Crítica – Clube dos Vândalos narra a vibrante transformação de um grupo de motoqueiros nos anos 60 mas segura o freio rápido demais
Crítica – Clube dos Vândalos narra a vibrante transformação de um grupo de motoqueiros nos anos 60 mas segura o freio rápido demais
Filme com Austin Butler, Jodie Comer e Tom Hardy faz ótimo conto de pertencimento, mas parece ter medo da ousadia de seus motoqueiros
Com uma câmera e um gravador na bagagem, o fotógrafo Danny Lyon viajou pelo centro-oeste americano durante os anos 60, em meio a uma explosão de novas ideias que impulsionaram o movimento da contracultura nos EUA e no mundo, com um objetivo em mente: retratar, por meio de fotografias e entrevistas, o estilo de vida de um clube de motoqueiros. O resultado dessa empreitada foi The Bikeriders, um livro fotográfico lançado em 1968 que reuniu registros em preto e branco do Chicago Outlaws Motorcycle Club, um grupo de motociclistas foras da lei que mais pareciam obras de ficção saídas de Juventude Transviada (1955) ou O Selvagem (1953) do que seres reais.
É justamente essa aura transgressora e barulhenta que o filme Clube dos Vândalos adapta. Usando o livro de Lyon como inspiração, o diretor e roteirista Jeff Nichols constrói a história de ascensão e decadência dos Vândalos, um grupo de motociclistas da década de 1960 cujos integrantes respiram couro, suor e rebeldia. Usando três personagens centrais interpretados por Tom Hardy, Jodie Comer e Austin Butler, Nichols explora as obsessões, os desejos e as coisas não ditas de cada ponta desse triângulo, mesmo que o conflito criado pela trama não consiga sustentar a importância que o filme quer que ele tenha.
Ficha técnica
Título: Clube dos Vândalos
Direção: Jeff Nichols
Roteiro: Jeff Nichols
Data de lançamento: 20 de junho de 2024
País de origem: Estados Unidos da América
Duração: 1h 56min
Sinopse: Clube dos Vândalos acompanha a jornada de um clube de motoqueiros do centro-oeste americano, os Vândalos. Através da vida de seus membros, o filme narra, ao longo de uma década, a transformação do clube, de ponto de encontro de motoqueiros à margem da comunidade local, no início, à gangue sinistra que ameaça e coloca em risco até o modo de vida autêntico e único do grupo original.
Liberdade é para os destemidos
Era início da década de 1960, e o fotojornalista Danny Lyon (Mike Faist) encarava as estradas de Chicago, cidade do estado de Illinois (EUA), para documentar a rotina dos Vândalos, uma gangue de motoqueiros cujos integrantes preferiam estar em cima de uma motocicleta, sentindo o vento cortando o rosto com a velocidade do motor, do que seguir qualquer tipo de regra pré-estabelecida pelo sistema. Esses foram os anos iniciais da contracultura, onde a juventude anti-establishment dos Estados Unidos propagou para o mundo ideias revolucionárias que abalaram a farsa do “sonho americano” ao abraçar um novo estilo de vida que prezava pelas experimentações e pelo desejo de uma sociedade mais igualitária.
Em meio a esse contexto social e cultural, o fotógrafo conta com a ajuda de Kathy (Jodie Comer), uma integrante dos Vândalos – graças ao seu casamento com o inconsequente e quieto Benny (Austin Butler) – que narra para ele a trajetória do clube de motociclistas ao longo de 10 anos, usando seu olhar e suas próprias percepções para tentar montar um complicado quebra-cabeça da história do clube, assim como das relações conflitantes entre cada um deles.
Se em um ano muita coisa pode acontecer, imagine então o que um período de 10 anos consegue criar. Com os Vândalos, não foi diferente: do começo do clube criado por Johnny (Tom Hardy) até a ameaça enfrentada pela chegada de novos integrantes, que parecem ficar cada vez mais imprudentes e sádicos, o grupo passa por uma transformação radical que mexe com a cabeça dos membros originais, danificando o senso de autenticidade do clube e aquela sensação de pertencimento que todo mundo quer sentir ao se juntar aos seus iguais.
