Crítica – Ainda Estou Aqui: Fernanda Torres é a força que move o doloroso e emocionante filme de Walter Salles
Crítica – Ainda Estou Aqui: Fernanda Torres é a força que move o doloroso e emocionante filme de Walter Salles
Com chances no Oscar 2025, o filme narra a história de uma família cuja normalidade é interrompida pelos horrores da ditadura militar
Quem passou a borracha em cima disso esqueceu de me avisar que eu não posso me lembrar. Como bem registrado por essa frase – e tantas outras – em Que Bom te Ver Viva (1989), de Lúcia Murat (O Mensageiro), os anos de chumbo no Brasil ainda são injustamente ignorados por muitos até os dias de hoje, quase 40 anos desde o fim da ditadura. Em um país que tenta a todo custo “apagar” essa mancha de sua história, sem devidamente condenar os culpados por trás de um golpe militar que se alimentava da cruel repressão, as histórias daqueles que sofreram os aterrorizantes desdobramentos do regime ditatorial entre 1964 e 1985 resistem através da memória, mesmo que esta ainda seja ameaçada por olhos que se recusam a enxergar.
O simples ato de “lembrar” se torna, então, uma ferramenta imprescindível para que o passado não seja esquecido jamais, mesmo que tentem dizer o contrário. E é compreendendo o poder da memória para construção de um futuro que não repita os erros do que ficou para trás que Ainda Estou Aqui, novo filme do diretor Walter Salles (Central do Brasil) que venceu o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza 2024 e foi o escolhido para tentar uma vaga para o Brasil no Oscar 2025, ganha força. Inspirado em uma história real, o longa estrelado por Fernanda Torres (Os Normais), Selton Mello (O Auto da Compadecida) e Fernanda Montenegro (Central do Brasil) denuncia os crimes cometidos nesse período sombrio da história brasileira. Doloroso e sensível, Ainda Estou Aqui é um grito em meio ao silêncio espectral que ainda percorre a conturbada e frágil história do nosso país.
Ficha técnica
Título: Ainda Estou Aqui
Direção: Walter Salles
Roteiro: Murilo Hauser e Heitor Lorega
Data de lançamento: 7 de novembro de 2024
País de origem: Brasil e França
Duração: 2h 16min
Sinopse: Rio de Janeiro, início dos anos 70. O país enfrenta o endurecimento da ditadura militar. Estamos no centro de uma família, os Paiva: Rubens, Eunice e seus cinco filhos, que vivem na frente da praia, numa casa de portas abertas para os amigos. Um dia, Rubens Paiva é levado por militares à paisana e desaparece. Eunice - cuja busca pela verdade sobre o destino de seu marido se estenderia por décadas - é obrigada a se reinventar e traçar um novo futuro para si e seus filhos.
Todo esse amor reprimido, esse grito contido
Rio de Janeiro, 1970. É assim que Ainda Estou Aqui situa o espectador logo em seus primeiros segundos de duração. Caetano Veloso e Gilberto Gil no toca-discos, Anna Karina e Gal Costa nas paredes do quarto. No meio dessa década de tantas transformações estão os Paiva, aquela típica família brasileira que poderia ter saído de um comercial de margarina. Encabeçados pelo ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello) e sua esposa, Eunice Paiva (Fernanda Torres/Fernanda Montenegro), a família de cinco filhos, cada qual com uma personalidade marcante, vive com os pés na água do mar, em uma casa que respira o entra e sai de amigos, assim como a alegria da comunhão familiar.
Mas uma sombra perversa entra na casa dos Paiva sem pedir licença, e a luz que emanava daquele grupo de sete pessoas é apagada de repente depois que Rubens é levado pela ditadura militar, desaparecendo da noite para o dia. Eunice, que em um primeiro momento parece cumprir apenas o papel da esposa que cuida do lar, vira o centro dos holofotes ao iniciar uma busca incessante pelo paradeiro do marido, enquanto sua estrutura familiar vai, aos poucos, sendo dilacerada pelo regime.
Baseado no livro homônimo e autobiográfico do escritor Marcelo Rubens Paiva, Ainda Estou Aqui é um filme de contrastes. Em um jogo de luzes, o longa de Walter Salles é bastante tradicional em sua forma, especialmente tratando-se de uma obra inspirada em fatos, mas é justamente no contraste que ele se sobressai. Se somos apresentados inicialmente à família Paiva com o aconchego do lar e o calor da luz do sol em um belo dia de praia, os tons frios e os espaços sufocantes logo entram em cena para mostrar como o regime ditatorial no Brasil destruiu famílias, silenciou pessoas e torturou almas.
Acompanhamos essa mudança aos poucos: o barulho dos helicópteros que parecem carregar o peso da vida, as blitz agressivas nos túneis, o desfile de militares em meio à vida comum. Tudo isso passa silenciosamente diante dos olhos de Eunice, que embora perceba que algo terrível está acontecendo no país, só sente na pele o horror do regime quando homens suspeitos levam seu marido para prestar um depoimento. As cortinas são fechadas, e o sol já não entra mais na casa que um dia parecia ferver com animosidade.
Walter Salles sabe como construir a tensão que surge entre luz e sombra, garantindo que, até mesmo nos instantes em que nada é dito, na verdade, tudo é dito. O trabalho cenográfico, assim como o da fotografia, enriquece a história da família Paiva, que ganha novas tonalidades à medida que a ausência de Rubens se intensifica.
