Review: The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom resgata a magia de jogar videogames

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Review: The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom resgata a magia de jogar videogames

Por Gabriel Mattos

Ao pensar em uma sequência para  The Legend of Zelda: Breath of the Wild, jogo que revolucionou a forma de pensar em mundo aberto, a Nintendo enfrentou um enorme dilema: para onde ir depois de entregar um dos games mais celebrados da história? Determinada a explorar novas possibilidades para o futuro, a série decidiu questionar o que funcionou tão bem no passado que até hoje desperta nostalgia. Qual era o ingrediente mágico que tornava os jogos antigos tão geniais? Como resgatar esta magia para o presente? E a resposta veio na forma de The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom, o mais recente exclusivo para Nintendo Switch.

Ficha técnica

Título: The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom

 

Data de Lançamento: 12 de maio de 2023

 

Desenvolvedora: Nintendo

 

Plataformas: Nintendo Switch

 

Gênero: RPG de ação, aventura em mundo aberto, puzzle, sandbox

 

Tradução para Português: Não (sem legendas ou dublagem)

É um segredo para todo mundo!

(C. Nintendo)

Ao longo dos anos, muitos falharam em tentar replicar o encanto dessa era mágica, marcada pelo Super Nintendo. Com poucos pixels e um controle, a Nintendo construiu um respeitado legado que segue sendo elogiado até os dias atuais, com clássicos como Super Metroid, Earthbound e The Legend of Zelda: A Link to the Past. Porém, o segredo que torna estes jogos tão memoráveis não é o seu visual nostálgico, por incrível que pareça. Na verdade, sem poder contar com gráficos refinados, os games da época precisavam apostar em outras formas de fisgar o público para a sua fantasia, que Tears of the Kingdom domina com maestria: a inovação e o mistério.

Enquanto Breath of the Wild apostava no senso de aventura dos jogadores para incentivar a exploração, sua sequência confia na curiosidade. Naquela coceira de desvendar um enigma, no instinto de fofoqueiro que nos faz mover montanhas para chegar ao fundo de uma história. As primeiras cenas do jogo fazem um ótimo trabalho em acender uma fagulha de mistério, desafiando tudo que os jogadores acreditavam sobre a mitologia de The Legend of Zelda. Depois disso, tudo que o roteiro precisa fazer é alimentar o fogo.

O combustível escolhido a dedo foi o cenário principal desta aventura — o reino de Hyrule. Repetir o mapa poderia ter se tornado um grande erro da continuação, mas Tears of the Kingdom soube usar essa familiaridade do público ao seu favor. Os produtores contam exatamente com a expectativa dos veteranos de encontrar tudo igual para subverter as expectativas e virar tudo de ponta cabeça.

(C. Nintendo)

Vilas foram invadidas por piratas, lagos viraram lamaçais, povos foram devastados pelo narcotráfico e tudo mais que se possa imaginar. Toda descoberta sobre este novo mundo, tão distante das lembranças de Breath of the Wild, aumenta a vontade de correr para a próxima vila para descobrir o que mudou. Cada rumor instiga a curiosidade do jogador com novas possibilidades. E o mistério que começou como uma fagulha logo se transforma em uma vontade compulsiva de explorar que se espalha por todos os cantos como um incêndio.

E este desejo incontrolável acaba levando a lugares surpreendentes. Dessa vez, Hyrule está infestada de cavernas e poços que sempre escondem algum segredo incrível. Nunca se sabe o que pode acontecer nesses lugares: será o covil de monstros ou uma passagem secreta para outra vila? Talvez o esconderijo de uma armadura amaldiçoada ou um confuso labirinto? O resultado é uma incógnita, mas estas cavernas são sempre uma garantia de uma rápida e gostosa aventura com uma recompensa bem satisfatória no final. Uma ótima maneira de incentivar a exploração, que continua sendo a alma do jogo.

Mas nenhuma área estimula tanto a vontade de desbravar o desconhecido quanto o subterrâneo — afinal, nada atiça tanto a curiosidade quanto o mais absoluto breu. Escondida sob as sombras, as profundezas oferecem um vasto e perigoso terreno a ser explorado como quiser. Riquezas são o que não faltam, mas ameaças também. Um passo em falso pode te colocar diante a um chefe corrompido capaz de drenar a sua vida quase que permanentemente em um único golpe. No escuro, o simples fato de planejar o seu destino vira um empolgante desafio. Lembra uma versão mundo aberto do Dark World, de A Link to the Past, onde tudo parecia determinado a te matar, mas com uma certa pureza de Nausicaa do Vale do Vento, a animação do estúdio Ghibli que tem uma terra fúngica intocada pelos humanos.

(C. Nintendo)

As referências a outras obras do clássico estúdio de filmes animados japoneses não se limitam ao subsolo. A própria trama carrega uma delicada harmonia entre inocência, ameaça e melancolia, só antes vistas em tramas renomadas como A Viagem de Chihiro. Foi um avanço surpreendente quando comparado a Breath of the Wild, muito criticado por ter um enredo muito ralo. E mesmo com a mesma entrega assimétrica e não-linear de seu antecessor, separando sua trama em breves memórias que podem ser encontradas pelo mapa, dessa vez a história tem um impacto absurdo que acerta como um soco.

