Crítica: Tár e o peso esmagador da genialidade

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Crítica: Tár e o peso esmagador da genialidade

Por Gus Fiaux

Após entregar ao mundo os sublimes Entre Quatro Paredes Pecados ÍntimosTodd Field retorna com Tár, o seu mais novo projeto que se dedica a ser uma cinebiografia de Lydia Tár, a personagem fictícia interpretada por Cate Blanchett em sua primeira colaboração com o diretor e roteirista.

Disputando a prêmios nas categorias de Melhor FilmeMelhor DireçãoMelhor Atriz e mais na 95ª edição do Oscar, o filme tem se provado cada vez mais forte do lado do público e dos críticos, graças à sua árdua tarefa de criar uma personagem igualmente cruel e complexa. Aqui, você pode conferir a nossa crítica do filme!

Ficha Técnica:

Título: Tár

 

Direção e roteiro: Todd Field

 

Data de lançamento: 26 de janeiro de 2023

 

País de origem: Estados Unidos

 

Duração: 2h 38min

 

Sinopse: Acompanha a queda monumental de Lydia Tár, a primeira mulher a conduzir uma grande orquestra alemã.

Tár está em cartaz em cinemas selecionados.

Então Tár…

Pense na pior pessoa que você já conheceu na vida. Uma pessoa que demonstra ser talentosa e cheia de potencial, e que ainda assim usa de meios mesquinhos para subir na vida, sem se importar com quem está abaixo dela. Alguém que despreze qualquer um que considera inferior, e que não tem vergonha em deixar esse desdém transparecer. Já pensou? Agora imagine o que aconteceria se essa pessoa passasse uma única noite insone pensando em todas as coisas terríveis que já fez. Delicioso, não é?

De muitas formas, Tár é exatamente isso – porém, a protagonista interpretada por Cate Blanchett certamente é atormentada o bastante pelos (literais) fantasmas de seu passado a ponto de passar bem mais do que apenas uma noite sem conseguir pregar os olhos. O novo filme de Todd Field se dedica, em suas duas horas e meia de projeção, a não apenas construir um titã diante de nossos olhos, como também destruí-lo até não restar mais nada.

A trama começa quando – a primeira e única – Lydia Tár, a primeira mulher a reger uma grandiosa orquestra em Berlim, está dando entrevistas sobre seus projetos vindouros. O futuro parece lindo e brilhante, com novas obras a caminho, incluindo um livro autobiográfico e uma gravação ao vivo de um concerto interpretando a 5ª Sinfonia de Gustav Mahler. Tár não podia estar mais feliz e cheia de empolgação diante das possibilidades.

É em seus primeiros trinta minutos, compostos por (entre outras coisas) duas sequências extensas e contrastantes, que o filme me fisgou pela goela. Em pouco menos de meia hora, Blanchett e Field unem seus talentos para compor uma personagem rica e multifacetada, que apesar de se provar uma verdadeira megera pedante, ainda carrega em suas costas o peso esmagador da genialidade.

O resto desliza como faca quente na manteiga. Cate Blanchett injeta uma aura tão mítica, sobrenatural e crua em sua Lydia Tár, que as demais duas horas de projeção não soam sequer como um filme ficcional, mas um vislumbre certeiro na vida de uma pessoa – aliás, pessoa essa que usa de seus privilégios e status social não apenas para replicar estruturas de poder, mas também para demonstrar seu desprezo por todos aqueles que estão abaixo dela na cadeia alimentar.

Porém, essa atuação se costura à narrativa intrincada desenvolvida por Field, que primeiro quer fazer você ficar impressionado e apaixonado por Lydia antes de odiá-la. E é bem interessante que, mesmo depois de virada a chavinha, Field continua a tratar a personagem com suas complexidades, fragilidades e aflições, sem transformá-la em um espantalho para tudo que há de errado no endeusamento daqueles considerados “geniais”.

Mas note o dinamismo e as contradições levantadas por isso: Lydia, mais cedo do que imaginava, é confirmada como uma verdadeira predadora: ela assedia sexualmente suas estudantes, mente para sua esposa, humilha qualquer um que considere burro e é diretamente responsável pelo suicídio de uma outra mulher de seu passado. E mesmo com tudo isso, Tár não nega o quanto Lydia é genial. 

É até interessante que Todd Field replique aqui uma trama que já vimos se desenrolando na vida real aos montes ao longo dos últimos anos (alô caso Weinstein!), mas opta por trocar o centro dessa narrativa da típica figura do cara branco, hétero e medíocre por uma mulher lésbica que é genuinamente talentosa e digna do status de gênio. Por si só, acaba sendo uma provocação bem apetitosa sobre a dúvida que nos aflige desde o início dos tempos: “é possível separar o artista de sua obra?

