Greve em Hollywood: Entenda as paralisações de atores e roteiristas
Greve em Hollywood: Entenda as paralisações de atores e roteiristas
Tudo que você precisa saber sobre as greves de Hollywood
Hollywood parou. Após mais de dois meses de uma greve envolvendo a Associação de Escritores da América (WGA), o sindicato de roteiristas, mais de 160 mil atores e atrizes decidiram se juntar ao movimento. Sendo a primeira vez em 63 anos que algo do tipo acontece, o momento tem sido descrito como “agora ou nunca”, prometendo romper paradigmas e dar início a uma nova era na cultura do entretenimento.
Mas, a verdade é que para quem está de fora, toda a movimentação política e social do WGA e SAG-AFTRA (Screen Actors Guild-American Federation of Television and Radio Artists) pode parecer confusa. Principalmente para os que acreditavam que Hollywood se tratava de uma indústria em que todos os participantes saíam no lucro.
O que os últimos meses mostraram é que nada é o que parece na mais importante indústria de cinema e TV. Abaixo, entenda todos os pormenores da greve que pode se estender por um longo tempo.
- A greve dos roteiristas
- A greve dos atores
- Quais são as demandas?
- Como os executivos estão lidando com a greve?
- “A era digital está nos canibalizando”
- Como ficam as estreias dos filmes?
- Queixas não são exclusividade de Hollywood
A greve dos roteiristas
Anunciada no dia 2 de maio de 2023, a paralisação dos roteiristas teve início após a última grande polêmica envolvendo os escritores: a utilização de inteligência artificial para a produção de roteiros de filmes e séries de TV.
O debate foi a “gota d’água” para o início do movimento, que também revelou uma precarização no trabalho dos roteiristas. Entre as queixas, existe uma dificuldade em receber remunerações com ajustes diante da inflação; um tempo cada vez mais curto para a produção dos roteiros e uma falta de pagamentos por ganhos residuais.
O último tópico tem sido um dos mais confusos. O mesmo diz respeito aos lucros que plataformas de streamings como Max e Netflix obtêm com assinaturas, publicidade ou produtos derivados. Em resumo, enquanto as empresas continuam construindo um império multimilionário com esses residuais, pouco ou nada desse valor é repassado para roteiristas.
A greve dos atores
Situação que não é uma novidade entre os atores de Hollywood. No dia 13 de julho de 2023, mais de 160 mil atores e atrizes se juntaram à greve dos roteiristas. Representados pela Presidente da SAG, Fran Drescher, conhecida pela aclamada série The Nanny, algumas das demandas sugeridas pelo sindicato incluem desde uma regulamentação do uso de IA até os famosos ganhos residuais dos streamings.
Assim como roteiristas, rostos conhecidos de séries famosas como Orange is the New Black e Gilmore Girls estão tendo dificuldades em manter uma carreira que recebe pouco ou, quase nenhum, investimento dos streamings.
Mas, essa não é a primeira vez que o assunto chocou o público. Em 2020, Kimiko Glenn postou um vídeo no TikTok revelando o quanto recebia por sua participação em Orange is the New Black após um ano do fim da série. A atriz, que participou de 44 dos 91 episódios, mostrou folhas com os repasses por cada episódio, que somaram 27 dólares e 50 centavos, o equivalente a 131 reais.
@itskimiko “New media” 🙄😩 #oitnb #royalties #paycheck #netflix #orangeisthenewblack #brooksoso #soso #kimikoglenn ♬ original sound – kimiko
E a situação não é nada incomum. Em uma entrevista para o New Yorker, Emma Myles, que esteve nas seis temporadas de Orange is the New Black como Leanne Tayler, contou que seus lucros não são tão diferentes aos de Kimiko.
A atriz contou que recebe cerca de 600 dólares por ano por participações em Law and Order: Special Victims Unit, em que trabalhou em 2004, enquanto Orange lhe garante por volta de 20 dólares. O que choca tanto público quanto trabalhadores é o fato de que a série das presidiárias foi um dos maiores sucessos da Netflix, servindo como uma alavanca para futuros projetos.
Uma prova disso descrita pela própria Myles foi dada em um evento fechado dado por Red Sarandos, o chefe de conteúdo da Netflix da época e atual co-CEO. Durante um brinde, Red se gabou que Orange possuía uma audiência maior que a de Game of Thrones, produção da HBO que já tinha grande alcance na época.
A informação chocou Myles e o resto do elenco, uma vez que parte das atrizes precisava “pagar” para estar no projeto, enquanto o restante tinha dificuldades com as próprias contas. A intérprete de Leanne ainda comentou que todos queriam pedir por mais dinheiro naquele momento, o único problema é que “já faziam isso o tempo todo”.
