Crítica – The Flash acelera com conflitos internos mas tropeça no uso exagerado da nostalgia
Crítica – The Flash acelera com conflitos internos mas tropeça no uso exagerado da nostalgia
Filme de Andy Muschietti se apoia na memória afetiva dos fãs para conduzir Barry Allen em uma viagem pelo tempo
Era uma vez um garoto que tinha tudo que ele precisava para ser feliz. Seus pais o amavam, o futuro parecia promissor e a normalidade da rotina em família preenchia seu propósito de vida. Mas, quando tudo isso desmoronou de repente, como ele conseguiria se reerguer a partir de uma tragédia inesperada? Para Barry Allen, a solução veio com um empurrãozinho de poderes inacreditáveis e o desejo de encontrar o momento exato onde tudo começou a ruir para, quem sabe, mudar sua história.
Com direção de Andy Muschietti, que se aventura pelo universo dos super-heróis após ganhar popularidade no terror, o aguardado filme solo do Flash finalmente chega aos cinemas mundiais. O longa estreia após uma série de polêmicas envolvendo o protagonismo de Ezra Miller, que se envolveu em diversas problemáticas nos últimos anos, enquanto tenta “reparar” os constantes fracassos de bilheterias de produções anteriores da DC. A boa notícia é que The Flash consegue olhar para a já conhecida história de origem do personagem através de um conflito interessante e que não vem sendo muito explorado ultimamente nas telonas – com algumas exceções, claro. Por outro lado, o filme acaba se tornando vítima de suas próprias armadilhas, apoiando-se demasiadamente na nostalgia para tentar arrancar lágrimas emocionadas dos fãs, custe o que custar.
Ficha técnica
Título: The Flash
Direção: Andy Muschietti
Roteiro: Christina Hodson
Data de lançamento: 15 de junho de 2023
País de origem: Estados Unidos da América
Duração: 2h 24min
Sinopse: Os mundos colidem quando Flash viaja no tempo para mudar os eventos do passado. No entanto, quando sua tentativa de salvar sua família altera o futuro, ele fica preso em uma realidade na qual o General Zod voltou, ameaçando a aniquilação.
O homem mais rápido do mundo
“A vida muda em um instante. Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina”. A frase é de autoria da jornalista e escritora Joan Didion, que relata no livro O Ano do Pensamento Mágico o doloroso período de luto que vivenciou após a morte do marido. É uma boa combinação de palavras para definir a jornada de Barry Allen, o perito forense de Central City que perdeu a mãe inesperadamente em uma tragédia quando era apenas uma criança e, como se as coisas já não estivessem ruins o bastante, ainda viu seu pai se tornar o principal suspeito do crime.
A trajetória de Barry Allen, indo de um garoto com um triste passado na bagagem até se tornar o homem mais rápido do mundo após sofrer um acidente de laboratório, já é bastante conhecida pelos fãs dos quadrinhos. Mas e se o cara por trás da máscara do Flash pudesse usar suas habilidades especiais para tentar salvar sua família? É basicamente essa questão que o filme dirigido por Andy Muschietti busca explorar.
Seja salvando vidas antes de tomar café da manhã ou tentando desenvolver suas capacidades sociais no trabalho, Barry Allen está sempre correndo contra o tempo, como se ele quisesse vencer uma corrida cujo único oponente é ele mesmo. Usando o humor para mascarar suas inseguranças, o super-herói mais rápido que já habitou a Terra se agarra com todas as forças ao passado para tentar encontrar uma maneira de salvar a pessoa mais importante da sua vida: Henry Allen (Ron Livingston), o pai que está confinado em uma cela prisional depois de ser acusado de matar Nora Allen (Maribel Verdú), sua esposa e mãe de Barry.
O mais insano para o herói é que, nesse caso, ele pode reverter tudo isso. Quando Flash descobre que seus poderes são capazes de conduzi-lo em uma viagem pelo espaço-tempo, o Velocista Escarlate aproveita a brecha na porta para fazer tudo aquilo que ele sempre sonhou desde criança: trazer a mãe de volta e, consequentemente, tirar seu pai de trás das grades.
