The Witcher: Qual adaptação é melhor, a série da Netflix ou os jogos da CD Projekt?
The Witcher: Qual adaptação é melhor, a série da Netflix ou os jogos da CD Projekt?
Franquia criada por Andrzej Sapkowski chegou aos jogos e streaming, mas qual adaptação é melhor?
The Witcher surgiu em 1986 quando o polonês Andrezj Sapkowski fez sua estreia como escritor publicando o conto de mesmo nome em uma competição na revista Fantastyka. A demanda por mais histórias do “bruxo” foi o bastante para o autor publicar outras 14 histórias antes de começar a série de livros em 1994.
Desde então, os livros se tornaram sucesso não só na Polônia mas ao redor do mundo todo. A série foi traduzida para 37 idiomas e, eventualmente, chegou também a outras mídias, com o filme polonês The Hexer, de 2001, bem como a série de mesmo nome e também produzida na Polônia, lançada em 2002, além de quadrinhos e, claro, os jogos da CD Projekt Red e a série da Netflix.
Essas duas últimas versões ganharam o mundo, e contam com inúmeros fãs. Mas qual delas é uma adaptação melhor do universo de Sapkowski? É esta a questão que vou discutir neste artigo.
Uma viagem pelo Continente
Antes de mais nada, é preciso estabelecer que os jogos não se propõem a adaptarem exatamente o que acontece nos livros de The Witcher. Ao contrário, no primeiro título desenvolvido pela CD Projekt e lançado em 2007, somos apresentados a uma história inteiramente nova, que ocorre após os eventos do último livro lançado até então, tornando os jogos uma adaptação do universo ao invés da trama.
De certa forma, isso deu a eles maior liberdade, uma vez que possibilitou a construção de novas tramas e situações, explorando mais a fundo personagens que tinham menos espaço ou criando elementos completamente novos. Por trazerem novas histórias, os jogos têm liberdade criativa sem alterar qualquer elemento dos livros, buscando desenvolver a trama para além deles – efetivamente sendo uma forma de ampliar o universo de The Witcher ainda mais, ao invés de simplesmente transpor o que já existia para uma mídia diferente.
Para lidar com os problemas de apresentar um universo já estabelecido ao público que não o conhecia antes dos games, a série traz uma solução simples. No primeiro jogo, Geralt perdeu a memória, permitindo que o protagonista icônico ainda assim sirva como ponte entre jogador e universo, já que precisa redescobrir este mundo e sua própria história ao longo do caminho.
Embora a trama do primeiro game de The Witcher seja a mais fraca da trilogia (bem como a que menos se preocupa em continuar eventos da obra literária), a série de jogos rapidamente avança no que diz respeito a explorar mais do mundo com seus reinos e possibilidades. The Witcher 2, por exemplo, se beneficia principalmente de personagens que aparecem pouco ou são apenas citados nos livros. Saskia é o filhote do dragão dourado salvo no conto do segundo livro, enquanto Iorveth é apenas mencionado como um líder dos Scoia’tael que em teoria deveria ter sido morto durante os eventos de A Senhora do Lago, como parte das exigências para paz entre Nilfgaard e o Norte. O padrão utilizado pela CD Projekt logo fica claro. Principalmente no início, o foco em personagens “menores” dos livros permite que eles mantenham sua liberdade sem correr grandes riscos.
Claro que, ainda assim, os jogos fizeram mudanças. Uma das maiores críticas que os fãs dos livros têm é sobre a caracterização de Triss Merigold, personagem central ao longo dos três jogos, cuja personalidade é muito mais amigável e gentil do que sua versão nos livros, obcecada por Geralt. As críticas quanto ao aumento de seu papel e relação não só com o caçador de monstros, como também com Ciri, são inúmeras, principalmente pela sensação de que diversas vezes ela ocupa um lugar que deveria ser de Yennefer.
O que nos leva às principais mudanças na base deste universo serem causadas pela mudança de mídia. Diferente dos livros, os jogos são uma experiência interativa, exigindo maior engajamento do jogador como parte do universo. Para que isso aconteça, Geralt se torna menos um personagem e mais uma interface, falando pouco e podendo tomar decisões que não seriam coerentes com os livros (como o próprio romance com Triss).
É também pela jogabilidade que o mundo conta com muito mais trabalho para o bruxo, que frequentemente passa por dificuldades nos livros. Mesmo os equipamentos e poderes foram expandidos em benefício do jogador – os sinais, que se tornaram algo tão marcante para a franquia, não eram frequentemente usados em combate ou sequer tinham nomes na obra escrita por Sapkowski.
