Crítica – Duna: Parte 2 repete apatia visual do antecessor para refletir sobre a construção de uma lenda messiânica

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Crítica – Duna: Parte 2 repete apatia visual do antecessor para refletir sobre a construção de uma lenda messiânica

Por Jaqueline Sousa

Na primeira cena de Duna (1984), David Lynch (Cidade dos Sonhos) usa a Princesa Irulan de Virginia Madsen (O Mistério de Candyman) para iniciar sua adaptação da obra clássica de Frank Herbert com um monólogo simples e direto que expõe, em pouco mais de dois minutos, a própria premissa da história. Não muito longe disso, Denis Villeneuve (A Chegada) abre seu Duna: Parte 2 com uma narração da mesma personagem, agora vivida por Florence Pugh (Oppenheimer, Midsommar), para nos lembrar da destruição da Casa Atreides e os mistérios que ainda cercam o ocorrido.

São propostas que ressaltam a diferença entre as abordagens de adaptações de uma mesma obra: enquanto Lynch segue por um caminho mais imaginativo e quase “bobo”, Villeneuve traz uma visão mais realista e dramática que, pelo bem ou pelo mal, faz com que Duna (2021) se destaque com seu teor autoral em meio ao marasmo apático da indústria de blockbusters da atualidade. Em Duna: Parte 2, esse feito se repete em uma escala ainda maior, mas o peso mecânico, burocrático e esterilizado das imagens de Villeneuve acaba se sobrepondo ao fator humano da coisa mais uma vez.

Ficha técnica

Título: Duna – Parte 2

 

Direção: Denis Villeneuve

 

Roteiro: Denis Villeneuve e Jon Spaihts

 

Data de lançamento: 29 de fevereiro de 2024

 

País de origem: Estados Unidos da América e Canadá

 

Duração: 2h 46min

 

Sinopse: A jornada mítica de Paul Atreides enquanto ele se une a Chani e aos Fremen em uma guerra de vingança contra os conspiradores que destruíram sua família. Diante de uma escolha entre o amor de sua vida e o destino do universo conhecido, ele se esforça para evitar um futuro terrível que somente ele pode prever.

Pôster de Duna: Parte 2.

O poder do deserto

Longe daquilo que costumava chamar de lar, Paul Atreides (Timothée Chalamet) agora encara as armadilhas do deserto para encontrar seu próprio destino. Ao lado da mãe, Lady Jessica (Rebecca Ferguson), o jovem se junta à Chani (Zendaya) e aos Fremen para travar uma batalha em busca de vingança contra aqueles que destruíram sua família, sem imaginar que, para isso, ele terá que assumir uma posição de liderança que beira ao misticismo para tentar evitar um futuro devastador.

À primeira vista, a premissa de Duna: Parte 2 parece antecipar um desenvolvimento enérgico e satisfatório à medida que Paul Atreides se aproxima de sua tão desejada vingança. Em luto pela morte do pai e pela perda da vida que conhecia antes de Arrakis, o jovem agora passa a ser assombrado com mais intensidade pela profecia que pode designá-lo como o aguardado messias que libertará o povo do planeta arenoso dos anos e mais anos de opressão.

É exatamente esse conflito interno de Paul Atreides que impulsiona a narrativa da sequência de Duna. Partindo do ponto que o filme de 2021 nos deixa, o capítulo dois explora a mitologia da saga criada por Frank Herbert com maior veemência, adicionando personagens e conceitos sobre a construção de um mito até ele se tornar uma verdade, seja ela fabricada ou não. Afinal, a grande questão aqui não é se esse messias realmente existe, mas o que Paul, aquele que se diz tão hesitante em assumir a liderança, faz com esse conhecimento.

Paul Atreides busca vingança enquanto lida com seu futuro predestinado em Duna: Parte 2.