A família, então, estaria reunida mais uma vez. O problema é que viagens no tempo podem ser mais traiçoeiras do que os filmes e as séries de TV costumam mostrar, e Barry acaba ficando preso em uma realidade paralela ameaçada pelo retorno do terrível General Zod (Michael Shannon).
Em meio a um certo “desinteresse” do público em relação a filmes de super-heróis apáticos e genéricos que bombardearam as salas de cinemas ao redor do mundo na última década, The Flash não deixa de ser uma surpresa interessante. Não no quesito visual (que será mencionado logo mais), mas no que diz respeito ao cerne da história que o filme apresenta.
Como dito, o longa de Andy Muschietti se preocupa em focar nos conflitos internos de Barry Allen, ao invés de simplesmente colocar o super-herói diante de uma ameaça destrutiva que, no final do dia, será vencida enquanto o protagonista aprende alguma coisa. É a tal da jornada do herói, uma estrutura clássica de narrativa que você encontra em franquias como Harry Potter, O Senhor dos Anéis e muito mais, e que pode ser trabalhada de diversas maneiras no cinema, até mesmo psicologicamente falando.
E é exatamente esse o maior diferencial de The Flash. O roteiro de Christina Hodson, que já colaborou com a DC no divertido Aves de Rapina: Arlequina e Sua Emancipação Fantabulosa (2020), explora as nuances do herói por trás do uniforme de Flash, isolando a ameaça externa para colocar uma lupa nos dilemas pessoais de Barry, um jovem que está sempre lutando para fugir dos traumas do passado, ao mesmo tempo que continua remoendo tudo aquilo que deu errado na sua vida.
São os sentimentos humanos que colocam essas figuras superpoderosas, que andam como deuses na Terra, no mesmo nível que meros mortais como você e eu. Afinal, Barry Allen até pode ser o homem mais rápido do mundo, mas ele também está tentando lidar com os traumas de seu passado para conseguir construir um futuro digno, assim como qualquer pessoa comum por aí. Ora, Bruce Wayne (e seu ego gigantesco) também passa pela mesma coisa, mesmo que de maneira internalizada.
Há até um certo momento em que o Batman de Ben Affleck diz para Barry que sem as cicatrizes do nosso passado, não seríamos quem somos hoje. A mensagem permeia toda a construção da narrativa de The Flash, e Andy Muschietti conseguiu trabalhar em cima de tais pontos de um jeito bastante autoral, driblando as aparições especiais — que só estão ali para conquistar os fãs pela simples e pura memória afetiva — para te fazer pensar no que você faria se tivesse a oportunidade de voltar no tempo para salvar um ente querido.
Colisão de mundos
Se, por um lado, The Flash faz um bom trabalho ao tratar dos dilemas internos de Barry Allen na condução da trama, existem certas questões no filme que acabam decepcionando à medida que a narrativa vai se desenvolvendo nas telonas. Uma delas é justamente o uso demasiado da nostalgia, que muitas vezes está ali apenas por estar.
É uma questão que sempre me faz lembrar de uma cena da série Mad Men, em que Don Draper faz um discurso sobre o poder da nostalgia quando está tentando vender uma ideia para um dos clientes de sua agência publicitária. Na sequência, Draper diz que, por mais que seja algo delicado, a nostalgia é extremamente potente por nos levar até um local, abstrato ou não, no qual desejamos veemente retornar.
Não é de se surpreender, então, que Hollywood esteja fazendo exatamente isso desde que descobriu que vender memórias afetivas é um negócio lucrativo, principalmente com toda uma movimentação mercadológica, em todos os setores possíveis, tentando a todo custo resgatar o que deu certo no passado para fazer as engrenagens da máquina capitalista continuarem funcionando. É uma crítica que Lana Wachowski faz muito bem em Matrix Resurrections (2021) e que, ao que parece, ninguém deu ouvidos.
