas que estão sempre comentando, aqui. Algumas, com nicknames de super-heróis. Então, dizer que representatividade não é importante é, no mínimo, uma ignorância.

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Contexto histórico

Quadrinhos de super-heróis sempre tiveram uma ideia um tanto mais progressista do que algumas outras mídias. Ainda assim, não deixou de ser um choque quando o mundo viu um dos primeiros super-heróis negros - o Pantera Negra - surgir. Ou então, quando mulheres fortes como a Mulher-Maravilha davam as caras e pregavam mensagens igualitárias. E o que dizer de toda polêmica envolvendo o Estrela Polar, que seria o primeiro super-herói homossexual assumido? Tudo isso colaborou para um encaixe maior desse tipo de personagem nos quadrinhos. Porém, engana-se quem pensa que isso foi regra, e não exceção.

O racismo sempre esteve presente nos quadrinhos de super-heróis. Em revistas que contavam histórias a respeito da Segunda Guerra Mundial, não era difícil ver o Superman convidando as pessoas a "bater em um japa". Ou então o Capitão América raivoso atrás de um "macaco amarelo". A disputa que deveria ser ideológica a respeito da participação do Japão na SGM se torna uma troca de xingamentos e estereótipos raciais. Negros então, não podemos sequer mencionar sem lembrar de Young Allies e um coadjuvante africano secundário, com traços caricatos e uma tendência a falar errado e servir de alívio cômico, apenas por ser negro. Ou então o Falcão, importante por ser o primeiro herói afro-americano dos quadrinhos, que sempre teve uma moral interessante, até decidirem contar que, em suas origens, ele era um cafetão, algo típico dos estereótipos raciais negros nas décadas de 70 e 80, e que perdura até hoje.

Mulheres então sofreram com uma ótica distorcida sexista. A Mulher Invisível, o membro mais poderoso do Quarteto Fantástico, sempre era vista como donzela em perigo, e era raro passar mais de uma edição sem que ela tivesse que ser salva pelos seus bravos e destemidos companheiros heroicos. A Mulher-Maravilha, por sua vez, na Era de Ouro, um ícone desbravador igualitário, perdia toda a força se fosse segurada... por um homem. A partir daqui, você desmistifica a ideia da mulher forte e resume ela a um mero atributo para mostrar o poder do homem. E também temos, é claro, a questão das fantasias, que discutiremos mais à frente.

Por sua vez, LGBT nem sempre foram os heróis da história. Quando não eram coadjuvantes cômicos e estereotipados - a famosa figura dos sissies -, eram figuras relacionadas diretamente ao vírus da AIDS, como se fosse uma constante necessária na vida de um homossexual portar o HIV, e é curioso notar que, pegue como exemplo um famoso arco de histórias do Hulk na década de 90, em que os gays portadores da doença eram vilões dissimulados, que pretendiam infectar o Hulk apenas por prazer. O próprio Estrela Polar, antes de ser revelado como gay era visto com eterna desconfiança a respeito do vírus. Sempre houve um desserviço e uma estereotipagem absurda na representação das minorias.

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Falta de representatividade

Século XXI. Novo cenário. Progresso, mas problemas similares. Ainda temos polêmicas todos os anos a respeito de desenhistas exagerando na sensualidade de heroínas, apenas para agrado do público feminino. Volta e meia encontramos personagens étnicos não-caucasianos, como latinos, sendo tratados majoritariamente como traficantes de drogas, e LGBTs fixados num mundo plástico e sem realidade.

Aí se faz presente a falta da representatividade. Um paradoxo verbal que, na realidade, indica como as coisas são feitas para relacionar o papel do dominante e do dominado. Quadrinhos nunca estiveram tão em voga, mas por que temos nichos específicos? Por que não abrigar a diversidade de forma igualitária. Bem, vamos lá.