“Mantive meu emprego diário durante todo o tempo em que estive no programa porque ele pagava melhor do que o mega-sucesso da TV em que estávamos”, revelou Beth Dover, outra atriz de Orange para o New Yorker. “Na verdade, eu gastei dinheiro para participar das temporadas 3 e 4, já que fui contratada localmente e tive que viajar de avião, etc. Mas eu estava muito empolgada com a oportunidade de participar de um programa que eu adorava, então aceitei o golpe. É uma loucura”.
Quais são as demandas?
Mas, a verdade é que esses “lucros residuais” são apenas a ponta do iceberg de uma série de problemas que estão sendo enfrentados por roteiristas e atores durante anos. Em uma conversa para o DiscussingFilm, a vice-presidente Michelle Hurd explicou que os problemas ainda incluem a dificuldade em se conseguir um plano de saúde.
Para se estar qualificado para um plano coberto pelo SAG-AFTRA, os atores do sindicato precisam de uma renda acima de 26 mil por ano. De acordo com Jessica Chastain, 87% dos membros estão abaixo dessa marca.
“A audiência vê esses atores em três ou quatro séries e pensa: ‘Nossa, essa atriz está trabalhando muito’. Mas, mesmo estando em uma série de sucesso, eu ainda não me qualifico para um plano de saúde. Nós, literalmente, estamos trabalhando de cheque em cheque”, explicou Hurd.
SAG LA Vice President Michelle Hurd explains that “you know those actors when you go ‘oh there’s that guy from that show’, you don’t necessarily know their names… those actors are working class actors who are literally working paycheck to paycheck.” pic.twitter.com/KGQ4omZfbe
— DiscussingFilm (@DiscussingFilm) July 17, 2023
As outras demandas ainda incluem limitação de testes de elenco pré-gravados, atualização de períodos de contrato e a famosa “regulamentação do uso de IA”. O último deixou todos alarmados quando escritores, artistas e cineastas argumentaram no Washington Post, que “ferramentas de inteligência artificial como ChatGPT e Bard foram treinados ilegalmente com seus trabalhos sem permissão ou compensação”.
Outra polêmica chocante envolvendo o tópico foi a que estúdios queriam escanear figurantes, pagá-los apenas por um trabalho de figuração e utilizar suas imagens eternamente.
“Naquela proposta inovadora de inteligência artificial, eles propuseram que nossos artistas figurantes pudessem ser digitalizados, pagos por um dia de trabalho, e a empresa ia possuir essa digitalização. A imagem, então, poderia ser usada para o resto da eternidade em qualquer projeto que quiserem, sem consentimento e sem compensação”, disse Duncan Crabtree-Ireland, nomeado pelo SAG-AFRTRA para negociar com os estúdios. “Então, se acham que é uma proposta inovadora, sugiro que pensem novamente.”
Como os executivos estão lidando com a greve?
Porém, se todas essas novidades foram tomadas com choque por todos, não aconteceu o mesmo entre os executivos dos estúdios. Fontes anônimas disseram ao Deadline que o plano inicial era “quebrar a WGA”, permitindo a greve até que “membros começassem a perder seus apartamentos e casas”.
Já Bob Iger, CEO da Disney, que tem um ganho anual de aproximadamente 27 milhões de dólares além de bônus especiais milionários, disse que as demandas dos atores e roteiristas “não são realistas”. Essa posição que procura deslegitimar a greve é uma das principais razões para a paralisação continuar ativa por um longo tempo.
Recentemente, a Aliança de Produtores de Cinema e Televisão (AMNPT) afirmou que a SAG está tentando descaracterizar as negociações e que o sindicato “desistiu no dia 12 de julho” de um acordo de um bilhão. O único problema dessa negociação é que há muito mais em jogo além de um simples aumento momentâneo do salário de atores e roteiristas.
“A era digital está nos canibalizando”
Os últimos dez anos da cultura pop moldaram um público sedento por novos conteúdos e profissionais reféns dos estúdios. De acordo com Fran Drescher, os atores e roteiristas estão sendo “vitimizados por uma entidade mesquinha”.
“Estou chocada com a forma como as pessoas com as quais temos feito negócios estão nos tratando. Como eles alegam pobreza, que estão perdendo dinheiro a torto e a direito enquanto dão milhões aos CEOs. É nojento e é vergonhoso para eles.”
Muito dessa nova administração, que ignora o bem-estar de profissionais, foi implementada com o advento dos streamings. Anteriormente, o sucesso de uma série de TV ou filme eram mensurados através da venda de DVDs e do quanto essas produções estavam na “boca” da mídia. Nos dias de hoje, os dados contabilizados perpassam as bilheterias e aluguéis virtuais e incluem o número de acesso e visualização das séries.
