Crítica – A Substância: Demi Moore enfrenta seu duplo em terror corporal sobre o culto à perfeição
Crítica – A Substância: Demi Moore enfrenta seu duplo em terror corporal sobre o culto à perfeição
Vencedor de Melhor Roteiro no Festival de Cannes 2024, novo terror da francesa Coralie Fargeat escancara uma realidade cruel que adoece mulheres com padrões irreais de beleza
“Não há absolutamente nada no mundo a não ser a juventude”, diz Lorde Henry Wotton em páginas iniciais de O Retrato de Dorian Gray, clássico literário assinado por Oscar Wilde e publicado em sua versão final no ano de 1891. A frase encerra um discurso bastante acalorado que o Lorde faz a Dorian Gray momentos antes do artista Basil Hallward imortalizar o protagonista em uma pintura, um retrato que eterniza a beleza e a juventude de Dorian, fazendo com que este, enfim, perceba que, graças à efemeridade da idade, existirá um dia em que, segundo suas palavras no livro, ficará “velho e horrendo e medonho”.
O retrato, por outro lado, vai existir para sempre, congelado em um único momento do tempo. Jamais envelhecerá e jamais perderá a beleza, algo que coloca Dorian Gray em uma relação traiçoeira com seu duplo que o leva a uma tragédia pessoal sem precedentes. Avance muitos e muitos anos no tempo e você encontrará essa mesma obsessão doentia pela juventude em A Substância, terror dirigido e roteirizado pela francesa Coralie Fargeat (Vingança) que venceu o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes 2024.
Mas o longa estrelado por uma hipnotizante Demi Moore (Ghost: Do Outro Lado da Vida) subverte isso à sua própria maneira: frenético, grotesco e catártico, A Substância usa o body horror para mostrar como os padrões de beleza, a indústria farmacêutica, Hollywood e a sociedade patriarcal se unem desde tempos antigos para destruir a essência do sexo feminino, cruelmente acorrentado desde o berço pela incansável busca a um estado de perfeição que transforma mulheres em seres monstruosos e descartáveis, caso “regras” socialmente pré-estabelecidas não sejam respeitadas. Com acidez, Fargeat insere a seringa na ferida quantas vezes forem necessárias, fazendo de A Substância o filme mais intrigante, insano e desesperador dos últimos anos.
Ficha técnica
Título: A Substância
Direção: Coralie Fargeat
Roteiro: Coralie Fargeat
Data de lançamento: 19 de setembro de 2024
País de origem: Estados Unidos da América, Reino Unido e França
Duração: 2h 20min
Sinopse: Após ser demitida da TV por ser considerada “velha demais” para ser atriz, Elisabeth Sparkle (Demi Moore) recorre a um sinistro programa de aprimoramento corporal. A substância milagrosa promete rejuvenescê-la, mas resulta em uma transformação ainda mais radical. Ela agora precisa dividir seu corpo com Sue (Margaret Qualley), sua versão jovem e melhorada, e, aos poucos, começa a perder completamente o controle da própria vida. Em um pesadelo surreal sobre a busca incessante pela juventude, A Substância revela o preço oculto da perfeição.
Mais jovem, mais bela, mais perfeita
Mais. Sempre mais. Mulheres precisam ser mais: mais jovens, mais belas, mais perfeitas. É isso que a indústria da beleza e a sociedade patriarcal, com o auxílio de um mercado audiovisual que violenta mulheres na frente das câmeras, exigem do sexo feminino a cada segundo. Em A Substância, Elisabeth Sparkle (Demi Moore), uma atriz que vê sua carreira despencando aos poucos à medida que envelhece em Hollywood, é mais uma vítima dessa busca incessante pela perfeição, que descarta mulheres sem dó e sem piedade, caso elas sejam consideradas “velhas demais” para os padrões vigentes.
Elisabeth sente isso na pele, como um soco bem no meio do estômago, quando é demitida de seu próprio programa de TV. Vista pelo chefe misógino Harvey (Dennis Quaid) como um objeto descartável, a atriz leva consigo apenas as memórias de seus triunfos do passado, que se tornam cada vez mais amargas à medida que ela passa a encarar aquele que enxerga como seu maior inimigo: o espelho.