Outras mudanças que se destacam ocorrem principalmente em The Witcher 3, que é ao mesmo tempo o mais próximo da história dos livros e o que mais a altera. Enquanto os dois anteriores se baseiam principalmente no universo, atmosfera e personagens, o terceiro game retoma a trama dos livros, com Ciri sendo procurada por todos devido a seu poder.
Diferente de sua contraparte literária, porém, Ciri é a personagem com o poder desde o princípio, e não apenas procurada por seu sangue e profecias que sugerem que seus descendentes é que serão os “escolhidos” para mudar o mundo.
A obsessão com usá-la para criar uma linhagem poderosa é algo que permeia os livros, com a garota sendo alvo de inúmeros planos desconfortavelmente próximos da violência sexual, ainda que não se concretizem. Os Aen Elle querem gerar uma descendente mais pura de Lara Dorren por meio dela. Vilgefortz deseja usar o poder do Sangue Antigo… usando sua placenta. Mesmo Emhyr, o pai de Ciri, planejava se casar com ela e gerar um filho poderoso o bastante para se tornar um imperador quase divino.
Ainda que muitos critiquem que a própria Ciri tenha se tornado o centro da narrativa e possível salvadora do mundo nos games, essa é uma versão muito mais interessante da história do que uma garota constantemente ameaçada por aqueles que querem abusar dela para gerar um possível salvador. Além disso, a base permanece sendo a apresentada nos próprios livros, que mostram o quão poderosa ela própria tem o potencial de ser. De qualquer modo, não é uma decisão feita por acaso para os jogos: mesmo em 2015, seria óbvio o quanto a narrativa precisava ser atualizada para atingir um público maior.
Nem tudo é perfeito, claro, e em busca de atualizar a história, o game deixa de lado alguns temas dos livros. Isso é visto principalmente por meio da grande ameaça de The Witcher 3, com a Geada Branca, que é apresentada como uma força mística com o potencial de destruir o mundo, enquanto nos livros funciona como um comentário ácido relacionado à mudança climática. A Caçada Selvagem não é tão bem explorada quanto poderia ser, embora os livros também não ofereçam muito material nesse sentido. E, claro, além das decisões pessoais de Geralt, o jogador tem o poder de influenciar todo o universo em que se encontra, tornando a história mais subjetiva e podendo levá-la para caminhos mais ou menos distantes da versão literária.
Apesar das mudanças, é possível afirmar que os jogos se mantêm fiéis à construção de mundo na maior parte do tempo. Além disso, o saldo é majoritariamente positivo quando se trata não só das situações apresentadas, como também dos personagens originados na versão escrita por Sapkowski.
Dê um trocado pro seu bruxo
Deixando os jogos de lado momentaneamente, é hora de olhar para a série. Estreando em 2019, The Witcher trouxe para as telinhas da Netflix uma história que, desde o princípio, entende que Geralt não é seu único personagem principal. Adaptando os contos dos primeiros livros de Sapkowski, a produção estrelada por Henry Cavill, Anya Chalotra e Freya Allen se desviou pouco do trabalho do escritor – pelo menos em sua primeira temporada.
Em seu primeiro ano, as principais mudanças apresentadas são acréscimos, alguns muito bem-vindos. É o caso, por exemplo, da história de Yennefer, apenas sugerida nos livros ao invés de mostrada como na série. A versão audiovisual constrói melhor sua heroína, e busca fazer o mesmo com Ciri, enquanto conta as aventuras de Geralt.
Alguns deslizes certamente incomodaram fãs da obra original desde o início, como a caracterização da rainha Calanthe e seu ódio aos elfos (principalmente considerando a linhagem da família de Ciri). Mesmo assim, é inegável que a primeira temporada busca desvios que acrescentem à trama por conta de seu novo formato, que exige que suas protagonistas tenham maior apelo e sejam melhor trabalhadas desde o início, diferente dos livros onde o papel central de ambas foi “descoberto” por Sakowski no decorrer da trama.
Tudo muda com o segundo ano da série. Após desenvolver Yennefer e dar a ela o protagonismo merecido, a produção da Netflix se perde sem saber exatamente como manter a feiticeira relevante, a jogando em uma narrativa cansativa, por vezes incoerente, e que cai em clichês incômodos ao retirar o poder de uma de suas personagens mais poderosas. Mesmo quando tenta se aprofundar e expandir naqueles menos explorados na obra de Sapkowski, como Fringilla e Francesca, o segundo ano de The Witcher o faz de modo raso e desinteressante. Isso sem entrar na questão das mudanças drásticas, como foi o caso de Eskel, transformado em um cara desnecessariamente desrespeitoso, arrogante e chato.