A sequência em que acompanhamos um tenso interrogatório de Eunice, pouco depois que Rubens desaparece, é o perfeito exemplo de como o filme sabe trabalhar seus contrastes, como no jogo de luzes que torna o ambiente frio, aterrorizante e estéril. Assim como Eunice, somos jogados em um local escuro e amedrontador sem saber como fomos parar lá. Afinal, como saímos dos dias ensolarados de praia para uma sala gelada e cruel? Da mesma maneira que Eunice não tem respostas, também passamos a caminhar com uma incógnita na cabeça: o que vai acontecer com aquela família, que a partir de então passa a ser assombrada por fantasmas?
A resposta para esse questionamento vem através da própria Eunice, que transforma toda sua vida em uma busca para encontrar o paradeiro do marido, enquanto tenta a todo custo manter a “normalidade” dentro de casa. É nítido como o silêncio de Eunice e as omissões afetam a estrutura familiar. As conversas sobre o desaparecimento de Rubens são feitas em portas fechadas para que os filhos não escutem, e as lágrimas são escondidas para que eles não percebam que a mãe está despedaçada.
E muito do êxito da construção e do desenvolvimento de Eunice ao longo da narrativa vem da força de sua intérprete, a gigantesca Fernanda Torres. Vinda de uma boa parceria com Salles na década de 1990 com Terra Estrangeira (1995), Torres repete a dose pela terceira vez em Ainda Estou Aqui, dessa vez longe dos ares godardianos que Salles tentou recriar na primeira colaboração entre a dupla.
Diferente de sua Alex em Terra Estrangeira, Fernanda Torres se destaca com Eunice por carregar consigo uma força e uma excelência incomparáveis. Embora seja uma personagem contida em diversos aspectos, como até mesmo em suas vestimentas e ações, Eunice Paiva se faz gigante nos olhares, nos gestos e na maneira como tenta proteger os filhos dos horrores da ditadura. Por mais que esconder a verdade dos filhos pareça algo questionável – e até mesmo as filhas mais velhas de Eunice, que possuem uma noção dos crimes do regime, cobram a mãe a respeito disso durante a trama –, a performance de Fernanda faz com que o espectador compreenda suas motivações, mesmo que Eunice não diga uma única palavra.
Há um momento no filme que exemplifica esse ponto. A cena acontece em uma sorveteria, onde Eunice está com os filhos em meio às incertezas envolvendo o sumiço do marido. Sofrendo a dor pela ausência de respostas, Eunice observa o ambiente ao seu redor, que está repleto de famílias felizes tomando seus sorvetes e rindo à toa – tudo que sua família foi um dia antes da ditadura dilacerá-la.
O olhar de Fernanda Torres diz muito, e nenhum adjetivo parece ser digno de resumir o que a atriz faz em Ainda Estou Aqui. Uma força magnética da comédia, ela também se mostra versátil em encarar a carga dramática do filme de Salles de corpo e alma, carregando a narrativa até o fim entre as coisas não ditas, o doloroso peso da ausência e a memória do que ficou.
Lembrar para não esquecer
Toda a construção da narrativa de Ainda Estou Aqui, roteirizada por Murilo Hauser (A Vida Invisível) e Heitor Lorega (Marinheiro das Montanhas) com base no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, pode até parecer demasiadamente expositiva em certos momentos – como quando denuncia os crimes cometidos por militares durante a ditadura, sendo que muitos nunca foram devidamente punidos –, mas, no contexto do está sendo contado, faz-se presente para reforçar que, sim, o teor expositivo precisa existir para que jamais nos esqueçamos do que aconteceu entre 1964 e 1985. Afinal, é preciso lembrar para não esquecer.
Essa questão se torna ainda mais evidente dentro da trama de Ainda Estou Aqui porque o filme de Walter Salles é uma história que fala bastante de memória. Seja nas fotos da família reunida, ou quando Eunice passa a enfrentar os primeiros sinais de Alzheimer, o longa-metragem reflete acerca das lembranças humanas, e como a memória é a ponte que nos liga ao futuro.
Tudo culmina em uma conclusão que serve como um soco bem no meio do estômago – aquele que, de repente, faz o ar sumir – graças ao poder fenomenal de Fernanda Montenegro. Com pouquíssimo tempo de tela, Montenegro interpreta a versão mais velha de Eunice, dividindo a personagem com a filha de um jeito arrebatador que é praticamente impossível não se emocionar.
Sem ao menos emitir uma fala, Fernanda Montenegro entrega uma performance descomunal, digna de uma vida com mais de 90 anos de experiência. Assim como, no final de Central do Brasil (1998), Montenegro diz muito com apenas o olhar e o sorriso choroso de Dora, em Ainda Estou Aqui não é diferente: ela controla o ambiente ao seu redor em silêncio, dizendo tudo sem dizer nada.
Juntas, mãe e filha, isto é, Montenegro e Torres, se complementam em Eunice, uma mulher que nunca desistiu de se lembrar, mesmo que aqueles que tentaram (e ainda tentam) passar a borracha em cima dos anos de chumbo no país sigam insistindo na negativa. Afinal, a memória é tudo que temos para construir um futuro que jamais se esqueça do que ficou para trás, e Salles soube como explorar essa questão em cada detalhe da narrativa do filme.
É assim que Ainda Estou Aqui marca o retorno de Walter Salles à direção para falar da memória de um país cujo passado caminha entre nós como um fantasma. É através da história de Eunice e sua família que o longa tenta compreender o que restou de uma sociedade traumatizada por um golpe militar que torturou, matou, sequestrou e violentou pessoas por mais de duas décadas. Com um retrato doloroso de uma família cuja calmaria vinda da brisa do mar é interrompida por uma violência sufocante que se espalha como um vírus, Ainda Estou Aqui é mais um lembrete de que um nação que não olha para sua própria história é um país sem memória – e um país sem memória está condenado a repetir os mesmos erros do passado.
Ainda Estou Aqui estreia em 7 de novembro nos cinemas brasileiros.
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