Para alguns, isso pode soar ofensivo e insensível, mas na verdade é uma ode à boa narrativa. Ao se livrar de todas as demandas de “boa representatividade”, Field e Blanchett criam um império em cima de uma personagem autêntica e complexa, com seus erros e acertos, e que ainda assim soa muito mais profunda e delicada que qualquer produto da mídia higienizada propagada por grandes estúdios. Lydia é queer e é um ser humano horrível, mas não é uma coisa por causa da outra.

Orquestrando relações

Nenhuma relação humana se constrói no vácuo, e para fazer Lydia Tár funcionar, Todd Field permeia o filme de relações interpessoais para a artista, cada uma determinando o rumo de suas múltiplas tragédias pessoais. E uma das coisas que mais me chamou atenção é como quase todas as dinâmicas são exclusivamente femininas. Ok, ela ainda tem uma boa conversa com Eliot Kaplan (vivido por um Mark Strong na peruca mais abominável que você verá na vida), mas de resto, quase todas as suas interações duradouras são com mulheres.

Há Francesca Lentini, a assistente de Lydia que age mais como sua secretária, e demonstra constantemente sua visível admiração (e tesão) pela patroa, sendo sempre tratada com desdém. Vivida por Noémie Merlant (que já brilhou no excelente Retrato de uma Jovem em Chamas), a personagem é a primeira que conhecemos após Tár, e nos acompanha por um bom tempo desempenhando o papel da mulher “traída” em busca de vingança.

Além disso, temos também Sharon Goodnow, uma musicista que também é esposa de Lydia, vivida por Nina Hoss. Sharon atua como um porto seguro para Lydia, e o filme faz questão de mostrar a relação tóxica na qual a personagem está submetida sem reduzi-la a isso. O gaslight diversas vezes corre solto, mas há um cuidado por trás da personagem que não a reduz (e nem o relacionamento com Lydia) a um bolo de coisas ruins.

Lydia revela seu lado mais vulnerável e empático, no entanto, para Petra (interpretada por Mila Bogojevic), filha adotada por ela e por Sharon. É bem interessante ver as dinâmicas que são construídas aqui, já que Cate parece estar o tempo inteiro mantendo a fúria pedante da artista contida, enquanto ela tenta demonstrar um mínimo de interesse pelas atividades da garota.

Porém, a peça mais importante é justamente a que não está lá. Krista Taylor (vivida por Sylvia Flote) é vista em vislumbres e é o pináculo da desgraça de Lydia. Sua ausência torna ainda mais interessante a forma como todos os personagens interagem no não-espaço onde ela deveria estar, sobretudo Francesca. Mais interessante ainda é como Field sutilmente transforma Tár em um filme de fantasmas, com a aparição sobrenatural da falecida em dois momentos bem impactantes.

E sabe aquela história de que nós sempre construímos personalidades diferentes para lidar com pessoas diferentes? Isso fica evidente aqui, na forma como a protagonista cria uma aura em torno de si própria para despistar possíveis inconveniências e sempre vender a melhor versão de si mesma. E ainda assim, ela sequer chega a ser mentirosa, pois deixa muito claro que está fazendo isso em diversos momentos.

É justamente a elegância e refinamento de Cate Blanchett que dá o tom, mas há algo de milagroso na direção de Todd Field e em todos os elementos técnicos que o ajudam a contar essa história – sobretudo a direção de fotografia do alemão Florian Hoffmeister, que faz de cada quadro um pequeno tratado sobre como o mundo flutua ao redor de Lydia, o que só acresce à sua aura mística e inevitável.

Importante mencionar também a bela trilha sonora da islandesa Hildur Guðnadóttir, que sabe conciliar os altos e baixos da vida da personagem com uma música penetrante, que você sente embaixo da sua pele – e é impressionante como, ao fazer isso, ela evita criar um senso de opulência ao redor da personagem como se ela fosse inatingível. Pelo contrário, a própria música demonstra as rachaduras da regente.

Em suma, Tár é uma deliciosa surpresa, que consegue criar uma personagem tão realista e humanizada capaz de dar um banho em qualquer uma dessas cinebiografias de “astros do rock” que vemos à exaustão no Oscar. Se você vai rir despreocupadamente da desgraça alheia, é bom que tenha motivos para isso – e Field e Blanchett não apenas nos dão de bandeja esses motivos, mas também oferecem personalidade o bastante para que nos sintamos tristes, satisfeitos, histéricos e até mesmo vingados quando a bruxa má vai para a fogueira.

Nota do filme: 5/5

Tár está em cartaz em cinemas selecionados.

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