Saindo dos personagens em particular e olhando para a narrativa como um todo, a segunda temporada também se afasta dos livros ao incluir a trama sobre os monólitos. Como dito anteriormente, acrescentar à história não torna a adaptação necessariamente ruim – mas, quando isso acontece sem cuidado com o universo em questão e parece existir apenas para justificar um spin-off (alguém se lembra de The Witcher: A Origem?), é com certeza um ponto negativo para a série.
A terceira temporada da produção da Netflix buscou se reaproximar dos livros, trazendo uma história mais próxima do que é contado em O Sangue dos Elfos e Tempo do Desprezo. Claro que nem tudo pode ser consertado após as divergências do segundo ano, algo refletido na mudança de tom entre os livros e a série, algo que se mantém constante.
A diferença é notável, por exemplo, em como os elfos e suas relações com outros não-humanos são apresentados. A batalha em Shaerrawedd, nos livros, não é sobre Ciri, e sim sobre humanos manipulando elfos e anões a se enfrentarem quando os Scoia’tael atacam a caravana de Yarpen – e, apesar da vitória dos anões, a situação é sombria e agridoce, uma vez que os anões se vêem obrigados a matar outros não-humanos. Ao invés disso, Francesca continua obcecada em capturar Ciri, algo que não acontece nos livros mas não poderia ser ignorado após a história estabelecida na temporada anterior, e leva os dois grupos a se enfrentarem sem qualquer questão mais profunda acerca disso.
Outras alterações que tornam a temporada menos fiel foram feitas para focar a trama por meio do trio de protagonistas. É o caso do baile de Thanedd ser planejado por Yennefer, ou Geralt descobrir que alguém está tentando criar uma “falsa Ciri”. E, nesses casos, a mudança se justifica por meio da transposição de mídia, uma vez que no formato de série de TV é importante manter os eventos relacionados aos protagonistas de modo mais próximo.
A maior mudança – e que gerou uma onda de reclamações tanto de fãs dos livros quanto dos jogos – foi a inclusão de Radovid como um personagem bem diferente de suas outras versões. Neste ponto dos livros, o príncipe, que é filho de Vizimir e não seu irmão mais novo, deveria ser uma criança que, após presenciar a manipulação da feiticeira Philippa Eilhart e seguindo a morte de seu pai, cresce odiando as feiticeiras cada vez mais. Assim, ele não tem qualquer papel nessa parte da história, e o resultado de seu ódio é explorado pelos jogos que dão continuidade à trama, onde vemos Radovid crescido e utilizando seu poder para perseguir aqueles que odeia.
A mudança é certamente uma escolha controversa, embora não prejudique a série da Netflix como produção isolada. Como adaptação, porém, é um desvio que não parece acrescentar mais ao personagem que seu possível futuro desenvolvimento faria, mas olhando apenas para a série, o Radovid da Netflix funciona, cumprindo o papel a que se propõe.
Esta não é uma lista extensa de todas as mudanças que a série fez, e sim um comentário sobre alguns dos principais pontos de divergência, bem como do quão bem-sucedidas essas escolhas são. Logo fica claro que a série toma muito mais liberdades em relação aos livros, apesar de se propor a adaptar a história contada neles, e que apesar de se sair bem em alguns casos, acaba perdendo a mão em diversos pontos.
O que faz uma boa adaptação?
Apresentadas as respectivas adaptações do universo de Sapkowski, permanece a pergunta: Quem se saiu melhor? Para responder a isso, busco auxílio nos estudos literários, mais especificamente em Uma Teoria da Adaptação (2006), da teórica canadense Linda Hutcheon. Em seu estudo, ela investiga o que é uma adaptação, como ela se dá, e os méritos e dificuldades do processo. Mais relevante aqui, porém, é o reconhecimento da autora de que adaptações são inevitavelmente assombradas pelas obras em que se baseiam, ainda que sejam, ao mesmo tempo, “objetos estéticos com seu próprio mérito”.