Desesperada para recuperar a juventude que julga ter perdido para o tempo e, assim, ser novamente “valorizada” pela oca indústria do entretenimento, Sparkle acaba recorrendo a uma misteriosa substância que promete entregar a ela a melhor versão de si mesma. De novo: uma versão mais jovem, mais bela, mais perfeita.
Mas há uma condição. Para ganhar sua juventude de volta, Elisabeth vai precisar dividir sua existência com seu duplo, Sue (Margaret Qualley), sua versão mais jovem e “melhorada” que lentamente passa a assumir o controle, fazendo com que Elisabeth embarque em uma luta contra si mesma com direito a um banho de sangue em um pesadelo grotesco, surreal e doentio.
Há uma cena em Mapas para as Estrelas (2014), longa-metragem de David Cronenberg – diretor cuja obra fortemente dedicada ao body horror se faz presente como influência no filme de Fargeat – em que um grupo de quatro adolescentes que são atores mirins desdenham em sigilo da personagem de Julianne Moore, que interpreta uma atriz mentalmente perturbada pelas memórias da mãe morta, por acharem que ela é “velha demais”. Na visão dos jovens, a atriz é “jurássica”, portanto é “desprezível”.
Conversas reflexivas sobre etarismo à parte, é uma sequência que, embora não seja visualmente grotesca, é verbalmente agressiva e perturbadora, principalmente quando vemos duas garotas tratando uma outra mulher com desprezo apenas pela idade, algo que dialoga bastante com a maneira como Hollywood – e a sociedade num geral – descarta mulheres com base na data de nascimento. Mas Mapas para as Estrelas, sendo por si só uma crítica à cultura das celebridades no cinema, oferece apenas um vislumbre do que Coralie Fargeat conseguiu alcançar em A Substância.
Ao colocar alguém como Demi Moore no papel central, uma atriz que, assim como tantas outras, foram bruscamente “esquecidas” por Hollywood depois que passaram da casa dos 30 (a terrível data limite fabricada por uma mentalidade misógina que jamais atingiu os homens que seguem dominando a indústria), Fargeat incrementa ainda mais sua crítica afiada ao etarismo e ao machismo hollywoodiano que segue transformando mulheres em objetos plastificados apenas pelo prazer visual, mesmo que lentas mudanças estejam acontecendo.
Assim como a própria Moore, que nos anos 90 era uma das atrizes mais valorizadas de Hollywood, foi cruelmente descartada por novatas mais jovens que conquistaram os olhares masculinos na época, Elisabeth enfrenta as consequências de uma indústria que adoece mulheres e as proíbe de envelhecerem, buscando uma alternativa radical que pode servir muito bem como uma metáfora ácida para o que a indústria farmacêutica e o mundo da beleza fazem com mulheres desde que, bem, elas se tornam mulheres (como dizia Simone de Beauvoir). Afinal, o que esperar de uma sociedade onde assumir cabelos brancos e linhas de expressão são vistos como atos “corajosos”, enquanto somos bombardeadas diariamente por inúmeras opções de procedimentos estéticos para alterar nossos corpos e diferentes marcas de cremes rejuvenescedores?
Essa questão é trabalhada em A Substância com um viés surreal e eletrizante que é de tirar o fôlego. Conforme a busca de Elisabeth para recuperar sua juventude e, assim, voltar a ser amada pela câmera (segundo sua própria percepção), se intensifica, vamos adentrando um mundo que abraça a bizarrice sem sutileza alguma à medida que a narrativa avança para explorar o culto à perfeição que coloca o sexo feminino em uma competição doentia contra si mesmo. Por meio de Elisabeth e Sue, que assumem uma posição à la O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, o filme mergulha no horror corporal de maneira absurda para falar da cruel passagem do tempo em relação às mulheres, a plastificação dos corpos femininos e as criaturas artificialmente fabricadas por um algoritmo que dita o que é ou não belo.
Lembre-se: vocês são uma só
Se MaXXXine (2024), de Ti West, apenas toca superficialmente na farsa hollywoodiana, A Substância não tem medo de sujar as mãos de sangue. Assim como vamos acompanhando a transformação de Seth Brundle (Jeff Goldblum), personagem de A Mosca (1986), de David Cronenberg, em um inseto monstruoso e gosmento, o novo filme de Coralie Fargeat aproveita as possibilidade do body horror tão presente em produções cronenbergianas para dissecar as problemáticas capitalistas de uma sociedade intrinsecamente patriarcal de um jeito alucinante, colocando a protagonista vivida por Moore em um conflito obsessivo de autossabotagem e ódio ao próprio corpo a partir de violações gráficas da pele.
