Crítica – Till: A Busca Por Justiça é uma cinebiografia fundamental para os dias atuais
Crítica – Till: A Busca Por Justiça é uma cinebiografia fundamental para os dias atuais
Filme conta a história real de Emmett Till, um garoto negro que foi vítima de violência racial na década de 1950, a partir do ponto de vista de uma mãe marcada pelo luto e pela sede de justiça
Emmett Louis Till tinha apenas 14 anos de idade quando foi brutalmente assassinado na cidade de Money, no estado do Mississippi (EUA). O ano era 1955, e o jovem estava hospedado na casa dos tios quando foi acusado injustamente por Carolyn Bryant, uma mulher branca que afirmava que o garoto tinha assobiado para ela enquanto comprava doces em uma loja. É exatamente essa tragédia real que o filme Till: A Busca Por Justiça retrata, mas por um ângulo diferente.
Dirigido por Chinonye Chukwu, o longa-metragem biográfico é inspirado na trajetória de Mamie Till-Mobley, a mãe de Emmett, que dedicou grande parte de sua vida ao ativismo depois do assassinato de seu filho. Por meio do luto de Mamie, que é brilhantemente interpretada pela atriz Danielle Deadwyler, o filme de Chukwu, com extremo cuidado e respeito, nos lembra que, antes de se tornar o nome que impulsionou movimentos em prol dos direitos civis de pessoas negras, Emmett Till era apenas um garoto com um futuro inteiro à sua frente.
Ficha técnica
Título: Till – A Busca Por Justiça
Direção: Chinonye Chukwu
Roteiro: Michael Reilly, Keith Beauchamp e Chinonye Chukwu
Data de lançamento: 9 de fevereiro de 2023
País de origem: Estados Unidos da América
Duração: 2h 10min
Sinopse: A verdadeira história da busca incansável de Mamie Till Mobley por justiça para seu filho de 14 anos, Emmett Till. Em 1955, Emmett foi linchado e morto quando visitava seus primos no Mississippi. No coração da pungente jornada de Mamie, que transformou seu luto em ação, está o poder universal da coragem de uma mãe disposta a mudar o mundo.
A justiça precisa de uma voz
Aos 14 anos de idade, Emmett Till (Jalyn Hall), ou Bobo, como é carinhosamente chamado pela família, só queria aproveitar sua juventude sem ter maiores preocupações. Sorridente, carismático e praticamente idolatrado por sua mãe, Mamie Till-Mobley (Danielle Deadwyler), o jovem garoto tinha um universo de possibilidades à disposição até ter sua juventude cruelmente roubada por uma sociedade racista e amparada em um sistema sócio-político de intensa segregação no sul dos Estados Unidos (e no mundo).
O estopim para a tragédia acontece durante a hospedagem de Emmett na casa dos tios. Após visitar uma loja para comprar doces, o garoto é marcado por Carolyn Bryant (Haley Bennett), uma mulher branca que o acusa de ter “flertado” com ela no estabelecimento. Poucos dias depois do ocorrido, Emmett Till é encontrado morto em um rio após sofrer um linchamento.
O que começa como uma história sobre o amor de uma mãe por um filho, então, torna-se uma incansável busca por justiça. Apoiada na dor de seu luto, Mamie resume sua vida em um único objetivo: fazer com que os criminosos que assassinaram seu filho sejam responsabilizados por aquele crime hediondo.
Till: A Busca Por Justiça não é, em nenhum momento, um filme sobre a violência física sofrida por Emmett Till. A diretora Chinonye Chukwu foi extremamente cuidadosa em sua abordagem, escolhendo enquadramentos e movimentos de câmera que, sabiamente, souberam explorar uma nova abordagem para a tragédia que representou um ponto de virada na história dos movimentos negros nos Estados Unidos.
Assim, ao optar por colocar o foco na jornada de Mamie Till-Mobley, Chukwu demonstrou o cuidado necessário para retratar uma tragédia como essa pelo olhar de uma câmera. A visão da diretora, que também foi responsável por roteirizar o filme juntamente com Michael Reilly e Keith Beauchamp, foi essencial para que Till: A Busca Por Justiça não fosse apenas mais uma cinebiografia no meio de milhões. Isso porque é nítido que toda a equipe envolvida sabia exatamente o significado da história de Emmett Till e queria retratá-la da melhor maneira possível para que ela nunca fosse esquecida.
É assim que chegamos na performance arrebatadora da atriz Danielle Deadwyler. Poucos atores em atividade conseguem alcançar o que ela conseguiu em um pouco mais de duas horas de duração – cada movimento, olhar ou gesto de Mamie é vivido com uma intensidade monumental pela atriz. Ela é a força que impulsiona a cinebiografia, e é muito interessante acompanhar como a direção de Chukwu dá espaço para que Danielle cresça no filme por conta própria.
Mesmo nos momentos mais difíceis de Till: A Busca Por Justiça (na verdade, muitos deles são como se estivéssemos recebendo um soco no meio do estômago), é Danielle Deadwyler que, por meio de uma performance precisa, honesta e imponente, capta toda a nossa atenção por personificar o luto de uma mãe que precisa enterrar seu único filho. Uma perda irreparável que, em um contexto de injustiças, nunca poderá ser revertida enquanto brancos continuarem apagando a existência de pessoas negras.
