[Opinião] Verdes, roxos e azuis: o corpo preto como um alienígena cultural
[Opinião] Verdes, roxos e azuis: o corpo preto como um alienígena cultural
Por que pessoas pretas se identificam com personagens não-humanos?
Hollywood tem aprendido com seus erros e dado mais espaço para corpos negros e amarelos. Entre filmes como Pantera Negra e Shang-Chi, a palavra de ordem se tornou “representatividade” e “diversidade”. Porém, enquanto T’Challa, Monica Rambeau e Sam Wilson levantam a bandeira da negritude, existe uma área da cultura pop que usa e abusa do corpo negro, mas sem dar crédito a eles: personagens não-humanos.
Caçador de Marte, Piccolo, Gamora, Neytiri. Ao longo dos anos, cinema e televisão criaram uma série de personagens que se tornaram referência para jovens nerds e negros. Isso por que, em um mundo onde ser negro é a “excessão a regra”, se identificar com o “outro”, o ser alienígena ou mutante, não é nada difícil.
Mas, o desespero de encontrar pertencimento em histórias fantásticas sobre seres irreais esconde também um problema que só agora tem ganhado atenção: a falta de interesse dos estúdios em se comprometerem com um elenco negro.
Um apagamento negro
“Se você é branco, pergunte a um leitor de fantasia racializado se isso é importante. Pergunte com que frequência eles se viram em livros ou filmes quando estavam crescendo e como se sentiram em relação a isso”, diz a escritora Ursula Le Guin.
A fala de Ursula Le Guin é apenas a ponta do iceberg quando tratamos sobre ficção científica, fantasia e corpos racializados. De forma sistemática, esses indivíduos foram excluídos dessas narrativas.
Compreender isso não é difícil quando se percebe como a quantidade de alienígenas na Liga da Justiça perpassava o número de personagens negros. Franquias como Star Trek, Star Wars, O Senhor dos Anéis e diversas outras corroboram para esse movimento. Um que apaga a diversidade étnica em prol de um elenco majoritariamente branco, pois o mesmo é mais “atrativo” ao público.
Mas qual público? Em Racial Ventriloquism, Patricia Williams diz que a mídia tem o poder de “nos seduzir e instruir sobre quem devemos amar, odiar ou zombar — e como”.
A Disney, por exemplo, consecutivas vezes utilizou a figura de primatas como uma alegoria a pessoas negras. Tal conceito é uma herança do racismo biológico, que reforçava a “supremacia euro-americana e, além disso, justificava a escravidão”, diz Brett Mizelle.
Já o blackface é outro desses artifícios nocivos, que apaga pessoas negras e as coloca como objetos nas histórias. Que, deliberadamente, as ignora, mas não esquece completamente a sua existência. Isto é, as utilizando, mas sem nunca se comprometer a “tê-las” por perto de verdade.
“Após a abolição nos Estados Unidos, para poder criar um mecanismo de subjetividade negativa sobre a população negra, passaram a usar estereótipos de forma negativa para poder caracterizar a população negra como incapaz de conviver com os direitos democráticos de liberdade. Ou seja, ela tinha liberdade, mas não tinha cidadania”, explica o professor e ativista antirracista Juarez Xavier para o G1.
A representatividade no “outro”
É nessa falta de cidadania e identidade que surge a figura do que é alienígena e estranho como base para uma representatividade que nunca existiu. Mesmo ignorando conflitos raciais, diversos filmes utilizaram estes como uma base para suas histórias.
Nas versões cinematográficas de O Planeta dos Macacos, se encontra um discurso crítico sobre relações sociais. O pesquisador Eric Greene aponta que, mesmo que a sociedade símia seja retratada como igualitária, os produtores do filmes construíram uma hierarquia racial rígida.
Uma decisão motivada, em parte, pela insistência de que Zira e Cornelius, os amantes do filme, precisavam ser chimpanzés para que o público americano não os interpretasse como um relacionamento miscigenado.
E isso não é diferente nas versões de 2001 de Tim Burton. Nele, temos uma hierarquia clara na qual os macacos de cores mais claras — orangotangos loiros, chimpanzés de rosto rosado — estão acima dos gorilas de rosto escuro. A situação fica ainda mais curiosa quando percebemos que, no original, todos os macacos eram interpretados por atores brancos, enquanto no remake, dois atores coadjuvantes não brancos — Michael Clark Duncan e Cary-Hiroyuki Tagawa — interpretam gorilas.
Aqui, existe uma separação clara no que é negritude e o que é representatividade. Hollywood tem afirmado que ambas as noções vivem de mãos dadas, mas não é esse o caso. Uma obra pode ser representativa e não trazer nenhum ator negro; assim como pode ter todo tipo de etnia e, mesmo assim, não representar nada. Não ironicamente, o melhor exemplo para mostrar isso é o de quatro tartarugas.
Tartarugas, Ninjas e Negras
As Tartarugas Mutantes Ninja foram criadas em 1984 por Kevin Eastman e Peter Laird. Leonardo, Donatello, Raphael e Michelangelo sempre tiveram a pele verde e escamosa e o casco nas costas, mas isso não impediu o público de adotá-los como negros. Seja na forma como se comportavam ou no fato dos heróis viverem sob a ótica do preconceito, as tartarugas se tornaram uma alegoria para a negritude.
E, tudo isso, sem nenhuma pessoa negra no elenco principal da série. Ou, pelo menos, até o momento. As Tartarugas Ninja: Caos Mutante leva todos esses sentimentos sobre os personagens a um novo patamar, trazendo a cultura do hip hop e um elenco diverso para escancarar a racialidade dos seus personagens.
Mas, como é possível esses personagens representarem algo que não são? Como Piccolo, Patolino, Neyfriti, o Ele e tantos outros personagens podem fazer parte de uma comunidade em que o principal pressuposto é a cor da pele?
A resposta para isso pode estar no conceito de “blackface didático”. O mesmo se refere a um estilo retórico de mimese racial cujo objetivo não é simplesmente entreter, mas forjar uma crítica social que tem como premissa: “para entender o outro, é preciso se tornar o outro”.
Em outras palavras, é transformar o corpo negro em um corpo alienígena, atribuir personalidade, desejos, afetos e, por fim, fazê-lo passar por uma das piores experiências da existência humana: o racismo.
Esse “blackface didático” não passa de uma simples metáfora para aproximar uma audiência branca de uma discussão que a mesma acredita não pertencer. Ao mesmo tempo, a audiência negra encontra alguma representatividade nesses universos fantásticos.
Muitas vezes, essa conexão acontece através de peles azuis ou verdes, mas ainda assim, uma pele. Talvez a grande questão aqui seja: Por que é mais fácil simpatizar com um ser não-humano do que com uma pessoa negra?
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