Estima-se que a população global seja aproximadamente igualitária, tratando-se dos gêneros binários masculino e feminino. Em uma pesquisa recente feita com 24 milhões de habitantes dos EUA, todos leitores frequentes de quadrinhos, 46,7% pertencem ao público feminino. Porém, se analisamos a leva de títulos solo da All-New, All-Different Marvel, apenas 15 títulos, dentro de 50 (ou seja, 30%) são protagonizados por mulheres. Nas revistas de equipe, recebemos um aumento das heroínas, o que é ótimo, mas longe de ser suficiente.

Na DC, analisando 23 títulos solo entre os atuais da linha DC YOU, apenas 7 representam personagens femininas, dentre os quais os principais são Batgirl, Canário Negro e Mulher-Maravilha. Personagens negros e LGBT então representam uma minoria ainda menor dentro desse contexto completo.

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Bastidores

A questão da representatividade vai além dos quadrinhos, e também toca em quem os escreve. Ainda é pequena a proporção de minorias encarregadas de escrever quadrinhos. E todos que estão na indústria sabem da dificuldade que é trazer ideias novas para um mercado já consolidado e que sempre se apega aos personagens de forma idolátrica.

As editoras tem aberto um espaço para que os autores possam falar de suas experiências e exemplificá-las através de seus personagens. Dessa forma, não é surpresa que G. Willow Wilson, uma mulher muçulmana, seja responsável por criar uma das maiores heroínas da década, a Miss Marvel.

Além disso, podemos citar, por exemplo, Steve Orlando comandando o título do Meia-Noite. Um escritor homossexual para um personagem homossexual, e que funciona muito bem nesse âmbito. E isso faz parte de toda a ideia do autor a respeito do tratamento igualitário das pessoas LGBT: "No dia a dia, queremos ser tratados igualitariamente como todo mundo, então, nos quadrinhos, eu tento escrever do modo mais natural possível."

No cinema, vemos a questão dos bastidores ainda com desconfiança. Enquanto a TV - que sempre foi mais progressista na representação de minorias, e podemos afirmar isso apenas olhando para Jessica Jones e Supergirl, ambas produzidas por mulheres e com diretoras por trás dos episódios -, o cinema ainda caminha devagar. Enquanto tivemos Lexi Alexander comandando Justiceiro em Zona de Guerra, levará oito anos para vermos outro filme de super-herói dirigido por uma mulher - Mulher-Maravilha.

Analisando o currículo da Marvel Studios, até hoje não tivemos um único diretor negro em suas produções. O estúdio procura trazer um cineasta agora em Pantera Negra... mas por que só agora? Por que não trazer cineastas diversificados para fazer filmes independente do personagem representados neles? Porque essa é uma verdadeira constante, e se tornou tão normal nos quadrinhos e no cinema. O homem branco pode escrever/dirigir um filme sobre mulheres e negros, mas a mulher e o negro só podem ficar presos em seu nicho. Nas HQs, isso está sendo quebrado lentamente. Porém, nos filmes, qualquer fuga da regra é exceção.

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"Mas por que não criam novos?"

Tire um momento do seu dia para procurar os títulos atuais da Marvel e da DC Comics. Posso apostar que, na maior parte dos títulos, encontrará heróis criados entre a década de 60 e 70. E isso se deve a uma "falha" grave dos quadrinhos de super-heróis: seus personagens não envelhecem e morrem. E consequentemente, eles se tornam ícones e lendas e são amados pelo público.

Okay, vivemos isso diariamente. Olhe e verá o Homem-Aranha em todos os lugares, assim como o Batman. Eles se tornaram marcas. Se tornaram objetos de consumo. E fixaram-se, estagnando a indústria de quadrinhos.

Quando uma mudança é feita em um personagem clássico, como o Homem de Gelo ou o Wally West, ela se dá por uma razão clara: é um herói com apelo, ou que faz parte de uma equipe com visibilidade, e que vende. Por conta disso, é a melhor forma de inserir diversidade nos quadrinhos, de modo que os leitores possam ter contato com as diferenças.