Parece como um enorme quebra-cabeça, provocando com um vislumbre da imagem completa, mas sem revelar completamente os seus segredos antes do momento certo. Todo fragmento de memória tem gancho poderoso que entrega alguma resposta a uma suspeita do jogador, deixando sempre preparado um gatilho para atirá-lo em direção a próxima teoria. O mistério mais uma vez é o combustível para a exploração. Tears of the Kingdom continua fisgando o jogador para desbravar o seu mundo aberto, mesmo enquanto conta a turbulenta história de Zelda em um passado distante.

Afinal, até mesmo a escolha da história é bem intencional e conversa com a proposta principal do jogo: mergulhar no passado para resgatar o futuro. Enquanto Link luta para proteger os diferentes povos de Hyrule no presente, Zelda procura uma luz no período do auge da magia de seu reino. A heroína aprende com os fundadores de sua cultura lições para vencer uma guerra muito a frente de seu tempo, assim como a Nintendo faz neste jogo. E ao olhar para trás, o estúdio notou que, com o passar do tempo, os jogadores deixaram de dar valor ao essencial.

Um elo com o passado

(C. Nintendo)

As mecânicas mais básicas que compõem um jogo, como vida, defesa, armas e até mesmo a movimentação dos personagens tinham muito mais destaque nas primeiras gerações de consoles — quando ainda eram de certo modo novidade — que nos tempos atuais. Aos poucos, os jogadores acabaram se acostumando com estes conceitos e os desenvolvedores pararam de brincar com seu potencial, o que a Nintendo decidiu resgatar com força em Tears of the Kingdom.

O conceito do Gloom, por exemplo, uma escuridão que consome tudo o que toca, mexe com o modo que os jogadores gerenciam a vida. Ao ser atingido por um golpe do tipo, parte da vitalidade de Link fica bloqueada, não sendo regenerada nem mesmo com os itens de cura comuns. Em um chefe bem mais avançado, há um caso ainda mais extremo em que seus ataques são tão poderosos que apagam completamente um ponto de vida do arsenal do herói, sem chance de reverter até o final da batalha. Estes momentos que desafiam as regras mais anciãs dos videogames fazem o coração bater mais rápido e sua mente pensar: “A verdadeira magia dos games está de volta!”

O modo em que o título lida com as armas é outro ponto revolucionário. Breath of the Wild recebeu muitas críticas ao introduzir um sistema de durabilidade limitada, em que armas quebravam após uma certa quantidade de golpes para incentivar que o jogador varie seu arsenal. Tears of the Kingdom corrige esse problema sem deixar de lado a ideia original. As armas ainda vão se partir, mas dessa vez podem ser facilmente reconstruídas. Todas as melhores armas do jogo são feitas com uma magia de fusão do jogador unindo uma base com restos de monstros ou outros recursos. Não só as possibilidades de combinações são basicamente ilimitadas, mas reconstruir aquela arma favorita fica muito mais simples. Não precisa encontrá-la, apenas criá-la. Acaba sendo mais trabalhoso, sem dúvidas. Porém muito recompensador.

(C. Nintendo)

Para construir novas maneiras interessantes de jogar, Tears of the Kingdom não tem medo de desconstruir o que for preciso em seu caminho. O que é curiosamente representado também na trama, mas no momento presente da história. Enquanto Breath of the Wild acompanhou a libertação de Hyrule de uma antiga maldição, a sequência mostra uma Hyrule se reerguendo das ruínas. De uma aventura intimista, em que Link carregava o peso do mundo sozinho, agora temos uma jornada para reconstruir um grupo de amigos. As cidades precisam ser reconstruídas após a Calamidade. Os povos precisam ser reconstruídos depois da Perturbação (Upheaval, no original). Reconstrução é o coração do jogo.

Desconstruir para reconstruir está tão intrinsecamente ligado à essência do jogo que se tornou sua principal mecânica. A qualquer momento, é possível reunir peças e construir algo novo que der na telha. A ideia é incentivar a criatividade, a expressão e independência dos jogadores, algo que não é discutido o suficiente nos games. Ao invés de entregar um carro pronto, por exemplo, Tears of the Kingdom prefere oferecer as peças e desafiar o jogador a montá-las da maneira que lhe convir. Pode sair uma moto, um cortador de grama ou um robô gigante. Enquanto Breath of the Wild testava os limites da curiosidade, Tears of the Kingdom celebra sempre que possível a criatividade.

Qualquer coisa é possível em Tears of the Kingdom. Contudo, tamanha liberdade tem um risco imenso de sobrecarregar o público com o excesso de escolhas. Quem não está muito acostumado a exercitar a liberdade pode acabar se limitando a replicar sempre as mesmas criações. O que não é um problema, mas cria uma sensação de que está perdendo parte da experiência. O game até tenta remediar um pouco a situação. Contudo, para isso, acaba sacrificando um ponto forte de seu antecessor: os shrines.

