A magia limitada de Harry Potter: Por que um reboot é a única opção para a franquia
A magia limitada de Harry Potter: Por que um reboot é a única opção para a franquia
Talvez seja hora de aceitarmos que o Mundo Bruxo não é tão rico quanto pensávamos.
Na última semana, a Warner Bros. anunciou que está desenvolvendo uma nova série de Harry Potter para o Max, serviço de streaming que vai “tomar o lugar” do HBO Max. Em vez de trazer uma nova abordagem para a franquia criada por J.K. Rowling, a série vai apenas contar a história dos sete livros novamente, com uma temporada para cada obra.
Ou seja, começaremos do mesmo ponto de partida que saímos vinte anos atrás, com uma adaptação audiovisual de Harry Potter e a Pedra Filosofal. A partir daí, teremos de novo toda a história do Menino que Sobreviveu e sua jornada para deter Lord Voldemort, o mago das trevas que o marcou quando ele ainda era um bebê.
A recepção a essa notícia foi, para ser eufemista, polarizada. De um lado, há quem critique a escolha de começar a história do zero, enquanto há aqueles que apontam para todas as problemáticas da autora – que continuará como produtora executiva da nova série. Também, é claro, há quem está empolgado para viver velhas aventuras novamente.
E eu sei, eu sei. Eu sei que muitos dos leitores do site insistem em dizer que não há nada de mais em “separar a obra do autor”. Muitos inclusive acham que as falas de Rowling não são “nada demais”, e que quem se revolta contra isso está de “mimimi”. Mas esse não é o tópico de hoje – embora tenha que ser tocado em algum momento, uma vez que se trata de uma das controvérsias mais recorrentes da franquia e de sua criadora.
Deixemos as visões da autora de lado para falar da qualidade da obra em si, e como todo o anúncio de um reboot menos de duas décadas antes do fim da saga soa até… honesto com o Mundo Bruxo.
Quando Harry Potter foi criado, em 1997, a saga passou por várias editoras antes de achar um lar na Bloomsbury. Pouco tempo depois, seus direitos foram comprados pela Warner, e logo uma adaptação para o primeiro livro estava encaminhada, graças à produção de David Heyman e a supervisão da própria J.K. Rowling.
Sem modéstias, a série se tornou um fenômeno mundial da noite para o dia, conquistando um público gigantesco e admiradores fiéis que estavam dispostos a mergulhar na história de Harry, Rony e Hermione e desbravar até os confins do Mundo Bruxo.
No entanto, toda e qualquer chance de explorar esses “confins” foi soterrada pouco tempo depois do fim da saga principal – e suas adaptações para o cinema. Entre uma coisa aqui e outra acolá, os fãs passaram mais de cinco anos contentes apenas com os conteúdos extras que a própria Rowling produzia para o finado Pottermore, o site oficial da saga.
Nessa época, era comum ver a autora sendo zoada nas redes sociais por suas “brilhantes” contribuições ao próprio universo, que vinham com uma dose de ironia intrínseca. Foi só depois que a saga foi finalizada que Rowling aproveitou para confirmar que sim, Alvo Dumbledore era gay, ou que havia um bruxo judeu em Hogwarts na época em que Harry estava na escola.
Mas logo essa era de incertezas a respeito do futuro mudou quando, em 2013, a Warner deu sinal verde para Animais Fantásticos e Onde Habitam – filme que seria escrito pela própria J.K. Rowling e que daria origem a uma trilogia. A fome cresceu e antes mesmo do primeiro filme chegar aos cinemas, a trilogia já havia virado uma quintologia.
A partir daí, Rowling começou a mudar o foco do Pottermore para acrescentar novas ideias que figurariam nos filmes anunciados. Foi assim, por exemplo, que a autora lançou um baita texto falando de todas as escolas de bruxaria do mundo, tentando expandir o assunto para além de Hogwarts e inclusive confirmando um colégio brasileiro, Castelobruxo.
No entanto, mesmo esse anúncio levantou algumas sobrancelhas, pela forma como toda a construção de mundo para além da Europa soava… estereotipada e simplista.
Basta pensar que a tal “escola de magia brasileira”, Castelobruxo, abrigava não apenas os alunos brasileiros, como também estudantes vindos de toda a América Latina, mesmo com idiomas e culturas totalmente diferentes.
O mesmo valia, por exemplo, para Uagadou, um único castelo para quase todo o Continente Africano. Ou então Ilvermorny, colégio bruxo norte-americano que, por algum motivo, também aceita alunos vindos do México, mesmo que isso não faça sentido de um ponto de vista cultural e linguístico.
