Crítica — Avatar: O Último Mestre do Ar, Temporada 1

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Crítica — Avatar: O Último Mestre do Ar, Temporada 1

Por Gabriel Mattos

Os quatro elementos — Água, Terra, Fogo e Ar — despertam a curiosidade da humanidade há milênios. Não são poucas as histórias que sonham com a sua dominação. Porém, talvez nenhuma na história recente seja tão impactante quanto Avatar: O Último Mestre do Ar, animação de 2005 da Nickelodeon. O desenho traz uma construção de mundo profunda, um elegante sistema de magia e a maturidade em explorar temas complexos que poucas outras produções, em qualquer meio, alcançaram — sendo até objeto de estudos. Houveram tentativas de recontar essa história mais próxima ao mundo real, que falharam brutalmente. Porém, quase 20 anos depois, a nova série da Netflix traz esperança aos fãs com o despertar de um novo Avatar.

Ficha técnica

Título: Avatar: O Último Mestre do Ar (Avatar: The Last Airbender)

 

Criação: Albert Kim

 

Roteiro: Audrey Wong Kennedy, Albert Kim, Keely MacDonald, Christine Boylan, Joshua Hale Fialkov e Gabriel Llanas

 

Direção: Michael Goi, Roseanne Liang, Jabbar Raisani e Jet Wilkinson

 

Ano: 2024

 

Emissora/Streaming: Netflix

 

Número de episódios: 8

 

Sinopse: Há muito tempo, as nações viviam em paz e harmonia. Porém, tudo isso mudou quando a Nação do Fogo atacou. Somente o Avatar pode dominar os quatro elementos e pode impedi-los. Mas quando o mundo mais precisava dele, ele desaparece. 100 anos se passaram e o herói prometido ressurge para cumprir sua missão.

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Livro Um: O Roteiro

Dividida em oito episódios, Avatar: O Último Mestre do Ar prova que a Netflix não teve apenas sorte com o sucesso da adaptação de One Piece. A empresa realmente aprendeu como transformar uma extensa animação de sucesso em um formato muito mais limitado e realista sem perder a sua essência — um drama muito bem humorado. Novamente, como aconteceu na tradução para as telas do anime de Eiichiro Oda, a série procura entender o espírito da produção original como uma base para contar uma história conhecida de um jeito novo.

Em sua primeira temporada, a produção encara o árduo desafio de adaptar por inteiro os vinte episódios do Livro Um, da Água. A história acompanha a busca do Avatar Aang por um mestre para aprender a dominar a dobra de água — ou para evitar um genocídio, na nova versão. Em um primeiro momento, a série tropeça em sua ansiedade ao tentar fisgar o público logo de cara. Há um excesso de exposição e diálogos clichês para que todo mundo entenda o mais rápido possível como esse mundo funciona. Mas quando passa o medo de perder o interesse do público mais casual, a produção consegue finalmente decolar tão rápido quanto o Appa.

Usando da estrutura de arcos narrativos, típica em animes como One Piece, o roteiro consegue priorizar as histórias mais importantes sem descartar momentos mais leves, que acrescentam à construção de mundo da história. Os episódios mais marcantes da animação ganham toda a pompa de serem desenvolvidos com mais calma, às vezes sob um novo contexto, mas sem perder muitos detalhes em relação ao original. E mesmo as menores histórias do desenho ainda são lembradas, nem que seja como uma singela e respeitosa referência.

Omashu tem problemas muito maiores do que apenas um rei louco (Créditos: Netflix)

O destaque fica para o arco de Omashu, que encontrou uma forma inteligente de entrelaçar a história do Jato com a do mecânico. E ainda usar isso para ressaltar as belezas e os perigos de Omashu, um dos lugares mais icônicos e subexplorados da animação. Sempre que enxergam a oportunidade de expandir um elemento cheio de potencial da animação, eles fazem — como com o Mundo Espiritual. Sobrou espaço até para adiantar momentos de temporadas futuras e até de A Lenda de Korra. Grande parte das cenas inéditas são muito bem aproveitadas, trazendo um senso de novidade e ainda mais vida à Lenda de Aang.

Livro Dois: Os Personagens

Pena que essa ousadia, tão presente na construção de mundo, não está presente na hora de explorar os temas mais sérios, o que a animação faz com muita maturidade. Nesse quesito há um esforço visível do lado da Netflix em jogar da forma mais segura possível, minando qualquer possível foco de polêmica. Porém, ao não confiar no roteiro e nem no público, a adaptação acaba esvaziando muito do que fazia a animação brilhar.

Ao mesmo tempo em que há um esforço para construir um arco dramático muito mais presente para todos personagens, falta pulso firme para trazer qualquer profundidade para os mesmos. Se falta coragem para trabalhar pequenos deslizes de personalidade, como inveja, ego e inseguranças que levavam os heróis a evoluir com o erro, imagina para questões mais complicadas. O machismo de Sokka, por exemplo, que renderia uma boa discussão a partir de sua evolução foi diminuído ao máximo a atitudes quase inocentes. Mas nenhum personagem sofre tanto nas mãos do roteiro quanto a Katara.