Nesse ponto, Duna: Parte 2 consegue ser mais efetivo e preciso do que o primeiro filme foi. Isso porque se o primeiro capítulo falha em construir qualquer tipo de conexão com aquilo que é apresentado, já que opta por colocar seu foco apenas na escala, o segundo é relativamente mais competente em expor suas ideias, como as críticas ao fundamentalismo religioso ou a antecipação para uma guerra que pode libertar os Fremen da opressão.

Existem aqui diversas nuances que exploram as consequências da construção de uma lenda e como o poder pode corromper até mesmo aquele que se diz tão humano e empático, mesmo que o filme não faça nenhum adendo inovador às temáticas que aborda. Por tais aspectos, a sequência de Duna realmente se sobressai ao primeiro, muito mais pelos questionamentos que levanta do que pela tão adorada força das imagens que Villeneuve tanto preza.

É inegável que o cineasta consegue ser extremamente competente em seu ofício quando falamos sobre a maneira como conta visualmente suas histórias. A Chegada (2016) é um ótimo exemplo de como Villeneuve consegue usar o poder imagético para humanizar uma narrativa, sem deixar de lado uma excelência técnica que quase não se vê em uma Hollywood cada vez mais recheada de filmes genéricos e esquecíveis. Porém, o oposto acontece com Duna.

Embora seja mais efetivo que o primeiro, Duna: Parte 2 repete apatia visual de seu antecessor.

Sem entrar na briga entre obra original versus adaptação, há algo muito incômodo na visão que Villeneuve traz para a obra de Frank Herbert. Desde o primeiro filme, existe uma apatia e um distanciamento em sua abordagem que transformam a jornada de Paul Atreides em algo enfadonho e superficial. Não há força nas imagens porque elas são roboticamente construídas apenas pelo prazer estético. Combine isso a um roteiro burocrático que o resultado parte para um campo tão mecânico que a única sensação provocada é de vazio.

Por mais que Duna: Parte 2 consiga escapar pelas brechas de cair totalmente nesse vazio imagético, ainda assim Villeneuve demonstra certas limitações que prejudicam o desenvolvimento da história e até mesmo a conexão com a jornada de Paul Atreides. A segunda parte tem uma construção de mundo mais poderosa do o primeiro, especialmente na maneira como o diretor consegue se aproveitar da vastidão do deserto de Arrakis, por exemplo, para posicionar seus personagens, mas Villeneuve insiste em se camuflar por trás de tecnicidades que, mesmo sendo visualmente impressionantes, seguem bastante protocolares.

Assim, ao prezar pelo enquadramento perfeito, Villeneuve gera um afastamento que afeta até mesmo a maneira como nos relacionamos com os personagens, que acabam reféns de um universo esterilizado. Isso acontece até mesmo nas sequências de ação que, embora realmente estejam presentes na Parte 2 com uma maior intensidade, nunca parecem atingir um clímax satisfatório. É quase como se o cineasta tivesse medo de sujar as próprias mãos, optando por higienizar todo e qualquer escopo de seu trabalho apenas para “manter a pose”.

O messias de Duna

Há um momento em Duna: Parte 2 que é possível sentir de maneira palpável a mudança que ocorre em Paul Atreides quando ele decide abraçar seu título de messias. O momento é a culminação de incertezas e receios do próprio protagonista, que entra em conflito com seu futuro predestinado, fortemente endossado pela mãe, a partir de sua relação com Chani e o amor que desenvolve por ela.

Zendaya ganha mais destaque para mostrar a força de Chani no segundo filme de Duna.

Talvez esse seja o único instante da segunda parte em que é possível sentir alguma coisa por Paul, já que ele assume uma posição tão passiva na narrativa que chega a ser incômodo. Não que Timothée Chalamet consiga transparecer a aura heroica por trás do protagonista com maestria (infelizmente, o ator não consegue convencer como a figura do “herói” da história), mas pouco é feito narrativamente falando para que o jovem Atreides realmente se sobressaia em meio aos conflitos apresentados pelo filme.