Em vista disso, The Flash é mais uma vítima do esgotamento nostálgico que estamos enfrentando nos últimos tempos. Embora consiga encontrar momentos de respiro quando volta sua atenção para a jornada interna de Barry Allen, o filme acaba criando toda uma comoção exagerada ao redor de aparições surpreendentes ou referências de seu próprio universo que, honestamente, não conseguem sair da mesmice. E isso inclui a participação de Michael Keaton, que retorna como Bruce Wayne anos depois de interpretar o vigilante nos filmes de Tim Burton.
A questão com The Flash talvez nem seja a saturação dos filmes de super-heróis, que já vem dando sinais de extremo cansaço, basta acompanhar o desempenho morno que a Marvel Studios vem tendo em seus lançamentos mais recentes. O problema, na verdade, é a persistência em continuar seguindo uma fórmula que deu certo em determinado momento, mas que, agora, não parece fazer mais sentido.
É só ver a boa resposta do público quando filmes como Batman (2022) de Matt Reeves e o recente Homem-Aranha: Através do Aranhaverso (2023) conseguem ir muito além do genérico mundo dos super-heróis que encontramos hoje em dia. Se levarmos em consideração o que Através do Aranhaverso conseguiu entregar, usando o mesmo conceito de multiverso que The Flash traz, a ausência de vivacidade no longa estrelado por Ezra Miller fica ainda mais gritante.
Claro que os dois existem em formatos distintos, e The Flash não consegue alcançar o mesmo nível de inventividade que uma animação como Aranhaverso consegue por limitações técnicas. Contudo, ainda é possível fazer com que um blockbuster tenha uma alma, ou que te passe a sensação de que existem pessoas humanas por trás daquilo — e não apenas uma máquina.
Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022), por exemplo, por mais que ainda permaneça dentro do padrão Marvel, ainda tem seus momentos mais inventivos graças ao trabalho de Sam Raimi. Isso não deixa de acontecer em The Flash, pois Andy Muschietti também consegue manter sua marca no filme, enquanto faz a já esperada ligação entre o passado e o futuro da franquia, abrindo espaço para que os planos de James Gunn e Peter Safran entrem em cena posteriormente.
Além disso, é triste ver como a busca por um realismo exacerbado continuam dominando todos os cantos de produções protagonizadas por super-heróis na indústria. Não há cores, não há vivacidade, não há dinamismo: tudo parece genérico e fadado à mesmice. É tedioso, para dizer o mínimo.
Talvez a influência de Christopher Nolan com sua trilogia do Cavaleiro das Trevas realmente tenha causado danos irreparáveis na maneira como os super-heróis são representados no cinema, e a busca por narrativas cinematográficas que abracem o absurdo fiquem restritas apenas a poucos profissionais que se arriscam a fazê-la, como James Gunn conseguiu fazer em Guardiões da Galáxia.
É por isso que os controversos efeitos visuais de The Flash não me incomodam a ponto de achá-los a pior coisa já feita na indústria. Há momentos que até mesmo remetem ao que as Irmãs Wachowski fizeram em Matrix Reloaded (2003), com sequências que, de longe, realmente parecem que saíram de videogames, mas que conquistam você pelo fato de que, ao menos, buscaram criar algo novo.
Porém, por mais que Andy Muschietti encontre maneiras interessantes para conduzir sequências que esfregam a computação gráfica na sua cara, a ambientação tediosa do filme não condiz com aquilo que os efeitos visuais tentam mostrar. Indo além da fraca ameaça do General Zod de Michael Shannon ou de um uso meia-boca da Supergirl (Sasha Calle), no final das contas, tudo parece artificial, como se não houvesse vida em nenhuma realidade paralela de Central City.
Sendo assim, a sensação que fica é a de que The Flash poderia ter sido muito mais do que de fato foi. Há um potencial ali que vai se engrandecendo, conforme a narrativa se desenrola diante dos nossos olhos, apenas para ser detonado aos poucos após atingir seu ápice. É divertido e emocionante quando foca na jornada interna de Barry Allen, mas perde sua força quando resolve seguir a fórmula desgastada que Hollywood insiste em usar constantemente.
The Flash estreia no dia 15 de junho de 2023 nos cinemas brasileiros.
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