Assim, é inegável que toda adaptação será comparada ao original no qual se inspira – mas isso não significa que a “proximidade ou fidelidade do texto adaptado deva ser o critério de julgamento ou foco da análise” de uma adaptação, de acordo com a autora. Julgar uma adaptação vai muito além de comparar com o material original e esperar que tudo seja o mais próximo possível, principalmente porque não é possível que adaptações sejam exatamente iguais aos textos em que se baseiam.
Parte disso se deve principalmente à mudança de formato. Nos livros de The Witcher, Andrzej Sapkowski tem a oportunidade de entrar na cabeça de seus personagens, mostrar eventos da perspectiva de Geralt, deixar que personagens entrem e saiam da história de acordo com os eventos que cercam os protagonistas. Há mais espaço para explorações íntimas que nem sempre podem ser refletidas em outros formatos, particularmente no que diz respeito a conflitos internos. Certos personagens e circunstâncias funcionam de acordo com o tom da obra, que não busca se prender à realidade, enquanto temas e discussões mais graves coexistem com situações absurdas e fantásticas.
“Assim como não há algo como tradução literal, não é possível existir uma adaptação literal”, Hutcheon defende em seu estudo. Uma boa adaptação de The Witcher, então, não seria aquela que mantém tudo exatamente como é nos livros, e sim que captura a essência do material fonte ao mesmo tempo em que abraça um novo formato.
Nesse ponto, fica claro que a primeira temporada da série, por exemplo, seria um exemplo de boa adaptação. Ela traz mudanças que levam em consideração a transposição de um formato para outro, sem desconsiderar a essência da obra – e, pelo contrário, abraçando desenvolvimentos diante da perspectiva de já conhecer toda a história, permitindo que Yennefer tenha protagonismo desde o início, por exemplo. É óbvio que a série traz divergências, mas utiliza a adaptação para sua vantagem, visando expandir a história e contá-la da melhor forma possível no audiovisual.
Esse, porém, não continua sendo o caso nas temporadas seguintes, principalmente em seu segundo ano. A obra da Netflix muitas vezes parece não entender a essência dos momentos que adapta, da trama em si ou papel de certos personagens, deixando de lado elementos que tornam The Witcher o que é. Ainda que retome um caminho promissor com a primeira parte de sua terceira temporada, entendendo que é importante estabelecer a família improvável formada entre Geralt, Yennefer e Ciri, a série perde foco e não consegue criar tramas originais que pareçam se encaixar com a proposta do material fonte.
É nesse sentido que os jogos mais se destacam pois, ainda que se proponham a ser uma sequência ao invés de recontar a história, sua narrativa é, na maior parte do tempo, plausível como continuação da obra de Sapkowski. O trabalho da CD Projekt consegue apresentar um mundo característico, distinto e único, com personagens marcantes e verossímeis ao universo dos livros. Mas o ponto mais forte dos games como adaptação é abraçarem que são jogos, não livros – e permitirem que o jogador se coloque no lugar de Geralt mesmo que isso o torne um personagem menos único, ou que escolhas sejam feitas ao invés de seguir uma história preestabelecida.
Ainda que seja distintamente The Witcher, a adaptação da CD Projekt encontrou sua força na mídia escolhida. Não é à toa que mesmo a série vez ou outra acena às adições dos games, por mais que tente evitar isso (utilizando os sinais em batalha, por exemplo, ou tornando Triss uma personagem mais amigável). O terceiro jogo, em especial, conquistou seu espaço no mundo dos jogos se consagrando como um dos maiores favoritos de todos os tempos quando o assunto são RPGs, servindo como porta de entrada para inúmeros fãs que buscaram os livros depois.
Em comparação, a série não atinge os mesmos marcos, e muitas vezes falha em transpor seus personagens, motivações e desenvolvimentos de forma coerente com o original e adequado para a nova mídia. Há acertos, claro, incluindo o cuidado em ter um elenco mais diverso ou trabalhar Ciri desde o início como uma protagonista, mas não o suficiente para compensar pelos erros. A série da Netflix não é uma adaptação boa, não por divergir do que acontece exatamente no material original, e sim por não fazê-lo para construir algo interessante, bem trabalhado e adequado para o formato de série, que ainda assim dialogue com a fonte.
Assim, mesmo que tenham propostas diferentes, é possível apontar um lado “vencedor” dessa disputa. Os jogos não são perfeitos (longe disso, e pessoalmente sequer gosto do primeiro título da trilogia), mas transpõem a essência do material original para uma nova mídia. Por meio dos games, muitos foram levados aos livros – e encontraram neles mais do universo pelo qual se apaixonaram, ainda que em um formato diferente.
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