A verdade é que até mesmo personagens que fazem parte da maioria, quando criados tardiamente, tem maior dificuldade para fazer sucesso entre os leitores, porque os ícones sempre terão maior reconhecimento e maior visibilidade. Você não vê, por aí, um filme do Miles Morales, porque ele nunca será tão importante quanto o Peter Parker. Você não cria um filme da nova Thor - mantendo nomes em segredo, pois a revista ainda não foi publicada no Brasil -, porque quem realmente faz sucesso é o Filho de Odin.

Quando falamos de minorias, então, é ainda mais difícil medir a ideia. Se a ideia é trazer visibilidade e equilibrar com os quadrinhos atuais, isso significa cancelar títulos extra do Homem-Aranha ou do Batman para dar espaço a personagens LGBT, heroínas e negros. E sendo sincero, você cresce lendo Batman. Vai deixar de comprar a revista dele para comprar a de um personagem gay? Vai chiar se cancelarem uma extra para colocarem essa no lugar? As respostas são bem óbvias.

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O olhar do desfavorecido

Contudo, ainda temos problemas graves. A maioria representativa - que nem sempre representa uma maioria quantitativa - ainda resiste à incorporação de novos personagens. E se a minoria reclama de uma representação negativa, é "mimimi". É puro "vitimismo". Afinal, tudo está ótimo, não é mesmo?

Não. Não mesmo. O favorecido precisa entender que tudo que ele compreende como certo vem de uma ótica criada por pessoas iguais a ele e, portanto, monopolizada por um grupo seleto de pessoas. Com o tempo e a abertura da arte, vemos que as outras pessoas - os que, historicamente, foram desfavorecidos pela representação - também tem um lugar enquanto apreciadores e leitores de tal arte, e por conta disso, precisa-se desconstruir a visão única do dominador e passar a trazer a visão do até então dominado, para que ambos possam coexistir numa comunidade horizontal em vez de vertical.

Complicado demais? Deixe-me exemplificar. Muitos falam a respeito das roupas curtas e hipersexualizadas em heroínas serem um ideal machista. Para o dominante, que consome o material e não se põe no local do dominado, é besteira. Contudo, ele esquece que o desenho não foi feito para dar visibilidade ou agradar o dominado, ainda que se trate de uma representação do mesmo. Trata-se de algo feito para lhe agradar. Dessa forma, a visão se inverte e o público enxerga uma heroína não como alguém poderoso e com importância, mas sim uma representação fetichista e inferior da mulher em relação ao homem.

Isso é melhor explicado por Laura Mulvey. Uma teórica do cinema, cujos estudos foram incorporados em outras áreas, Mulvey escreveu, em um estudo chamado chamado "Visual and Other Pleasures", evidenciando o conceito de sexismo quando a mulher passa a ser objeto do prazer visual de um homem. Para que isso se desconstrua, é necessário estabelecer uma relação de equidade entre o visual e quem lê.

E para quem diz que herói malhados e com roupa colada são feitos para o prazer visual da mulher... bem, vocês estão meio errados. Pegue o Namor, que é o herói com trajes mais "provocativos" que conhecemos. Suas origens datam de abril de 1939, um período em que quadrinhos eram feitos apenas para meninos. A ideia do corpo malhado e visual é feito para estabelecer um padrão estético do que é o homem másculo. Portanto, por incrível que pareça, também é uma faceta do machismo.

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Quadrinhos são luta sim!

Novamente, temos limitado a ideia dos quadrinhos de super-heróis a uma visão adulta. Para a maioria de nós, quadrinhos não tem qualquer valor além do entretenimento rápido e simplificado. Porém, isso não retrata, de modo algum, a realidade. Muitos dizem que quadrinhos não são estruturas "ideais" para a propagação das ideias de igualdade e a luta pelos direitos civis de minorias, contudo, isso é bem errôneo.

Por ser um meio que afeta tantas pessoas e mexe na base da sociedade - crianças e adolescentes -, os quadrinhos são, ao lado de desenhos e programas para toda a família, melhores meios de propagação de debates de assuntos polêmicos da sociedade.