As Guerreiras Kyoshi são apresentadas com um foco completamente diferente no isolamento da Suki, sem tanto destaque para o machismo de Sokka (Créditos: Netflix)

Um ícone na animação, exatamente por balancear sua natureza gentil e afrontosa, a heroína é diminuída ao estereótipo de boa moça. Adeus às respostas atravessadas e atitudes impulsivas. Qualquer nuance que existia na personagem foi passado à ferro até que sobrasse apenas a sua versão mais lisa e inofensiva. A atuação morna da Kiawentiio também não ajuda em nada. Outros atores conseguem compensar demais as falhas do roteiro, como é o caso do Ian Ousley, que impressiona ao abraçar os maneirismos do Sokka trazendo humor mesmo quando o roteiro esquece esse seu lado.

Por outro lado, com os vilões a série faz um trabalho muito mais competente. Dallas Liu, no papel de Zuko, e Paul Sun-Hyung Lee, como Tio Iroh, servem uma química instantânea bem paternal que marca o tom mais trágico do personagem. O desenvolvimento do principal rival de Aang, que já era ótimo antes, fica ainda melhor com as mudanças no núcleo da Nação do Fogo. A competição com o Comandante Zhao está muito mais nivelada, construindo um sentimento que qualquer um pode ganhar cada nova disputa. E, claro, a adição crucial de seus parentes maquiavélicos, o Senhor do Fogo Ozai e Azula, amarram ainda mais a sua história, reforçando motivações e tornando seu drama mais fácil de se relacionar.

A Azula de Lizzy Yu, inclusive, é uma grata surpresa. Toda sua história é completamente inédita e prepara muito bem a personagem para um papel bem maior no futuro da trama. Desde sua primeira aparição, de uma forma completamente inusitada, fica bem claro que tipo de pessoa ela é. Interessante perceber como sua dinâmica com o seu pai é quase oposta ao que vemos entre Zuko e Iroh, um jogo de enganações, manipulações e desrespeito — um paralelo que a animação não deixava tão claro.

Avatar: O Último Mestre do Ar — Lizzy Yu explica como construiu a Azula da  série da Netflix

Se do lado dos vilões é a Azula quem rouba completamente a cena, entre os mocinhos esta conquista fica com o Aang de Gordon Cormier. Esse garoto traz uma inocência tão genuína no olhar que você quer acreditar que ele vai resolver uma guerra centenária só no diálogo. Nas cenas mais engraçadas e leves ele entrega muito bem. Só fracassa em convencer quando o momento pede uma forte carga dramática, como em sua chegada ao Templo do Ar do Sul. Não chega a quebrar a imersão, mas lembra a atuação desajeitada de Daniel Radcliffe no início de carreira.

Livro Três: Dobra

Mesmo quando a atuação fraqueja, a forte caracterização de todo o elenco não permite que você questione por um segundo sequer que estes são os mesmos personagens do desenho. Os figurinos parecerem ter criado vida diretamente da animação, com suas cores extravagantes e estética fortemente fantasiosa. E o mesmo pode ser dito pros cenários, majoritariamente criados em computador, e pros efeitos visuais.

Com a exceção do primeiro episódio, que é bem mais escuro do que necessário, esta é uma série que não tem medo de mostrar seus efeitos visuais simplesmente por conta da confiança de que fizeram um bom serviço. Até mesmo criaturas completamente digitais, como o adorável Momo, aparecem à luz do dia, se aproximam da câmera, sem medo de quebrar a imersão. E essa naturalidade com que a obra trata seus elementos fantásticos ajuda muito a vender a ideia de que este mundo mágico realmente existe.

As cenas que envolvem a dobra dos elementos também deixam isso bem claro. As lutas não são tão constantes quanto no desenho, em que eram muito mais baratas de produzir, mas são feitas de forma tão orgânica que convencem. Boa parte do mérito vai para a excelente equipe de dublês que montou uma coreografia sólida, bem fiel a animação e fortemente inspirada em artes marciais. Mas não dá para tirar o mérito da direção, que soube extrair o máximo de impacto de cada cena, criando momentos memoráveis que sequer estavam no original, como a chegada de Kyoshi.

As únicas críticas ao uso da dobra é quando os produtores decidiram quebrar a lógica da mitologia da franquia apenas para criar cenas visualmente interessantes. Isso é um problema menor no caso do exército da Nação do Fogo sabendo voar como foguetes, em uma cena, mas cria uma série de furos de roteiros em outros momentos, como com o voo irrestrito do Aang. Surgem inúmeras situações em que o herói poderia simplesmente escapar voando, uma vez que não está mais restrito ao uso de seu planador. E ele só não o faz para manter a história mais dramática com suas capturas, um problema que não existiria se não fossem duas cenas pensadas apenas para serem bonitinhas.

Netflix divulga vídeo de bastidores da série Avatar: O Último Mestre do Ar  - Le Ferrarez

Mesmo com alguns leves tropeços, Avatar: O Último Mestre do Ar é a série que os fãs tanto sonharam por todos esses anos. Meu plano original, quando recebi os episódios antecipadamente, era assistir com calma, um por dia. Só não contava que o ritmo seria tão viciante que eu acabaria maratonando sem sequer perceber.

As muitas histórias deste primeiro livro foram costuradas com maestria em uma nova trama que respeita completamente a história original. Nada é sacrificado sem motivo, exceto a nuance de certos temas e personagens. Num geral, a Netflix entendeu muito bem o espírito da história, a essência da dobra dos elementos e o suficiente a alma dos personagens. O que é mais do que muitas adaptações podem dizer.

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