A atriz consegue transmitir toda essa dor sem nem ao menos dizer uma única palavra. A primeira vez que Mamie vê o corpo de Emmett, por exemplo, depois que ele é encontrado no rio e levado para Chicago, sua cidade natal, é uma das mais intensas do filme e também uma das mais bem dirigidas.
Aqui, voltamos novamente para o fato de que a diretora teve o cuidado de não fazer com que a história se resumisse à cruel violência sofrida por um garoto negro. O foco está em Mamie e em como ela transformou uma injustiça em uma luta coletiva. Ainda assim, o filme faz questão de fazer com que o público encare essa violência, sem rodeios. Não apenas para gerar uma reflexão, mas também para ser um agente de mudança e manter a memória de Emmett Till viva.
Como Mamie diz, é preciso olhar. Foi por isso que ela insistiu para que o caixão de seu filho estivesse aberto durante o velório. Uma decisão controversa para muitos, mas que mostrou ao mundo o que dois homens brancos fizeram com uma criança negra.
É preciso olhar
Embora tenha sido lançado quase 70 anos depois do assassinato de Emmett, Till: A Busca Por Justiça ainda é um filme extremamente atual. Basta lembrar o que aconteceu com George Floyd em 2020: um homem negro que foi estrangulado por um policial branco, mais uma vítima da violência policial nos Estados Unidos. O ocorrido revoltou o mundo inteiro, inspirando diversas manifestações antirracistas na época.
Mas as consequências de uma sociedade que se desenvolveu a partir de um sistema de escravidão não se restringem apenas ao hemisfério norte. Aqui no Brasil, o caso do adolescente João Pedro, que foi assassinado durante uma operação policial no município de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, enquanto estava em casa com amigos, também chocou o país em 2020. Assim como Emmett Till, João tinha 14 anos de idade.
São injustiças como essas que tornam filmes como Till: A Busca Por Justiça tão necessários. Não apenas para mostrar que a luta antirracista é fundamental para que mudanças estruturais e discursivas de fato ocorram na sociedade, mas também por fazerem com que essas histórias nunca sejam esquecidas. E que a indignação por constatar isso não apenas nos entristeça, mas que nos radicalize. Afinal, Angela Davis já dizia que circunstâncias sociais se transformam e atitudes populares mudam quando movimentos organizados agem.
É claro que transformações sociais não acontecem da noite para o dia, mas são produções como Till que, assim como a excelente minissérie Olhos Que Condenam, por exemplo, escancaram as problemáticas de uma sociedade que, mesmo que tenha feito progressos relevantes em relação aos diretos civis de pessoas negras, ainda é, infelizmente, em sua grande maioria, racista. Uma sociedade onde brancos se emocionam com a história de “brancos salvadores” como Histórias Cruzadas e Green Book, mas que não movem um dedo para apoiar o trabalho de pessoas negras. Esperam ser “ensinadas”, mas não se movem para ajudar a construir uma sociedade onde negros tenham mais espaço para criar, desenvolver projetos e, bem, viver.
Há uma recusa em olhar para a verdadeira problemática, o que faz com que o racismo se esconda ainda mais dentro das estruturas institucionais ao redor do mundo. É por isso que precisamos de filmes como Till: A Busca Por Justiça, mas não somente pelo simples ato de “precisar”: é necessário divulgar, refletir e agir para que tragédias como as de Emmett Till, George Floyd, João Pedro e tantas outras ao redor do mundo não se repitam.
O único problema de Till: A Busca Por Justiça não diz respeito a mensagem que ele transmite, mas pela maneira como a figura de Mamie Till-Mobley acaba ficando limitada à perda do filho. Quem conhece a história de Mamie sabe que ela foi uma ativista extremamente importante para impulsionar o crescimento de medidas direcionadas aos direitos civis dos negros, mas o filme não explora muito esse lado.
É nítido ver que há uma mudança sócio-política em suas ideologias e o longa até mostra isso, contudo a sensação que fica é que poderíamos ter visto mais das ações de Mamie, politicamente falando. Além disso, o filme tem um ritmo um tanto quanto irregular em determinados momentos e acaba caindo no formato usual de cinebiografias que já estamos acostumados a ver por aí. O interessante é que, mesmo com limitações, a diretora Chinonye Chukwu encontrou ótimas maneiras para explorar o que tinha em mãos, o que já faz com que o filme se destaque da maioria.
Por fim, Till: A Busca Por Justiça é o tipo de filme que precisa de atenção. É necessário bater na tecla do “olhar”, mesmo que seja incômodo. Afinal, a sociedade precisa enxergar o que séculos de uma estrutura social racista fizeram com a vivência de pessoas negras no mundo inteiro. E que isso não apenas nos entristeça, mas que a indignação nos radicalize para que mudanças realmente aconteçam. As vidas das Mamies e dos Emmetts deste mundo importam. E é preciso olhar para elas.
Till: A Busca Por Justiça estreia no dia 9 de fevereiro de 2023 nos cinemas brasileiros.
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