Isso é feito apenas por meio de Lady Jessica e Chani, ambas brilhantemente interpretadas por Rebecca Ferguson (Missão: Impossível), que sabe aproveitar o silêncio como ninguém na Parte 2, e Zendaya (Euphoria), que finalmente conquista um merecido espaço na sequência para criar uma personagem repleta de nuances. Quando o filme falha em fazer com que Paul Atreides seja um protagonista ativo, as duas “saem ao resgate”, tornando-se ainda mais interessantes do que o próprio messias.

Rebecca Ferguson faz performance assustadoramente impactante de Lady Jessica em Duna: Parte 2.

Nem mesmo em sua grande luta contra o Feyd-Rautha Harkonnen de Austin Butler (Elvis), um assassino psicopata que se beneficia de uma performance ousada do ator, Paul Atreides parece estar presente. Muito disso se dá a partir da combinação entre a ausência de carisma de Chalamet – e, veja bem, isso não é desmerecer a competência do ator, que já mostrou sua força artística diversas vezes, como em Me Chame Pelo Seu Nome (2017) – e a direção apática de Villeneuve que, embora preze por momentos mais contemplativos, não consegue aprofundá-los.

O próprio Feyd-Rautha, que no filme de David Lynch exala erotismo e uma inquietação desconcertante com o trabalho de Sting (Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes), acaba sendo vítima desse distanciamento em vários momentos, até mesmo na maneira como se comporta no combate corpo a corpo contra Paul. Assim, se o personagem consegue transmitir algum senso de ameaça no Duna de Villeneuve é graças à performance de Austin Butler, que com seus gestos e entonações peculiares consegue driblar os artifícios de roteiro para envolvê-lo na trama. No entanto, isso não é o bastante para que a Parte 2 faça jus ao poder que Feyd-Rautha apenas diz ter na narrativa.

Desenvolvimento de Feyd-Rautha se beneficia da ótima performance de Austin Butler.

Há um teor extremamente anticlimático em Duna: Parte 2 que faz com que o filme pareça estar se segurando para não ultrapassar um limite que, em um blockbuster tão grandioso quanto esse, poderia ser ultrapassado. Seja na falta de ação vinda de Paul Atreides, ou na maneira como o Barão Vladimir Harkonnen de Stellan Skarsgård (Chernobyl) é tão esquecível na sequência que quase passa despercebido, a continuação do filme de 2021 se esconde atrás da poderosa trilha sonora de Hans Zimmer (Interestelar) e dos ditos “visuais impressionantes”, por exemplo, de um jeito quase covarde, sem se atrever a sair do superficial para não manchar seu estilo padronizado.

Muito se fala sobre como o Duna dos anos 80 é “problemático”, ou como o próprio David Lynch prefere não ser lembrado por sua adaptação da obra de Frank Herbert, que passou por diversos conflitos criativos nos bastidores com o estúdio. No entanto, apesar da dificuldade que o filme possui em condensar em pouco mais de duas horas toda a extensão mitológica do livro, é indiscutível que a autenticidade de Lynch é muito mais interessante que a apatia que Villeneuve adota em seu Duna, já que a versão estrelada por Kyle MacLachlan (Twin Peaks) sabe como usar a montagem para construir uma narrativa mais inventiva e até mesmo poética, algo que Villeneuve não se permite acessar.

Diante desse cenário, Duna: Parte 2 não mede esforços em demonstrar sua força como um blockbuster diferenciado em Hollywood, no sentido de que a mão de Villeneuve é muito mais autoral do que muitos diretores por aí que seguem entregando obras genéricas e esquecíveis. Porém, o preciosismo do cineasta por seus enquadramentos perfeitos e a dificuldade para se aproximar do campo de batalha sem hesitar prejudicam a construção de um universo que tem tanto para oferecer, mas que segue acorrentado por um distanciamento nocivo. Resta saber se a vindoura adaptação de O Messias de Duna vai continuar repetindo os mesmos erros, ou se Villeneuve vai usar o que tem em mãos para criar algo palpável e humano.

Nota: 2,5/5

Duna: Parte 2 estreia em 29 de fevereiro nos cinemas brasileiros.

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