Crítica – Doctor Who, Temporada 14

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Crítica – Doctor Who, Temporada 14

Por Jaqueline Sousa

Não deixa de ser impressionante a maneira como Doctor Who leva a sério o conceito de regeneração. Desde o início da década de 1960, período em que a série clássica começou a ser exibida pela BBC, o programa por onde já passaram mais de 10 intérpretes do alienígena mais otimista do universo consegue se reinventar a cada novo capítulo de maneira única, nunca perdendo sua essência.

É exatamente essa magia que a primeira temporada (ou seria 14ª temporada?) da nova era de Doctor Who preserva. Com o carismático Ncuti Gatwa (Sex Education) na pele do Décimo Quinto Doutor, a série, que encontrou no Disney+ uma nova casa após a aquisição dos direitos internacionais de exibição, prova que o excêntrico programa, com suas viagens pelo tempo e criaturas do espaço peculiares (para dizer o mínimo), ainda tem muita carta escondida na manga. Vibrante, divertida e atual, a nova temporada de Doctor Who emociona na medida certa, sempre abrindo espaço para reflexões sobre o que faz a vida na Terra valer a pena.

Ficha técnica

Título: Doctor Who

 

Criação: Russell T. Davies

 

Roteiro: Russell T. Davies, Kate Herron, Briony Redman e Steven Moffat

 

Direção: Julie Anne Robinson, Ben Chessell, Dylan Holmes Williams e Jamie Donoughue

 

Ano: 2024

 

Emissora/Streaming: BBC One e Disney+

 

Número de episódios: 8 (Temporada 14)

 

Sinopse: O Doutor e sua companheira Ruby viajam através do espaço e tempo vivendo aventuras da Era da Regência na Inglaterra a mundos futuristas destruídos por guerras. Ao longo de suas aventuras na TARDIS – uma máquina de viagem no tempo com a forma de uma cabine telefônica policial – eles encontram amigos incríveis e inimigos perigosos, inclusive um bicho-papão terrível e o inimigo mais poderoso que o Doutor já enfrentou.

Pôster da 14ª temporada (ou primeira temporada da nova versão) de Doctor Who.

Uma nova aventura cósmica

Para quem conhece Doctor Who há décadas, a premissa da nova era da série, agora no Disney+, pode parecer uma zona de conforto. Afinal, temos um Doutor e uma nova acompanhante, Ruby Sunday (Millie Gibson), viajando pelo tempo e espaço na TARDIS, a icônica cabine telefônica policial que serve como uma máquina do tempo – sempre maior por dentro do que por fora. No meio do caminho, é certo também que a dupla vai se deparar com criaturas de outro mundo, perigos mortais e, quem sabe, até mesmo bebês falantes.

Doctor Who sempre foi uma série de muitas peculiaridades, mas sua essência, mesmo com a passagem do tempo e as diversas regenerações do Doutor, nunca deixou seu posto. É justamente isso que faz com que o programa britânico, por mais familiar que pareça ao fãs de longa data, continue (re)encontrando novas maneiras de se apresentar ao público, seja aquele que sabe de cor e salteado todos os conceitos e anedotas que vem lá da série clássica, ou aquele que sentou no sofá da sala e deu play em uma curiosa série de ficção científica que, de repente, apareceu em um serviço de streaming.

Nova temporada de Doctor Who tem Ncuti Gatwa como Doutor e Millie Gibson como Ruby Sunday, a acompanhante do alienígena em suas aventuras.

A era atual de Doctor Who faz exatamente isso. Com um Ncuti Gatwa pós Eric de Sex Education, a temporada exibida internacionalmente pelo Disney+ apresenta uma figura alienígena otimista, alegre e aventureira de um jeito novo, mas sem ignorar aquilo que a levou até ali. E é por isso que o retorno de Russell T. Davies como showrunner, mesmo que tenha levantado algumas sobrancelhas no início, foi tão certeiro.

Afinal, se Davies conseguiu colocar Doctor Who na boca do povo novamente depois que a série passou por um hiato de quase 20 anos, culminando nas icônicas performances de Christopher Eccleston e David Tennant como seus respectivos Doutores, dá para entender como ele conseguiu transformar a nova era da série, agora com Ncuti Gatwa, em uma jornada divertida, refrescante e bastante atual. Ao longo dos oito episódios, é nítido que, ao mesmo tempo que existe o respeito pelo legado da série, também há uma vontade de levar esse personagem tão único além.

Dinâmica entre Ncuti Gatwa e Millie Gibson é um dos grandes acertos da temporada.

Essa energia contagiante que sempre aparece com a chegada de um novo Doutor contamina cada capítulo da nova temporada, algo que é impulsionado não somente pelo carisma de Gatwa, mas também por sua dinâmica com a atriz Millie Gibson, que faz um excelente trabalho como a doce Ruby Sunday.

Uma dupla novata que, embora precise enfrentar o frio na barriga que vem com a chegada de coisas novas, consegue enfrentar cada aventura semanal com uma vitalidade impressionante, mesmo quando o episódio em questão não consegue acompanhar tão bem assim essa energia. É um trabalho em equipe que funciona graças aos esforços de Russell T. Davies em olhar para um universo tão conhecido para ele e conseguir reaproveitá-lo de uma nova maneira, desta vez sem precisar contar com a ajuda de Daleks ou Cybermens para criar uma zona segura e confortável aos velhos telespectadores.