Por exemplo, na década de 70, Stan Lee ajudou não apenas a derrubar a censura das HQs, mas também levantou um gigantesco debate a respeito do uso de LSD depois de escrever um arco de 3 partes na revista do Homem-Aranha, explanando o abuso de drogas de Harry Osborn e consequente overdose. Seus X-Men eram uma clara referência ás lutas enfrentadas, especialmente por negros e mulheres na década de 60, ainda mais Xavier e Magneto sendo claramente inspirados por Martin Luther King e Malcolm X.

Atualmente, a Miss Marvel de G. Willow Wilson traz outra luta interessante: a batalha contra o preconceito islâmico. E pode parecer diferente, mas em nada muda de uma Guerra Civil, por exemplo, onde debatemos a política de até onde o governo deve interferir na vida dos cidadãos.

Dessa forma, dizer que quadrinhos não são um recurso para luta é, no mínimo, ignorante. Quadrinhos sempre foram uma aproximação da realidade utilizando-se de seres fantásticos para criar ideologias e ajudar a formar uma personalidade moral.

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Abertura ao diferente

Além disso, temos que notar uma coisa que pode indicar intolerância nos discursos contra a inclusão de minorias nos quadrinhos. Quando alguém fala "não precisamos de quadrinhos com gays" ou "Odeio quando mudam os personagens só para agradar minorias", as pessoas não se dão conta que isso é uma forma de desprezo à diferença não apenas nos quadrinhos, mas também na vida real.

Vivemos, segundo Baudrillard, no mundo do simulacro. Isso significa que ficção e realidade caminham tão próximas que, em um determinado momento, elas se tornam a mesma coisa. A luta de um personagem passa a ser a luta de um grupo. Da mesma forma que o Capitão América enfrentava os nazistas na Segunda Guerra Mundial, seus leitores viviam o perigo e ameaças de ataques constantes e sabiam como era necessário combatê-lo.

A luta entre conservadores e liberais, nos quadrinhos, é um simulacro da luta na vida real. A inclusão de novos personagens representa a inclusão das minorias na sociedade, de forma igualitária, sem servir apenas como capacho dos "dominantes". A partir do momento em que rejeitamos a inclusão de personagens, estamos nos colocando em figuras antagonistas, e a partir daí, barramos a ideia de progresso.

Progresso esse que, sim, não deve vir apenas como um espaço vazio, mas para mostrar, principalmente para os leitores base - e todos aqueles que persistem em anos de leitura (os fãs de longa data) que a diversidade existe. É através do entretenimento que convivemos com pessoas com lutas diferentes, com personalidades diferentes. E ainda assim, é a partir daí que vemos esses personagens - simulacros de pessoas - e podemos experimentar um pouco de suas dores. De seus problemas. Dessa forma, arte se inspira na vida, e vida se inspira na arte.

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Mudanças e indignação seletiva

Bem, é sempre comum vermos pessoas com argumentos do tipo "mudar etnia/sexualidade/gênero é mudar a personalidade de um herói. Por conta disso, é inválido e deve ser combatido". Porém, esquecemos de um pequeno detalhe: os personagens, bem como nós, possuem uma vida própria e mudam de ideia e personalidade a todo instante. Nós temos uma construção de pensamento que sempre é feita e refeita.

Desde que Stan Lee assumiu as rédeas das principais revistas da Marvel, na década de 60, heróis deixaram de ser deuses inalcançáveis e se tornar humanizáveis. Você se sente na pele de um herói porque tem muito em comum com ele. Isso é facilmente observável no louvor recebido pelo Homem-Aranha. Era um personagem que tinha relação íntima com o público, e por conta disso, fazia sucesso. Desde então, se preza por algo mais próximo da realidade: heróis que passem pelos problemas que seres humanos normais. Problemas emocionais. Família. Contas para pagar. Isso por si só provocou extrema mudança no desenvolvimento de cada personagem.