Tudo isso fica muito nítido graças ao humor nada sutil do roteiro de Fargeat, além, claro, da extasiante performance de Demi Moore, que está especialmente brilhante como Elisabeth Sparkle. Usando closes sufocantes no rosto da atriz e enquadramentos desconcertantes, Farget se apoia na versatilidade de Moore para criar uma protagonista complexa cuja jornada doentia culmina em uma explosão de bizarrices que vão além do inseto monstruoso que acompanhamos em A Mosca.
Os cenários futuristas e as cores vívidas se unem para explorar a objetificação de corpos femininos que, mesmo aparentemente perfeitos, ainda não são suficientes para satisfazer o prazer masculino. É uma constatação fácil de entender – afinal, como dito, A Substância não é um filme muito sutil em suas críticas – e de ser visualmente representada, como acontece na cena em que Elisabeth, em seu corpo matriz, como o programa misterioso o chama, começa a se debater em frente ao espelho após inúmeras tentativas de se sentir mais “bonita e jovem” para sair com um antigo colega.
Aqui, essa problemática ganha uma nova camada quando sabemos que Elisabeth usa Sue, seu “eu mais jovem e melhorado”, como parâmetro para tentar alcançar a sensação de conforto em sua própria pele. Margaret Qualley (Maid), recém-saída de duas parcerias breves com o diretor Yorgos Lanthimos no excelente Pobres Criaturas (2023) e no truncado Tipos de Gentileza (2024), complementa a performance de Moore trazendo o outro lado da moeda, assumindo uma aura angelical e plástica que os violentos padrões de beleza vendem como a única opção para se ter uma felicidade genuína.
Elisabeth e Sue se alimentam uma da outra com propósitos distintos, mas ambos surgem a partir da busca incessante pela perfeição. Se a personagem de Moore encontra no radical programa uma solução para voltar a ser vista e celebrada pela mesma indústria que a descartou, Sue se aproveita da situação para assumir o controle da “própria vida” e, assim, viver a sua juventude na frente da câmera que tanto a adora. É assim que cada parte do duplo alcança a perfeição à sua maneira – até que esse objetivo se torna uma obsessão monstruosa, inclusive no caso de Sue, que passa a ser consumida pelo sistema na qual está inserida.
Como uma versão kafkiana da Norma Desmond de Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses (1950), Elisabeth Sparkle se torna obcecada pela própria beleza em um ambiente que descarta mulheres com base em suas idades e onde tudo vale a pena para receber o close do sucesso. Uma indústria que destrói sonhos, fabrica oportunidades rasas e vende a ideia de que tudo é possível, basta você ser jovem, atraente e perfeito.
A Substância, então, mostra a aptidão de Coralie Fargeat em modificar estruturas narrativas previamente condicionadas para contar histórias sob o ponto de vista feminino, algo que ela já havia feito em Vingança (2017), filme que se insere no polêmico rape and revenge com a coragem para, além de subverter um tropo que, por anos e anos, só violentou mulheres na frente das câmeras em prol do prazer masculino, criticar o próprio subgênero, escancarando as problemáticas de uma sociedade que, em sua maioria, prefere se calar ao invés de tomar uma atitude humana.
De maneira distinta (mas ainda pintando seus cenários com um vermelho vivo), é isso que Fargeat faz em A Substância ao criticar como os tentáculos nocivos de Hollywood e os padrões de beleza perpetuados por discursos sociais irreais sufocam mulheres, influenciando-as a partirem em uma competição doentia contra si mesmas e umas às outras. Com uma Demi Moore intensa e uma Margaret Qualley extremamente confortável em meio ao horror corporal, A Substância é corajoso e insanamente brilhante a ponto de provocar uma explosão de monstruosidades no final dessa jornada que escancaram a crueldade da passagem do tempo em relação a mulheres, dentro e fora das câmeras, como a estrela da calçada da fama de Elisabeth Sparkle bem sugere com suas rachaduras e manchas deixadas pelo tempo. A questão é que nem por isso ela deixa de ser uma estrela, custe o que custar.
A Substância estreia em 19 de setembro nos cinemas brasileiros.
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