Desde o início, Clube dos Vândalos já deixa claro que aquela pode não ser uma história com um fim tão feliz assim. Na voz de Jodie Comer, que aposta em um sotaque carregado no filme que, certamente, relembra seus tempos no seriado Killing Eve: Dupla Obsessão, a jovem Kathy faz um aviso: desde que ela conheceu o misterioso Benny, um motociclista que faz o tipo “durão e silencioso”, no maior estilo Gary Cooper (como dito por Tony Soprano na consagrada série Família Soprano), ela só arranjou problema para a cabeça. Como pode, então, um amor florescer em um meio tão agressivo e violento?
É isso que Nichols explora ao longo das quase duas horas do filme. Com uma trama que parte de uma relação quase obsessiva de Kathy e Johnny por Benny, sendo que este último parece orbitar um mundo completamente alheio ao deles, Clube dos Vândalos acompanha a jornada em alta velocidade dos motoqueiros à medida que situações inusitadas, vindas das ações inconsequentes de cada um, acontecem. É aqui que o filme conversa com produções como o filme Sem Destino (1969), clássico em que acompanhamos Peter Fonda e Dennis Hopper em uma jornada psicodélica pelas estradas estadunidenses em cima de uma moto, e, claro, a série Sons of Anarchy, que dialoga em grande parte com a transformação dos Vândalos em uma gangue criminosa – mesmo que a atmosfera suja e máscula da trama, assim como a paixão pela liberdade das motocicletas, permaneça a mesma.
Mas Nichols também consegue olhar para essa atmosfera tão carregada de homens embriagados de bebida barata o tempo todo, enquanto aparecem vestidos de couro da cabeça aos pés e só abrem a boca para fazer conversa fiada a partir de um viés bastante vulnerável. É algo que o cineasta já fez em Amor Bandido (2012), por exemplo, longa estrelado por um Matthew McConaughey completamente enlameado que, foragido da polícia, conta com a ajuda de dois garotos para se reencontrar com o amor de sua vida.
Assim como em Amor Bandido, Clube dos Vândalos também olha para essas figuras de ações e crenças que desafiam às morais estabelecidas pela sociedade de um jeito quase frágil, já que esses homens, mesmo representando um Marlon Brando em O Selvagem, estão fazendo exatamente isso: representando um papel que eles mesmos criaram para si.
Apesar da imagem de caras durões e fortes que tentam passar, é nítido que eles precisam uns dos outros para continuarem vivos, assim como também necessitam de suas motocicletas como motivo para acordarem todos os dias. Isso é perceptível em uma cena em que Benny é assombrado pela ameaça de perder um dos pés após ser espancado em um bar: ele praticamente implora para que Kathy não deixe que o pé seja amputado, porque isso significaria que ele nunca mais subiria em uma moto. Para Benny, essa possibilidade simplesmente não existe, já que, sem a sua liberdade, o jovem não teria mais uma razão para seguir, por mais dolorosa e cruel que essa constatação possa parecer.
Todo mundo quer fazer parte de algo
Há um momento aparentemente inofensivo em Clube dos Vândalos que consegue resumir com um breve relato toda a comoção por trás de uma gangue de motoqueiros, ou qualquer outra organização que gere uma sensação de pertencimento. A cena tem Brucie (Damon Herriman) no centro, um membro bastante ativo dos Vândalos que conversa com um Mike Faist mais contido do que seu personagem em Rivais (2024) sobre como estar no grupo equivale a fazer parte de algo.