Allons-y, Décimo Quinto Doutor

Desde A Igreja da Rua Ruby, o especial de fim de ano lançado em 2023 que apresentou a história de Ruby, uma jovem que foi abandonada pela mãe em uma noite de véspera de Natal, até o episódio final da temporada, que amarra as pontas soltas envolvendo a misteriosa senhora que aparece em todos os lugares que o Doutor está, o novo capítulo de Doctor Who tem histórias tão interessantes que elas quase ganham vida própria nas mãos de Gatwa e Gibson.

Começando pelo primeiro grande destaque da temporada, o episódio O Som do Diabo transporta o Doutor e Ruby (com a ajuda da TARDIS, claro) para 1963. O objetivo da viagem é nada mais, nada menos do que ver os Beatles gravando sua primeira canção. Porém, toda a expectativa da jornada é interrompida por Maestro, um ser que consome toda a música da Terra.

A drag queen Jinkx Monsoon interpreta a vilã Maestro em episódio ambientado nos anos 60.

O Som do Diabo chega como um suspiro de alívio depois do morno Bebês no Espaço, o primeiro episódio da temporada, que é assinado por Russell T. Davies e deixa um pouco a desejar para ser o ponto de partida dessa nova era. Isso porque, graças à performance arrebatadora de Jinkx Monsoon, drag queen conhecida por RuPaul’s Drag Race que faz a festa na pele da vilã Maestro, o episódio traz uma narrativa criativa e até mesmo inesperada em seu desenvolvimento, principalmente levando em consideração a expectativa pela presença dos Beatles.

Felizmente, O Som do Diabo não é o único acerto da temporada. Boom, episódio escrito pelo “ame ou odeie” Steven Moffat, faz uma boa reflexão sobre como os seres humanos agem em tempos de guerra e ainda pincela discussões que se assemelham às polêmicas envolvendo inteligência artificial. Tudo isso com uma das performances mais impressionantes de Gatwa na temporada como um todo, já que a estrutura do episódio funciona quase como uma trama de locação única e o ator sabe como aproveitar cada momento disso.

Vale destacar também o excelente 73 Jardas, episódio assinado por Russell T. Davies que faz a escolha ousada de deixar o Doutor de fora de boa parte da narrativa. Com Ruby no comando, o capítulo tem um clima bastante macabro que chega a se assemelhar ao icônico Não Pisque, episódio estrelado por Carey Mulligan na terceira temporada da série de 2005 que introduziu os aterrorizantes Anjos Lamentadores.

73 Jardas é um dos pontos altos da temporada por abraçar um lado mais macabro e misterioso de Doctor Who.

73 Jardas é o capítulo mais inquietante da nova era de Doctor Who por não perder muito tempo explicando conceitos ou ideias. O episódio deixa tudo aberto à interpretação do espectador, sem se preocupar em parecer muito abstrato ou místico demais, e Millie Gibson faz um ótimo trabalho ao longo da história, mesmo sem contar com o bônus de sua química com Gatwa.

Tudo isso culmina em dois excelentes episódios finais, o A Lenda de Ruby Sunday e o Império da Morte (em tradução livre), que finalmente amarram as pontas soltas que vão aparecendo ao longo da temporada, como o mistério envolvendo a identidade da mãe de Ruby e a tal mulher misteriosa que sempre aparece em vários locais do espaço e tempo. E claro que, sendo Doctor Who, a chegada de um vilão aterrorizante que está envolvido com esses segredos é sempre muito bem-vinda, e Sutekh, antagonista da série clássica que faz seu retorno triunfal na nova era, foi um bom acerto de Davies para essa nova leva de episódios.

Sutekh encerra a nova temporada em grande estilo, dialogando com fãs de longa data de Doctor Who.

Mesmo que o tom de didatismo apareça em vários momentos da temporada, o que pode parecer levemente enfadonho para os fãs de longa data e até mesmo atrapalhar um pouco o ritmo da narrativa, acompanhar as primeiras aventuras do Décimo Quinto Doutor é uma jornada muito especial. Seja pela alegria de Ncuti Gatwa ao criar sua versão do alienígena, ou pela série continuar trazendo histórias tocantes sobre amor e amizade, a nova era de Doctor Who sabe como explorar temas contemporâneos com bastante originalidade e cuidado, aproveitando toda as possibilidades que o gênero da ficção científica pode proporcionar.

É assim que Doctor Who segue se reinventando, mesmo quando olha para o passado (Olá, Sutekh) em busca de respostas. Assim como cada regeneração, o programa que surgiu lá nos anos 60 sempre retorna com um novo mundo de oportunidades na mão, sem medo de quebrar suas próprias regras (para o bem ou para o mal) e sem se levar tão a sério assim, o que é outro ponto positivo dessa nova era (a última cena do último episódio que o diga).

Caminhando juntamente com seu público, Doctor Who segue mostrando o porquê ainda encontra relevância nos dias de hoje, e o futuro da série parece tão promissor quanto o sorriso contagiante de Ncuti Gatwa que, com seu sobretudo marrom, sua querida TARDIS e sua chave de fenda sônica, promete continuar salvando o mundo nos próximos capítulos, sem nunca perder o bom humor e a esperança.

Nota: 4,5/5.

A primeira temporada da nova série de Doctor Who está disponível no Disney+. Os episódios especiais em comemoração aos 60 anos da série, bem como o especial de Natal de 2023, também estão disponíveis no streaming da Disney.

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