Crítica – Zona de Interesse explora a brutalidade do estado de alheamento

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Crítica – Zona de Interesse explora a brutalidade do estado de alheamento

Por Jaqueline Sousa

Estar alheio a algo ou a alguém pode ter diversos significados. Distante. Estranho. Indiferente. Desconhecido. É estar em um estado de abstração que pode até ser confundido com liberdade, no sentido de que há uma sensação de conforto em relação ao que se desconhece. Estar nessa zona é tão cômodo e conveniente para quem a habita que é como se um véu de alienação pairasse sobre a cabeça, excluindo qualquer chance de um despertar.

É nesse espaço turvo e cinzento que Zona de Interesse, o novo filme do diretor Jonathan Glazer (Sob a Pele), explora as atrocidades cometidas no Holocausto, durante a Segunda Guerra Mundial. Mas o longa-metragem estrelado por Sandra Hüller (Anatomia de uma Queda) e Christian Friedel (13 Minutos) vai muito além do que o gênero encabeçado por obras como A Lista de Schindler (1993) e A Vida é Bela (1997) costuma abordar, já que traz uma visão da maldade humana de maneira tão banalizada que chega a provocar enjoo, deixando um gosto amargo na boca assim que os créditos sobem na tela.

Ficha técnica

Título: Zona de Interesse

 

Direção: Jonathan Glazer

 

Roteiro: Jonathan Glazer

 

Data de lançamento: 15 de fevereiro de 2024

 

País de origem: Estados Unidos da América, Reino Unido e Polônia

 

Duração: 1h 45min

 

Sinopse: Rudolf Höss, o comandante de Auschwitz, e sua esposa Hedwig, desfrutam de uma vida aparentemente bucólica em uma casa com um jardim ao lado do campo de concentração.

Pôster de Zona de Interesse.

O mal nosso de cada dia

Em meio a uma atmosfera bucólica e de aparente ingenuidade, a família Höss desfruta da calmaria e do conforto de uma casa com um belíssimo jardim nos fundos, local onde uma piscina e flores encantadoras garantem a alegria e a segurança das crianças. É nesse cenário confortável que Rudolf (Christian Friedel), um comandante de Auschwitz, e sua esposa Hedwig (Sandra Hüller) lutam para construir um lar para os filhos, sem se darem conta de que do outro lado do muro um campo de concentração tortura e mata judeus diariamente.

Por meio de uma direção contemplativa e até mesmo “distanciada” de Jonathan Glazer, Zona de Interesse existe em um espaço de contrastes. Seja na própria trama, que explora o estado de alheamento da vida pacífica de uma família que fecha os olhos para os horrores que acontecem do outro lado da calçada, ou na pesada e sufocante trilha sonora de Mica Levi (Sob a Pele, Jackie), que entra em conflito com o cenário bucólico e com ares românticos dos jardins dos Höss nos raros momentos em que aparece, o filme respira contradições ao evidenciar sutilmente como tudo aquilo que está no extracampo também pode influenciar o universo milimetricamente organizado de uma mise-en-scéne.

Zona de Interesse acompanha rotina de família nazista que vive ao lado de um campo de concentração.

O que Zona de Interesse faz magistralmente sob o comando de Glazer é expor os horrores de uma guerra brutal sem fazer o mínimo de esforço para expor o que existe por trás do muro. Ainda assim, talvez seja o longa que mais se aproxima de Noite e Neblina (1956), documentário do diretor Alain Resnais (Hiroshima, Meu Amor) que reflete sobre os horrores de Auschwitz ao registrar locais abandonados do campo, assim como a vida de judeus prisioneiros que eram submetidos a todo tido de tortura no local.

Mesmo que Noite e Neblina seja mais gráfico e expositivo do que Zona de Interesse (e exista em um formato diferente, claro), o filme de Jonathan Glazer consegue alcançar, ainda que por meio de entrelinhas ou pela maneira como o enquadramento de uma cena deixa (ou não) transparecer os ecos dessa brutalidade, o mesmo estado de horror que o documentário de Resnais expõe ao se perguntar a todo momento em que mãos estaria a responsabilidade por atos tão cruéis e hediondos.

“Quem é o responsável, então?”, questiona a narração apática do ator Michel Bouquet em Noite e Neblina, citando comandantes e oficiais que participaram do genocídio e que se dizem livres de responsabilidade pelo Holocausto. Quem se responsabiliza pelas milhões de mortes de judeus, se muitos fecharam os olhos para os horrores da guerra e, assim como a família nazista de Zona de Interesse, decidiram ignorar o que estava acontecendo do lado de fora de suas vidas pacatas e confortáveis?