Esse senso de pertencimento é justamente o que preenche a alma humana com propósito. Fazer parte de alguma coisa ao lado de pessoas que compartilham das mesmas crenças e ambições funciona quase como uma droga entorpecente que inibe os nossos sentidos, deixando-nos mais ávidos e até mesmo imprudentes. Agora, coloque todas essas sensações em cima de uma motocicleta e o simples ato de “pertencer” pode se transformar em uma arma nuclear prestes a ser acionada a qualquer momento.
Nichols sabe como construir essa atmosfera do começo ao fim, colocando seus motoqueiros em enquadramentos mais contemplativos apenas pelo prazer de olhá-los, mas sem deixar de ressaltar as rebeldias particulares de cada um. Seja nos silêncios gritantes de Austin Butler ou até mesmo na sinfonia de motores quando as motocicletas se unem na pista em uma formação ameaçadora, há algo, como Brucie diz, de obsceno em uma moto que confronta o status quo.
E essa obscenidade está presente nas ações, nos gestos e nas relações interpessoais de cada personagem, embora algumas figuras, como os motoqueiros vividos por Michael Shannon e Norman Reedus, não recebam a devida atenção para que o espectador se importe com eles na narrativa. E talvez essa superficialidade que rodeia a construção de personagens seja o maior problema de Clube dos Vândalos, já que nem mesmo o triângulo obsessivo formado por Hardy, Butler e Comer consegue passar por isso ileso.
Não que seus personagens não sejam desenvolvidos ao longo da narrativa, mas Nichols tem uma certa dificuldade em aproveitar a boa dinâmica entre os três (que estão excelentes em seus papéis, com destaque para Comer como a voz onisciente de um narrador e Butler como um homem misterioso e sexy que chega a ser sufocante). É nítido que Kathy e Johnny competem o tempo todo para ver quem consegue captar a total atenção de Benny para si, e a performance de Butler é excelente exatamente por justificar o fascínio da esposa e do mentor mesmo que ele pareça ser oco por dentro.
Porém, até nos momentos em que há a possibilidade de incrementar essa relação de três medidas, o filme parece não ter ânimo para ir além. É como se ele estivesse confortável com a superfície, ou em apenas capturar um momento sem precisar decifrá-lo depois. Isso acontece também, por exemplo, com o personagem de Mike Faist, uma ficcionalização do fotógrafo Danny Lyon, cujo livro inspirou o filme, que não avança com a narrativa, já que ele existe naquele universo apenas para segurar um microfone e um gravador, enquanto interage vez ou outra com os relatos de Kathy sobre os Vândalos. Faist faz o melhor que pode com o que tem em mãos, mas são as caras e bocas de Jodie Comer que sempre aparecem para resgatar o clima da trama.
Esse apego pelo superficial não chega a ser exatamente uma falha grotesca que atrapalha o interesse por aquilo que está sendo narrado em tela, afinal a comoção por trás de uma gangue de motoqueiros é reforçada pelo imaginário do público em relação ao assunto. Contudo, não dá para deixar de notar como um filme que trata da rebeldia e da obscenidade desses seres quase místicos consegue ser tão comedido e prudente em diversos momentos, como se tivesse medo de sujar as próprias mãos quando necessário, distanciando-se do clima que remete a Os Bons Companheiros (1990). A violência existe a todo instante, mas o filme parece não conseguir se adaptar a esse aspecto, o que provoca uma certa contradição.
Ainda assim, Clube dos Vândalos faz um trabalho competente em criar um conto sobre pertencimento. Com uma boa fotografia e quadros contemplativos, Nichols apresenta uma história de amizade entre um grupo de desajustados que enxergam em uma motocicleta a chance de serem livres, nem que seja por alguns minutos. Sem tempo para pensar em redenção, o que importa para cada um deles é acelerar, sentir o vento cortando o rosto e viver como se o amanhã não existisse. Talvez essa seja a verdadeira graça da vida para aqueles que tem coragem de encará-la sem medo do que o próximo nascer do sol pode trazer.
Clube dos Vândalos estreia no dia 20 de junho nos cinemas brasileiros.
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