O Superman deixou de ser um ser perfeito, e passou a ser um homem ainda aprendendo a lidar com seu dom genético divino. O Capitão América, símbolo da moral inebriante americana, se tornou um homem fora de seu tempo, com dúvidas e problemas. O Homem de Ferro, representante do conhecimento e da ciência ilimitados, se viu vítima do alcoolismo.

Tudo resultado de mudanças extremas na personalidade de um herói. E quer momentos ainda mais curiosos e mais extremos? Doutor Octopus assume o corpo do Homem-Aranha e passa a seguir uma linha moral. Hal Jordan se torna maligno, assume a identidade de Parallax e assassina milhões. Há quem reclame? Obviamente. Mas logo que uma revista é lançada e a qualidade é boa, por que as pessoas esquecem de tamanha mudança na personalidade de um herói, mas sempre lembrarão o James Howlett de X-Treme X-Men como o "Wolverine gay que pega o Hércules", e isso sempre será ruim, independente da qualidade das histórias?

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Afinal, nada muda

É fácil ver pessoas que negam o modelo de humanização dos personagens e dizem buscar apenas o suprassumo da ação e do entretenimento de super-heróis. Se esse é o caso, então pra que reclamar tanto de quando uma "mudança" é feita em relação a um personagem clássico ou a introdução de novos representantes de minorias.

Vamos por partes. Esse é um resumido manual do porquê essas alterações não são relevantes para quem continua buscando leitura de quadrinhos pelo entretenimento - e também não altera em nada a personalidade de um herói específico tanto quanto ele se tornar vilão ou alcoólatra. Para isso, ilustraremos três casos em moda atualmente: Wally West, a Capitã Marvel e o Homem de Gelo.

No caso de Wally, a troca da etnia é facilmente justificada. É um novo universo, onde coisas novas aconteceram. Da mesma forma que, aqui, a Mulher-Maravilha é filha de Zeus, Wally é negro. E não há nada de errado nisso. A não ser que você queira criticar todas as mudanças dos Novos 52. Se não, se torna um tanto hipócrita e preconceituoso reclamar de uma coisa e fechar os olhos para outras. O mesmo pode ser dito a respeito do Tocha Humana do filme do Quarteto Fantástico. Ele pertence à Terra-TRN554, como catalogado pelo próprio banco de dados da Marvel. E isso pode ser dito a respeito de qualquer adaptação cinematográfica, uma vez que ela não é extensão dos quadrinhos, e sim um modo alternativo de ver suas histórias.

Quanto à Capitã Marvel, pouco precisa ser dito. O manto do Capitão Marvel original - morto há muitos anos - passou para Carol Danvers. Ele reteve sua personalidade, e ela continuou com a dela. Não há para que reclamar da mudança. O mesmo a ser dito a respeito da nova Thor.

Quanto ao Homem de Gelo, temos uma questão interessante. No dia a dia, conhecemos várias pessoas e ouvimos várias histórias. É comum conhecer um amigo, ou conhecido que, depois de anos tentando namorar mulheres, se descobre homossexual, ou até mesmo bi. É uma característica normal da sexualidade humana. E às vezes, essa construção se dá de modo repentino. Esse foi o choque do Homem de Gelo. No caso de Alan Scott, podemos enquadrar no mesmo exemplo citado para Wally West. Novo universo, novos personagens.

Com isso tudo, espero ter ilustrado a importância da representatividade em quadrinhos de heróis. Por se tratarem de bases de entretenimento na sociedade e por buscarem uma semelhança com a realidade, eles tem procurado investir, majoritariamente, na aceitação de diferenças e na representatividade individual dentro do coletivo. Você não precisa concordar com os argumentos colocados em questão, afinal, é do debate das divergências que se constrói conhecimento e se educa. Fiquem dispostos a replicar e contra-argumentar nos comentários, mas cuidado com os discursos intolerantes e fabricados. O primeiro passo para desconstruir o preconceito, seja qual for, é reconhecê-lo.