Por que é tão difícil adaptar as obras de Junji Ito para anime?

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Por que é tão difícil adaptar as obras de Junji Ito para anime?

Por Gus Fiaux

Quando falamos em mangás de horror, é difícil pensar em um nome que seja tão impactante quanto o de Junji Ito. O autor, nascido em Gifu, no Japão, se tornou uma grande referência por conta de suas histórias grotescas e apavorantes, que esbanjam as influências vindas de nomes como H.P. Lovecraft, Kazuo Umezu e Mary Shelley.

Porém, se há algo que podemos dizer sobre a carreira de Ito é que ele nunca deu muita sorte com as adaptações de suas obras para o formato do anime. Recentemente, a Netflix lançou a série Junji Ito: Histórias Macabras do Japão, e isso só evidenciou como as adaptações animadas nunca fizeram justiça ao legado do mangaká. Mas por quê?

Junji Ito, um verdadeiro Mestre do Horror!

Um breve histórico

Após uma infância regada a mangás de terror, cortesia de suas irmãs mais velhas que consumiam esse tipo de material e o deixavam ler também, Junji Ito passou a se interessar pelo grotesco na ficção. Porém, quando chegou a hora de escolher um trabalho, o autor voltou sua atenção para a odontologia.

Sua primeira incursão profissional no mundo dos mangás se deu em 1987, quando ele inscreveu uma história para uma revista de horror japonesa. A partir dali, esse conto se tornaria uma série mensal publicada ao longo de 13 anos, protagonizada por uma das personagens mais adoradas de Ito, Tomie.

O autor logo seria responsável por imprimir no imaginário japonês dezenas de figuras macabras, seres sobrenaturais e horrores cósmicos, dando origem a histórias imortais como Uzumaki, Gyo, Hellstar Remina e muitos outros. E no final da década de 90, viriam as primeiras adaptações de suas obras – mas dessa vez, para filmes em live-action, algo que foi impulsionado pela popularidade do j-horror no Japão e no mundo.

Tomie se tornou uma das personagens mais famosas de Junji Ito.

Por outro lado, o campo dos animes sempre foi escasso. Em um mercado onde a adaptação animada mais serve como uma propaganda para aumentar a rentabilidade dos mangás, Junji Ito dispensava esse tipo de promoção – suas obras eram vendidas única e exclusivamente por seu talento, sua arte macabra e a curiosidade mórbida de seus leitores.

Em 2012, veio a primeira tentativa de transcrever as ideias de Ito para o formato animado. Gyo: Tokyo Fish Attack foi um OVA desenvolvido pela Ufotable, mesma produtora responsável por Demon Slayer. Com 75 minutos de duração, o anime segue a história do mangá original ao relatar uma estranha descoberta: peixes com pernas mecânicas atacando o litoral japonês e causando muita destruição.

A recepção, no entanto, foi bem aquém do esperado. Apesar de alguns visuais bonitos, os fãs sentiram uma estranheza nada satisfatória com a mescla de animação tradicional e alguns elementos tridimensionais, resultando em um visual “travado” e pouco orgânico.

Junji Ito Collection foi o primeiro anime adaptando história do autor produzido pela Studio Deen.

Em 2018, veio a segunda adaptação. Junji Ito Collection foi uma antologia de 12 episódios (cada um com duas histórias) e 2 OVAs, adaptando diferentes contos e ideias do autor. Desenvolvido pelo Studio Deen, o anime foi massacrado – e não pela falta de fidelidade nas narrativas, mas sim por seu visual simplório e econômico, que não combina em nada com as imagens extraídas de um pesadelo por um verdadeiro Mestre do Horror.

Agora, em 2023, a Studio Deen retorna com uma nova adaptação. Junji Ito: Histórias Macabras do Japão foi lançado diretamente para a Netflix, com 12 episódios – alguns adaptando duas histórias, enquanto outros adaptam apenas uma. E da mesma forma que Junji Ito Collection, o anime também recebeu críticas negativas sobretudo por conta de seu visual, já que as narrativas seguem à risca os contos curtos de Ito.

A pobreza visual é o que mais incomoda em Junji Ito: Histórias Macabras do Japão.

Por que não funciona?

É muito difícil determinar uma única causa que explique o fracasso das adaptações animadas de Junji Ito. Os mangás do autor são celebrados e devorados por fãs do mundo todo por conta de sua estranheza, das pequenas fissuras abertas em um mundo racional, que lentamente encaminham seus personagens direto para a insanidade.

Em Tomie, por exemplo, seguimos a história de uma mulher bonita e misteriosa, que seduz diversos homens com seus encantos, mas que acaba sendo morta por eles repetidas vezes – e, graças aos seus poderes sobrenaturais, ela “retorna à vida” apenas para repetir esse ciclo de novo e de novo e de novo.

Porém, o que importa em Tomie não é tanto a personagem principal. Claro, ela é a força motriz das narrativas e sua presença é muito marcante, bem como todos os momentos grotescos em que sua carne é revirada e transformada conforme ela revela seu lado mais sombrio. Porém, o que torna Tomie tão impactante é a forma como ela é vista pelos olhos de suas vítimas, como ela provoca uma mudança psicológica naqueles que a conhecem.