Somados a isso, há problemas de construção de mundo e desenvolvimento dentro da saga principal, que passaram anos “passando batido” pelos fãs que ainda tinham um apreço pela obra. Pensemos, por exemplo, em Cho Chang, uma personagem “de origem chinesa” cujo nome é composto por dois sobrenomes coreanos.
Os fãs de Rowling sempre disseram admirar o trabalho da escritora para criar nomes e denominações únicas para seus personagens, e é por isso mesmo que Cho Chang, bem como outros personagens com nome igualmente problemático, como Kingsley Shacklebolt, deixaram um alerta na cabeça de alguns.
E é claro que a fama só piorou com o lançamento de Animais Fantásticos. O primeiro filme, de 2016, teve uma recepção morna tanto nas bilheterias quanto na crítica, o que tornou desafiador o plano de lançar cinco filmes da mesma franquia – e isso só ficou mais evidente com Os Crimes de Grindelwald e Os Segredos de Dumbledore.
Ainda que os filmes dessa saga prequel se debruçassem sobre um tema muito querido pelos fãs de Harry Potter, ao abordar a origem de Alvo Dumbledore e sua luta contra o bruxo das trevas que era seu amante, Gerardo Grindelwald, muita coisa começou a feder bem debaixo dos narizes dos executivos da Warner.
Para começar, todas as polêmicas dos bastidores, que não se limitaram a J.K. Rowling e seu apoio a organizações transfóbicas, mas também a história envolvendo Johnny Depp e os delírios psicóticos de Ezra Miller no ano passado. E mesmo isso não parece ter sido o único “culpado” pelo fracasso comercial desses filmes.
A verdade é que, mesmo sob a vigília da criadora desse universo, Animais Fantásticos era um sinal de desgaste para o Mundo Bruxo. É uma série criada em cima de infinitas possibilidades, que não apenas não soube explorar nenhuma delas bem, como também soterrou as próprias continuações.
Em 2023, temos a certeza de que a Warner não deve seguir em frente com a franquia, ao menos não em um futuro próximo. E parte disso está na própria falta de foco desses filmes e da história que eles pretendiam contar, com direito a adições ao cânone que mais soaram como invencionice para fazer os fãs da franquia lacrimejarem na sala de cinema.
De repente, Nagini ganhou uma história de origem e se tornou uma bruxa humana que, eventualmente, se transformou em uma cobra graças a uma maldição. Não só isso, mas sabe Aberforth Dumbledore, o irmão de Alvo? Então, ele teve um filho que, por algum motivo, nunca havia sido introduzido no cânone anteriormente.
Em mais de uma entrevista, Rowling deixou claro como “sempre teve essas ideias em mente”, mas nunca as colocou no papel até então. E dá para perceber: são ideias que deveriam ter sido descartadas em um esboço inicial do Mundo Bruxo, e que não deveriam ter sido ressuscitadas.
Mesmo fora do alcance de J.K. Rowling, as obras derivadas de Harry Potter se provaram incoerentes e cheias de decisões equivocadas.
Lançada em 2016 e escrita por Jack Thorne (com a benção de Rowling), Harry Potter e a Criança Amaldiçoada pode ter sido considerada uma peça incrível por sua produção, e pode até ter conquistado o título oficial de “a oitava história de Harry Potter” – dado pela própria criadora desse universo -, mas narrativamente, é uma bagunça sem fim que acrescenta as piores ideias possíveis à franquia.
A menos, é claro, que você defenda a ideia de Lord Voldemort ter tido uma filha, que também nunca foi mencionada no cânone. Aí realmente não tem muito o que fazer.
Por outro lado, a Warner sempre pareceu ter interesse em explorar mais a franquia e dar continuidade a mitologia desse mundo. Durante anos, ouviu-se nos bastidores um baita burburinho sobre uma adaptação cinematográfica de A Criança Amaldiçoada. Graças aos céus, isso nunca saiu do papel – e nem deve sair tão cedo, com o remake a caminho.
No meio disso, fãs clamam cada vez mais por obras que ajudariam a expandir um pouco o universo como já conhecemos. Algumas das mais pedidas são séries sobre os Marotos, um filme detalhando a construção de Hogwarts e até mesmo uma nova obra focada exclusivamente em Alvo Dumbledore, sem os tais Animais Fantásticos de distração.
E em todos esses casos, a própria J.K. Rowling ou parece não ter um pingo de interesse ou simplesmente não possui uma ideia boa o bastante para construir essas histórias. O universo que parecia tão rico e tão vasto então se resume a fazer mais do mesmo, com direito a uma série que ninguém pediu, tendo em vista que os filmes, além de muito recentes, ainda são amados por grande parcela dos fãs.
E venhamos e convenhamos, isso só escancara uma possibilidade que já estava bem na nossa frente esse tempo todo: talvez o Mundo Bruxo, mesmo com sua vastidão de criaturas mágicas e personagens coadjuvantes, não é tão rico, ousado ou original quanto fomos forçados a acreditar por tanto tempo.
