[Opinião] Racialidade é o tempero para toda boa história

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[Opinião] Racialidade é o tempero para toda boa história

Por Junno Sena

“Tô esperando um Pantera Negra branco”. Esse é um argumento que não é novidade no mundo dos quadrinhos, séries ou filmes. Constantemente utilizado quando um personagem originalmente branco se torna negro em uma adaptação, o comentário pipoca nas redes como se estivesse regado de sentido. Deixando-o de lado, a minha proposta aqui não é discutir o porquê de um “Pantera Negra branco” não fazer sentido, mas como racialidade é capaz de enriquecer qualquer personagem, basta o roteirista saber trabalhar com essa mudança.

Uma que, às vezes, é tão bem pensada que consegue reinventar um personagem. Como é o caso de Namor, antagonista de Pantera Negra: Wakanda Para Sempre, interpretado por Tenoch Huerta. Mesmo que sua versão nos quadrinhos da Marvel nunca tenha sido considerada um homem branco, mas sim um “atlantis”, a abordagem latina levada às telas do cinema deram ainda maior nuance a sua história.

Latinidade de Namor foi um dos pontos altos de Wakanda Para Sempre.

A mudança de etnia proposta pelos criadores de Wakanda Para Sempre cria uma quebra de expectativa em relação a conceitos como realeza e poder. Nos quadrinhos, Namor é conhecido como o líder de uma civilização antiga, a qual acredita com todas as forças ser “melhor” que o resto da humanidade.

No cinema, Namor não trabalha com conceitos de “melhor” ou “pior”, mas segue o que é mais importante para si mesmo: a sobrevivência de sua cultura. Como Meinerz e Pereira dizem em Educação para as relações étnico-raciais e superação da branquitude, uma mudança como essa possibilita a quebra do pensamento de que “a brancura foi construída como característica associada a tudo que é bom, saudável, limpo e belo”.

Namor com seu visual original dos quadrinhos

Mesmo Namor carregando o título de príncipe submarino nos quadrinhos, tanto sua estética quanto a leitura feita sob o seu corpo pelos leitores e outros personagens era a de que se tratava de um homem branco. Desta forma, perpetuava aspectos e histórias que tanto estamos acostumados.

Em A potência da representatividade de uma Ariel Negra, de Olivia Tavares, a pesquisadora diz que histórias importantes para a sociedade foram construídas para reiterar aspectos do “mundo ocidental e eurocentrado”. Desta forma, uma princesa branca como a neve perpetua valores de beleza eurocêntricos, assim como um atlantis branco reitera que uma civilização perdida e tecnológica é branca e um Jesus branco mostra que a pureza da religião cristã apenas poderia ser idealizada por um homem branco. 

A luz de Alina Sarkov

Alina Sarkov se tornou Shu Han em adaptação de Sombra e Ossos.

O mais curioso desses aspectos é como os mesmos se enraizaram na sociedade até a atualidade. Em Sombra e Ossos, livro escrito por Leigh Bardugo, conhecemos Alina Starkov, uma garota branca que cresceu em Ravka, um lugar fictício mergulhado em guerra e sob o perigo da Dobra das Sombras e do temível Darkling.

Deixando de lado a habilidade de construção de mundo de Leigh Bardugo e como a autora conseguiu apresentar personagens carismáticos e interessantes em obras posteriores, a verdade é que Alina não possui nada a contar. Representando o mesmo tropo da “garota que não se encaixa nas normas convencionais” de livros young adult, Alina toma escolhas que dizem pouco ou nada sobre sua personalidade.

Alina nos livros escritos por Leigh Bardugo.

Pelo contrário, a personagem de Leigh é “só branca”. Reiterando esse único traço de sua personalidade, o seu grande poder para a narrativa é a “luz”. Sendo a messias, ou melhor, a única esperança para Ravka, a garota precisa aprender a controlar seus poderes e destruir toda a escuridão que assolou esse lugar há séculos.

Ao longo dos três livros, a garota aprende, cresce e muda, mas é impossível não sentir um gosto amargo após se deparar com a Alina de Jessie Mei Li na série da Netflix. Diferente do livro, Alina aqui é descendente da nação Shu Han, sendo assim uma mulher racializada. Não apenas isso, mas uma mulher que estampa em seu rosto os traços de uma nação inimiga a de Ravka.

Aqui, os sentimentos de inadequação de Alina ganham uma nova camada. Não se trata apenas da bela garota que nunca se viu como as demais ao seu redor, mas sim de alguém que nunca foi aceita pelos outros. Entre racismo e xenofobia, o que se destaca é como a nova origem de Alina faz a garota questionar o porquê de ajudar Ravka. Em outras palavras: Por que tentar salvar as pessoas que a repudiaram por toda a sua vida?

A minoria da Marvel

Os X-Men, a “minoria da Marvel”.

Com essa pequena mudança, Alina se depara com uma questão vivida por uma das maiores equipes dos quadrinhos da Marvel: os X-Men. Durante anos, vimos esses indivíduos com habilidades sobre humanos decidindo entre o “bem” e o “mal”, mas na verdade, apenas seguindo entre o caminho de Martin Luther King e Malcolm X, entre a revolução e o radicalismo, entre a conversa e a violência.