Pode não parecer, mas essa é uma sensação bem difícil de ser adaptada, já que força os artistas a encontrarem uma forma de tornar Tomie a causa dos problemas, mas não a grande protagonista dessa história. E mesmo com essa dificuldade, a personagem prosperou nos live-action, com 9 longas-metragens lançados de 1998 a 2011.

Uma Tomie apática em Histórias Macabras do Japão.

A mesma Tomie teve algumas histórias adaptadas em animes. Os dois OVAs de Junji Ito Collection são dedicados a apresentá-la ao público, enquanto Histórias Macabras do Japão opta por adaptar um dos contos mais desinteressantes da personagem, “Foto de Tomie”, onde ela começa a implicar com uma estudante de colegial que tira fotos de meninos na escola para vender para suas colegas de classe.

E o que fica evidente nessas duas adaptações animadas é a pobreza visual se comparada com os mangás de Ito. O autor sabe combinar muito bem a beleza com o grotesco, usando essa mescla para criar um contraste que evidencia a diferença entre o “mundo natural” e as “forças ocultas” que estão escondidas bem debaixo do nosso nariz.

Ito usa seus recursos de uma forma bem inteligente, aproveitando as sombras e um senso de mistério que envolve o público com um senso de admiração, apenas para presenteá-lo com cenas horripilantes em sequência. Até a virada de páginas de um mangá acaba sendo uma ferramenta, já que constrói sustos e jumpscares de uma forma melhor que qualquer anime baseado nas obras do autor.

Até hoje, nenhum anime conseguiu transcrever bem o senso de estranheza presente nas obras de Ito.

A Studio Deen, por um lado, é criticada justamente pela economia de suas produções. Na maior parte do tempo, os personagens que não estão executando ações ficam parados de forma bem esquisita, ou movimentam apenas a boca e as mãos, e os cenários parecem uma colagem de produtos reciclados de produções anteriores do estúdio.

Isso fica bem evidente em Junji Ito Collection e é comprovado em dobro com Histórias Macabras do Japão: as adaptações em anime de Junji Ito não funcionam porque, em sua maior parte, elas são feias. Elas não carregam consigo o senso de estranheza e pavor que surge ao ver uma linda menina revelando um segundo rosto ou tumores inumanos em seu corpo, sobretudo porque essa menina nem é tão linda para começo de conversa.

A falta de sombras, a rigidez dos personagens e a ausência de uma fluidez na animação faz com que os animes percam toda a capacidade do mangá, já que mesmo com seus quadros estáticos e imóveis, Junji Ito imprime vida e movimento em suas histórias, algo que nunca é bem transcrito para as animações.

E curiosamente, a fidelidade narrativa acaba sendo um revés dentro dessas produções, já que ao seguir ao pé da letra as histórias dos mangás, os animes escancaram como a falta de um visual sólido e bonito mais atrapalham as tramas que as ajudam. Houvesse alguma adaptação ou mudança estrutural na narrativa, talvez o problema visual nem fosse tão incômodo.

Anime de Uzumaki promete mudar esse cenário de adaptações ruins!

Ainda há esperança…

É um tanto quanto frustrante ser fã do Junji Ito e esperar por qualidade em seus animes, já que esta nunca vem. Contudo, isso pode mudar ainda neste ano, graças ao lançamento de um projeto que os fãs estão esperando para ver há muito tempo.

Uzumaki foi anunciado em 2019, como uma série de quatro episódios adaptando alguns dos contos presentes na aclamada obra homônima de Junji Ito. A direção da série fica por conta de Hiroshi Nagahama, que foi responsável pelos animes e especiais de Mushishi – notícia que, por si só, já atraiu a atenção dos fãs e fez surgir uma pontada de expectativa.

Originalmente anunciado para 2020, o anime foi adiado não uma, não duas, mas três vezes. Agora, a expectativa é que ele seja lançado em algum momento deste ano, embora ainda não exista uma data oficial de lançamento. E por mais que esses atrasos possam soar desencorajadores, a verdade é que eles são a melhor coisa que poderia acontecer com um anime de Junji Ito.

Embora não tenham sido dadas justificativas para tais atrasos, o consenso geral é que essa decisão foi tomada para que o anime seja impecável em seu visual e sua narrativa. Ainda que a história seja bem encurtada para caber em apenas quatro episódios, a impressão passada é que a produtora quer fazer “os” quatro episódios, com toda a qualidade que Ito merece em suas adaptações.

E se podemos usar o teaser lançado em 2020 como um vislumbre do que está por vir, já podemos ficar felizes. Além do estilo estar muito próximo das artes de Junji Ito, a decisão de adaptar a história em preto e branco é muito inteligente, já que evita as cores chapadas e feias usadas nos animes anteriores. Para completar, a trilha sonora desenvolvida por Colin Stetson (que também fez a música de filmes como O Menu e Hereditário) é capaz de arrepiar a espinha de qualquer um, basta conferir o vídeo:

Com sorte, Uzumaki vai entregar tudo aquilo que os fãs esperam ver em um anime do Junji Ito há anos. Isso pode abrir as portas para novas adaptações que consigam compreender o estilo do autor e transcrever isso para as telas, preservando a riqueza dos visuais e todo o senso de macabro que esteve ausente das adaptações anteriores. Mas se isso vai acontecer ou não, só o futuro nos dirá…

Junji Ito Collection está disponível na CrunchyrollJunji Ito: Histórias Macabras do Japão está disponível na Netflix. Quanto a Uzumaki, ainda não há uma previsão de lançamento.

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