Mesmo ouvindo os gritos de judeus assassinados e olhando para a fumaça que sai das chaminés, os Höss vivem alheios ao horror.

É caminhando por essas vias estreitas e vertiginosas que Zona de Interesse nocauteia o espectador, fazendo-o refletir sobre uma época sombria da história que precisa ser lembrada constantemente para que ela jamais caia no esquecimento. A câmera de Glazer, sempre contemplativa, faz um recorte do dia a dia dos Höss, enquanto mostra, quase de maneira imperceptível, o que acontece do outro lado do belo jardim que a Hedwig de Sandra Hüller tanto se orgulha, seja pela fumaça cinzenta saindo das chaminés do campo no fundo do quadro, ou pelos gritos sufocados daqueles que foram dizimados pelo nazismo.

A banalização do horror

A banalização do horror, o silenciamento de gritos e a naturalização de ações desumanas são aspectos evidenciados a todo instante em Zona de Interesse. Através da normalidade da vida da família Höss, o filme de Jonathan Glazer usa as conversas na cozinha, os diálogos em meio às sombras do quarto e a atmosfera idílica de uma vida de fingida perfeição para escancarar a brutalidade do ato de seguir com a simplicidade da rotina à medida que pessoas são cruelmente assassinadas do outro lado da rua.

A zona que interessa aos Höss está dentro do universo construído por eles mesmos (que também é impulsionado por uma ideologia fascista) e não no que acontece dentro dos portões do campo de concentração que mata judeus a cada novo minuto. Confortáveis em seus jardins bucólicos e indiferentes ao sofrimento causado pelo nazismo, a família encara as chaminés sangrentas como se estivesse anestesiada. Nada do que existe para além dos muros interessa a eles.

Filme de Jonathan Glazer explora a banalização do horror.

Glazer, que além de dirigir também roteirizou o filme com base no livro homônimo do escritor Martin Amis, consegue transmitir essa dormência e alienação com enquadramentos que, embora pareçam esconder o terror de Auschwitz, revelam a violência de tais atos sem mostrá-la graficamente. Tudo é construído para perpetuar a normalidade daquela família, como a sequência em que Hedwig se recusa a deixar a casa quando Rudolph é transferido de seu posto no campo de concentração para um escritório em Berlim.

Incapaz de enxergar além do próprio nariz, a personagem vivida pela brilhante Sandra Hüller demonstra ali como os horrores da natureza humana encontram conforto no desconhecimento – ou na indiferença – da dor que causam. Para ela, nada mais importa do que o conforto de sua família, ou as flores que crescem em seu jardim. Não há humanidade ou empatia com o que acontece por trás de seu muro: tudo se resume a um egoísmo e alheamento que a fazem colocar a cabeça no travesseiro à noite sem maiores preocupações. Nem mesmo os gritos de horror de judeus assassinados a sangue frio é capaz de tirá-la de seu próprio Éden.

Sandra Hüller vive esposa de comandante de Auschwitz em Zona de Interesse.

Esse entorpecimento diante da dor alheia é algo que Jonathan Glazer sabe como representar com sutileza, conforme mostrou em Sob a Pele (2013), último filme lançado por ele antes de Zona de Interesse, onde acompanhamos Scarlett Johansson interpretando um alienígena que é confrontada pelo peso da humanidade à medida que seduz homens solitários para satisfazer os desejos de sua espécie.

Ambos destacam a ausência (ou a redescoberta também, no caso de Sob a Pele) da empatia, mas Zona de Interesse faz um trabalho ainda mais incisivo ao colocar em evidência as consequências de se estar apático ao outro e de como estar alheio ao que acontece ao seu redor pode revelar suas entranhas mais profundas. Assim, ao falar sobre o passado, o filme nos faz abrir os olhos para o presente e ainda nos permite imaginar como o futuro pode ser, transparecendo como um mundo sem empatia pode gerar as maiores atrocidades já vistas pelo ser humano.

Zona de Interesse é denso, difícil e muitas vezes sufocante. Os contrastes estabelecidos pelo comando de Jonathan Glazer colocam em conflito o bucolismo fingido dos Höss em meio aos horrores de Auschwitz, que são embalados por uma trilha sonora tão assustadora que é possível sentir um nó se formando no meio da garganta. No final de tudo, o que fica é a imagem de uma tela opaca, que por longos milésimos amedronta mais do que qualquer tipo de monstro fantástico por definir exatamente a marca da crueldade humana.

Nota: 5 de 5.

Zona de Interesse estreia no dia 15 de fevereiro nos cinemas brasileiros.

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