Sem tirar os méritos de Rowling que, na época, conseguiu criar uma franquia milionária ao se apropriar de conceitos mitológicos e ideias estabelecidas por outros autores – anos antes de Hogwarts existir, já havia uma escola de bruxos no Ciclo Terramar, a popular saga da autora norte-americana Ursula K. Le Guin.
Mas o que Rowling fez não foi mero plágio, e longe de mim defender essa tese.
Não, a britânica conseguiu, de fato, criar uma história interessante e pontuada por várias reviravoltas dramáticas, com a dose certa de personagens carismáticos e um mundo até então inexplorado no mainstream – e, não podemos esquecer, Harry Potter nasceu “na hora certa”, com a predominância da fantasia na cultura pop, vide adaptações de sagas como O Senhor dos Anéis e As Crônicas de Nárnia.
No entanto, todas as obras derivadas denunciam o problema: se havia criatividade para tocar esse universo para frente, ela não existe mais. Rowling não demonstra o menor interesse em revisitar esse mundo e dar a ele novos contornos, até mesmo corrigindo problemas e defeitos dos livros que, até então, sempre foram tidos como irretocáveis.
E embora muitos de vocês se irritem com as frequentes menções às falas transfóbicas da autora, é importante lembrar que a própria Rowling usa Harry Potter como palanque e plataforma política, sempre dando vazão aos maiores absurdos toda vez que uma nova obra do Mundo Bruxo é anunciada ou está prestes a sair.
Em outras palavras, é simplesmente impossível “separar o autor da obra” porque a própria autora faz questão de associar suas visões perigosas e preconceituosas ao sucesso de sua saga – e, no processo, usa a mesmíssima influência ganha com essa obra para disseminar mais ataques virulentos a uma comunidade que não tem meios – ou o alcance necessário – para se defender.
E quanto à obra em si, há de se dizer que talvez Harry Potter estaria bem melhor longe das mãos de sua criadora. Basta pensar que as obras mais elogiadas, Criança Amaldiçoada (mesmo com sua dose de ideias controversas) e o game Hogwarts Legacy não possuem o menor input criativo da autora, e partem das mãos de outras pessoas que parecem ter um pouco mais de carinho – e respeito – pelo Mundo Bruxo e seus fãs. Mais até do que a própria criadora.
Em meio a um novo renascer da fantasia na mídia, várias obras estão ganhando a chance de furar a bolha e entrar de vez no mainstream. Percy Jackson, que teve dois filmes bem criticados pelos fãs dos livros na década passada, vai ganhar uma série no Disney+, ao passo em que sagas como Sombra e Ossos e A Corte de Espinhos e Rosas estão tendo (ou terão) suas próprias adaptações em grandes plataformas.
No campo de sagas já cultuadas, temos um movimento contrário, com a expansão de seus universos pré-estabelecidos. Foi assim que O Senhor dos Anéis ganhou uma série prequel no Prime Video e vai receber novos filmes pela Warner, e foi assim também que Game of Thrones deu origem à bem-sucedida Casa do Dragão, no HBO Max.
Porém, Harry Potter segue na contracorrente e não parece ter nada de novo para mostrar. Pelo contrário, após três filmes ruins, uma peça controversa e um jogo que, apesar de ter sido um sucesso de vendas, teve uma queda altíssima de jogadores menos de um mês após seu lançamento, voltamos às origens e vamos ver a mesma história de novo. Uau.
A realidade é que o Mundo Bruxo, ao menos enquanto permanece nas mãos de Rowling, não tem nada de novo a oferecer a não ser as mesmas polêmicas e controvérsias que já estamos cansados de apontar. Fosse esse o caso, já teríamos alguma história muito mais interessante sendo posta em prática – afinal, Harry Potter continua sendo um dos maiores fenômenos da cultura pop deste século, e não faz sentido deixar uma franquia desse porte vitimada por produtos (no mínimo) controversos e/ou ruins.
E é por isso mesmo que um reboot em forma de série faz tanto sentido. Afinal, quando não se tem história boa para contar, o melhor caminho a seguir é repetir a que deu certo à total exaustão. E se muita gente chiar, basta dar a desculpa de que a nova adaptação veio para se manter “mais fiel” aos livros, não é mesmo?
Claro, isso não invalida os pontos positivos da saga original, que conseguiu construir uma narrativa básica de jornada do herói com razoável dose de requinte e sofisticação. Mas às vezes, temos que aceitar que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, e que qualquer obra no Mundo Bruxo não terá o apelo, o alcance ou sequer a qualidade daqueles sete livros e oito filmes originais.
Ainda não se sabe quando a série de Harry Potter será lançada.
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