(C. Nintendo)

Antes elogiados por incentivar soluções criativas e inesperadas, estas salas com rápidas sequências de desafios se tornaram uma extensão do tutorial, determinado a mostrar maneiras incríveis de combinar as peças. De certo modo não deixam de ser interessantes. Sempre é divertido quebrar a cabeça para entender que os desenvolvedores esperam que você cruze um abismo só combinando uma mola com um fogão de cozinha portátil, por exemplo. Mas perde um pouco da magia não poder criar absolutamente qualquer coisa nesse curto espaço de tempo.

Pode soar como se o jogador fosse transportado para uma sala de aula depois de passar horas livres brincando no recreio. Mas felizmente o excelente design das fases torna a experiência como um todo bem agradável. Tem o mesmo espírito das fases da franquia Super Mario, que focam em um único elemento e desafiam o jogador a superá-lo no máximo de situações possíveis. Ao chegar ao final, formas engenhosas de usar as peças acabam sendo reveladas. Não tem o mesmo sentimento de recompensa de descobrir uma solução que é só sua, mas ainda é bastante empolgante, como conquistar a bandeira ao final de um nível do bigodudo.

Para compensar o rebaixamento dos santuários, a Nintendo atendeu aos pedidos dos fãs e trouxe as tão aguardadas dungeons de volta. Podem não ser os melhores da história da franquia, mas os templos de Tears of the Kingdom são um grande aceno na direção certa.

(C. Nintendo)

No seu auge, as dungeons eram como um grande quebra-cabeças espacial em que o desafio era descobrir o melhor caminho para alcançar o chefe, entre alavancas que liberavam portas distantes, salas com pequenos enigmas, grupos de inimigos e outros obstáculos. O que tornava tudo mais especial era o item exclusivo conquistado no lugar que servia não só de recompensa, mas também como uma chave extra para liberar novos caminhos e uma arma inusitada contra o chefe final. Basicamente tudo que torna uma aventura interessante disponível em um só lugar.

Tears of the Kingdom resgata os principais elementos, mas sacrifica a sensação maravilhosa de liberar aos poucos o caminho para o chefe em prol da não-linearidade, que é o grande ponto de venda do jogo. O resultado são templos com temáticas interessantes, com desafios condizentes, mas que não atingem seu pleno potencial. Seguem a mesma estrutura: logo no início há uma sala para o chefe com quatro travas que precisam ser liberadas cumprindo os desafios de um caminho bem óbvio. Algumas disfarçam melhor esta fórmula engessada, mas todos funcionam da mesma forma. O que acaba traindo a sensação mais gostosa de todo o jogo: o senso de mistério.

(C. Nintendo)

Ainda entretém com seus desafios, principalmente quando se considera o caminho para chegar nesses templos como parte da experiência. O Templo do Vento, por exemplo, um dos mais tediosos para mim, teve um dos caminhos mais divertidos, com trampolins que arremessam o jogador para chegar cada vez mais perto de uma dungeons nos céus. O Templo da Água me empolgou com uma reviravolta interessante e por não se parecer com os demais da franquia. Mas o meu favorito segue sendo o Templo do Relâmpago, o mais tradicional entre todos.

E por incrível que pareça, mesmo que as dungeons não sejam tão impressionantes, os chefes compensam demais. Todo confronto com estes titãs é tão cheio de personalidade que mesmo quando não desafiam tanto o jogador, ainda é uma quebra bem vinda ao ritmo da história. Mesmo fora dos templos, existem inimigos colossais que impressionam com a sua presença e rendem confrontos verdadeiramente épicos, como dragões e colossos. A variedade de inimigos está melhor de modo geral, uma grande evolução em relação a Breath of the Wild que só foi possível graças ao reaproveitamento de seus recursos.

Nota: 10/10

The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom é uma obra-prima. O jogo pega tudo que foi criticado em seu genial antecessor, melhora e ainda revoluciona a sua própria proposta para viciar novamente o público em explorar todas as camadas do Reino de Hyrule. Mais que isso, é um exemplo do que há de mais poderoso nos videogames como um meio.

 

Depois de anos assistindo a indústria caminhar em direção a linguagem cinematográfica, apostando mais em fidelidade gráfica e sacrificando toda a sua originalidade, a Nintendo lança Tears of the Kingdom como um despertador. Um bote salva-vidas que oferece um resgate do que há de mais precioso na cultura dos videogames. Um lembrete de que é possível contar uma aventura épica onde a interação é o principal elemento, não apenas um tempero extra. Como jogadores, não precisamos nos contentar com um mar de conteúdo genérico e cada vez mais superficial. Merecemos sentir mais vezes o frio na barriga que é mergulhar pela primeira vez pelos céus de Tears of the Kingdom.

 

Por esse motivo, o game leva nota 10 da Legião dos Heróis.

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