Para isso, Stan Lee e Jack Kirby criaram uma trama política por debaixo dos poderes mentais, raios e garras de adamantium. No fim, após uma equipe apenas de mutantes brancos, entenderam que podiam diversificar o escopo e fazer tramas ainda mais escancaradas politicamente, como Deus Ama, o Homem Mata.

Aqui, vemos o preconceito desenfreado contra pessoas que não se encaixam nos padrões da sociedade. Mesmo com o maior símbolo visual de Deus Ama, o Homem Mata ser um Noturno escorraçado — um ser meio demônio de pele azul —, o dedo apontado por um homem branco diz mais sobre a vida real do que alguns pensam.

A liberdade de Ariel

Esses corpos fora do padrão, aqui, transcendem o sentido biológico de corpo, mas se tornam “territórios vivos e históricos que aludem a uma interpretação cosmológica e política, no qual habitam nossas feridas, memórias, saberes, desejos, sonhos individuais e coletivos”, como diria Delmy Hernández.

Halle Bailey como Ariel em imagem de live-action.

Todas essas palavras bonitas apenas estão dizendo que um corpo racializado possui significados políticos e sociais que vão além da compreensão do indivíduo. Assim como a latinidade de Namor muda a história de Wakanda Para Sempre e a presença de uma mulher amarela em Ravka estremece as estruturas narrativas de Sombra e Ossos, uma Ariel negra abre um leque de possibilidades para o roteirista e para o público.

A história original de A Pequena Sereia é colocada, constantemente, em um debate covarde sobre as intenções de Ariel. Alguns resumem a trajetória da sereia como um ato anti-feminista, abdicando sua voz para conseguir um amor. Outros a percebem como uma busca pela liberdade que nunca encontrou no fundo do mar.

Mas, no fim, mesmo com os pesares, Ariel consegue se encaixar. Não poder verbalizar suas dores e desejos a atrapalharam, mas não a impede de encontrar seu lugar ao lado do príncipe.

Ariel em A Pequena Sereia, de 1989.

Já a Ariel de Halle Bailey parece ter um desafio ainda maior. Além de fazer um pacto com Úrsula, virar as costas para sua casa e ir em busca da sua liberdade, ela ainda precisará lidar com o fato de ser uma mulher negra em um lugar em que ela não faz ideia do que significa “ser negra”. Algo que (1) não é muito diferente da trajetória de escalação da própria Halle Bailey como a pequena sereia e (2) pode trazer grandes ramificações para a história. 

Mesmo se tratando de uma personagem fictícia, de cabelos ruivos “de farmácia” e uma cauda de peixe, a atriz foi e ainda é atacada por ser uma sereia negra. Sendo que, no fim do dia, a alteração de etnia possui a capacidade de ressignificar uma história e adicionar nuances a sensação de não-pertencimento de Ariel.

Mas, talvez nada disso chegue às telas do cinema. Talvez toda essa narrativa continue apenas no racismo dos “fãs”. O curioso é que, mesmo se o live-action se tornar apenas uma história simples e boba sobre uma sereia que quer encontrar seu príncipe, no final, ela ainda foi capaz de mover montanhas. E tudo isso pelo simples fato de fazer garotas pretas se sentirem incluídas.

Representatividade como uma mercadoria

O lado positivo dessas histórias e mudanças não excluem um outro fato: boa parte dessas mudanças visam apenas o lucro e não a inclusão. A nova Branca de Neve, por exemplo, será uma mulher latina, mas alguns insistem que uma produção mais diversa teria pensado em uma atriz albina para a história.

Já o revival de Gossip Girl é um exemplo sólido de que a diversidade apenas deu as caras como uma característica e não como uma forma de construir personagens.

Novo elenco de Gossip Girl trouxe diversidade, mas falhou na qualidade.

Tudo isso levanta um debate ainda mais profundo sobre representatividade. Isto é, quando a mesma se torna apenas mercadoria, ou como diz Zakiya Dalila Harris em A Outra Garota Negra, apenas o “ticar de uma lista”.

“Com uma maior consciência da sensibilidade cultural vem uma grande responsabilidade. Se não tivermos cuidado, ‘diversidade’ pode se tornar só mais um item que as pessoas têm que ticar de uma lista para depois descartar, algo superficial e sombrio sem nada mais além”.

Imagem promocional da boneca Ariel do live-action de A Pequena Sereia.

Esse é o lado sombrio da representatividade, em que vemos esforços nulos de diversificar o elenco, enquanto por trás das câmeras, temos os mesmos roteiristas, produtores e criadores brancos, homens e cis. E é aí que eu pergunto: O quanto vale a pena lutar por uma diversidade como essa?

Uma parte otimista minha ainda acredita que temos mais acertos do que erros na indústria neste tópico. Alina Starkov, Namor, Nick Fury, Dominó, Estelar, Gavião Negro. Talvez a resposta seja: Sim, vale a pena. Até porque, no fim do dia, a racialidade parece ser o tempero certo para uma boa história.

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