Uma comparação clara que demonstra o absurdo dessa diferenciação é o quanto o elenco de Friends ainda recebe pela série. Jennifer Aniston, Lisa Kudrow, David Schmwimmer, Courtney Cox, Matthew Perry e Matt LeBlanc possuem um contrato — estabelecido no fim da série — em que lhes garante 2% do lucro total da Warner Bros. Discovery com a marca Friends.
A negociação não apenas inclui venda de objetos licenciados, mas a própria exibição da série em canais de TV e no streaming. Segundo o USA Today, a atração gera uma receita anual para Warner Bros. de 1 bilhão de dólares, garantindo um montante de 20 milhões de dólares por ano para os atores.
Porém, a ascensão do serviço de streamings somada a falta de uma regulamentação, trouxe mudanças que nunca foram debatidas com atores e roteiristas. Desta forma, se um elenco popular conseguia exigir um montante de 2% em 2004; o de uma série de um streaming, como Orange, não consegue atingir o mesmo em 2019.
A greve surge aqui não apenas para consertar isso, mas impedir que a presença de IAs seja utilizada — assim como aconteceu com os streamings — para sucatear o trabalho desses e de outros profissionais.
“Todo o modelo de negócios foi alterado pelo streaming, pelo digital e pela IA”, Drescher disse em uma entrevista para o The Hollywood Reporter. “Os seres humanos em todas as diferentes esferas da vida estão sendo substituídos por robôs. É muito importante que coloquemos barricadas em torno da inteligência artificial, porque ela vai deixar as pessoas sem trabalho.”
Como ficam as estreias dos filmes?
Mas, para se alcançar certas mudanças, alguns sacrifícios precisam ser feitos. Além da paralisação de séries como Abbott Elementary, Yellowjackets e Stranger Things, alguns filmes irão sofrer com seu circuito de divulgação.
Mansão Mal-Assombrada, por exemplo, novo filme de terror da Disney, precisou levar personagens fictícios para seu tapete vermelho, pois todos os atores estavam em greve. A situação, mesmo parecendo inusitada, é apoiada e endossada pelo SAG.
De acordo com o sindicato, atores não poderão atuar nem promover nenhum título, seja série ou filme, em entrevistas coletivas, tapetes vermelhos, pré-estréias, eventos como a San Diego Comic-Con e redes sociais.
Nesse sentido, o que está garantido para o público é o lançamento de séries e filmes com data já programada pelos estúdios. Filmes como Besouro Azul e The Marvels devem chegar normalmente aos cinemas, mas sem os famosos tapetes vermelhos.
A situação ainda promete afetar as mídias. Além de uma escassez no conteúdo, uma vez que os atores e roteiristas estão proibidos de dar entrevistas sobre futuros lançamentos, o SAG divulgou que uma das formas de apoiar a greve é não publicando críticas e reviews dos próximos lançamentos.
📣 Film/TV content creators wanting to support the strikes!
I just got an email back from SAG after asking for clarity on how our content fits into this…
Seems pretty clear that “promo” also includes reviews/critiques in any online form – even if unpaid. pic.twitter.com/whezuNsRjQ
— Rowan Ellis (is probably away) (@HeyRowanEllis) July 15, 2023
“Recebi um email do SAG após perguntar como podemos usar nosso conteúdo para ajudar… Parece que ‘promover’ também inclui críticas e reviews em qualquer forma online, pago ou não”, diz o tweet de Rowan Ellis..
Queixas não são exclusividade de Hollywood
Mesmo sendo um assunto que está longe da mídia nacional, vale lembrar que as questões apresentadas afetam diferentes nacionalidades e profissionais. No Brasil, por exemplo, o uso de IAs tem chegado ao mercado do entretenimento, em forma de comerciais e publicidade nas mídias sociais.
Enquanto marcas e entidades usam e abusam dessas ferramentas, nenhum tipo de movimentação em direção a uma regulamentação foi feita. Já no campo do repasse de lucros dos streamings, temos algumas questões parecidas.
Alguns atores nacionais revelaram que a Globo efetua pagamentos referente aos direitos conexos em re-exibição de novelas no próprio canal, outros já reclamaram de não serem totalmente remunerados pelas reprises do canal Viva, por exemplo.
Atrizes como Sônia Braga já chegaram a ir na justiça por isso e Maria Zilda comentou que os valores repassados pela emissora não chegavam a 240 reais. A situação é ainda mais cinzenta para outros atores.
O elenco de Castelo Rá-Tim-Bum, por exemplo, abriu mão dos direitos de reprise no lançamento da série, o que significa que não recebem nada pela exibição do programa infantil na TV Cultura.
Entre tantas questões que envolvem desde o Brasil até Hollywood, o que fica não é quando uma série irá retornar para uma nova temporada; Mas, até quando ferramentas como IAs e streamings serão utilizados para precarizar o trabalho de atores e roteiristas.
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