Crítica – Priscilla: Sofia Coppola rompe mito por trás de Elvis Presley para expor horrores de uma relação controladora 

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Crítica – Priscilla: Sofia Coppola rompe mito por trás de Elvis Presley para expor horrores de uma relação controladora 

Por Jaqueline Sousa

“Você gosta de Elvis Presley?”, é a pergunta que a adolescente de 14 anos Priscilla Beaulieu (Cailee Spaeny) recebe, enquanto tenta sobreviver à solidão de uma base militar alemã no final da década de 1950. Desconcertada, ingênua e angustiada por uma vida diferente, a jovem tímida mal sabia que aquele seria o ponto de partida para que um universo de oportunidades aparecesse na sua frente personificado no próprio Rei do Rock.

Inspirado no livro autobiográfico Elvis e Eu, de autoria de Priscilla Presley e Sandra Harmon, Priscilla marca o retorno da diretora Sofia Coppola (As Virgens Suicidas) às telonas como um soco no meio do estômago. Ao explorar minuciosamente os desdobramentos de um relacionamento opressivo, sombrio e manipulador, Coppola desconstrói a visão popular de um astro imortalizado na história da música, oferecendo uma perspectiva agridoce sob o ponto de vista de uma mulher constantemente sufocada pelo agressivo desejo masculino.

Ficha técnica

Título: Priscilla

 

Direção: Sofia Coppola

 

Roteiro: Sofia Coppola

 

Data de lançamento: 4 de janeiro de 2024

 

País de origem: Estados Unidos da América e Itália

 

Duração: 1h 53min

 

Sinopse: Quando a adolescente Priscilla Beaulieu conhece Elvis Presley em uma festa, o homem que já era um superstar do rock torna-se alguém completamente inesperado em momentos particulares: uma paixão emocionante, um aliado na solidão, um melhor amigo vulnerável. O filme acompanha o longo namoro e o casamento turbulento de Elvis e Priscilla, desde uma base militar alemã até à sua propriedade dos sonhos em Graceland. Um retrato de amor, fantasia e fama profundo e arrebatadoramente detalhado.

 

Pôster de Priscilla.

Elvis e eu

Como em um conto de fadas, Priscilla Beaulieu mal pode acreditar que Elvis Presley (Jacob Elordi) – sim, o grande astro da música que faz com que milhares de mulheres entrem em combustão com um simples movimento de cintura – esteja interessado pelo que ela tem a dizer. 10 anos mais velho, a aura do príncipe encantado em seu cavalo branco surge inesperadamente como a salvação que a garota tanto buscava, dominando todos os seus pensamentos, desejos e objetivos a partir de um mero olhar destinado somente para ela.

Mas o seu “felizes para sempre” não poderia estar mais distante daquilo que ela imaginava ser. Ao entrar em um relacionamento com o Rei do Rock, Priscilla vende sua alma para o deus dos excessos, deixando-se levar pelo amor que sente por Elvis e matando cada vez mais aquela doce e tímida garota que sonhava em viver um grande amor. O conto de fadas, por fim, transforma-se em um pesadelo opressivo, manipulador e sufocante.

Cailee Spaeny vive Priscilla Presley em filme sensível de Sofia Coppola.

Melhor do que ninguém, Sofia Coppola sabe usar a sensibilidade para tratar de temáticas desconfortáveis e até mesmo repulsivas. As Virgens Suicidas (1999), por exemplo, une sua atmosfera onírica a uma melancolia dolorosa para adaptar a obra de Jeffrey Eugenides com delicadeza, apegando-se sempre aos detalhes para ajudar a construir um ambiente opressor e quase aterrorizante sobre uma juventude em busca de um propósito maior.

É exatamente isso que Coppola repete em Priscilla, sempre tomando o cuidado para nunca deixar que o ponto de vista da protagonista seja tratado com descaso ou que as violências sofridas por ela sejam romantizadas. Isso porque Coppola entende as nuances da vivência feminina e sabe como transpor os dilemas, os desejos e as insatisfações de um período tão conturbado e definitivo quanto a juventude para a tela, construindo uma narrativa visual tão envolvente e detalhada que enriquece ainda mais o que estamos assistindo.

O delineador bem marcado que Cailee Spaney surge fazendo já nos créditos de abertura, o tapete felpudo e acolhedor, o cabelo tingido de preto e as unhas bem feitas. Tudo isso se junta para formar o retrato de uma jovem que, para sobreviver em um mundo artificial onde todos esbanjam uma falsa felicidade, precisa se agarrar ao pouco que tem para não sumir completamente na sombra do grande Rei do Rock.

Filme mostra a processo de autodescoberta de Priscilla após conhecer Elvis Presley.

Para conseguir esse efeito, a direção de Coppola, sempre vigilante e muito consciente dos espaços que apresenta, nos conduz por um universo fabricado e ilusório que vai despencando gradativamente a partir da transformação de Priscilla na “esposa de Elvis Presley”. Sob os olhares ingênuos de Cailee Spaney e seus gestos comedidos, a cineasta constrói o processo de autodescoberta de Priscilla de um jeito extremamente natural, algo que recebe uma baita ajuda do trabalho da figurinista Stacey Battat, uma colaboradora de longa data de Coppola.

Para quem está familiarizado com a filmografia de Sofia Coppola, é fácil perceber como a moda é uma ferramenta muito importante para comunicar aos espectadores aquilo que a cineasta deseja. No caso de Priscilla, então, essa relação se torna ainda mais interessante, justamente por ir além da busca por referências nas pessoas reais. O trabalho de Battat dialoga com o estilo de Coppola, com seus ares vintages e tons rosados que parecem saídos de um sonho adocicado, que não deixam de contrastar com o maximalismo de Baz Luhrmann no truncado Elvis de 2022.

Através de vestidos que refletem o período temporal em que a narrativa se passa, sprays de cabelo e maquiagens marcantes, vamos acompanhando a mudança de Priscilla, que passa de uma adolescente tímida e quieta para uma mulher cujo marido é um astro do rock. Os vestidos de boneca dão espaço para as vestimentas ousadas, sensuais e provocativas – tudo orquestrado por Elvis, um marionetista que aproveita a ingenuidade e a inexperiência da jovem para moldar a personalidade dela como deseja.

Um sombrio conto de fadas

“Você é madura para sua idade”. Uma frase em tom de “elogio” que Priscilla escuta o tempo todo quando está na presença de Elvis Presley. Porém, somente as mulheres ao seu redor parecem perceber essa dissonância incômoda, mesmo que exista um humor muito sutil nos comentários feitos por elas.

Relacionamento conturbado de Elvis e Priscilla Presley é destaque do filme.

Os homens, por sua vez, olham para Priscilla com volúpia, incentivados pela vontade de Presley de moldar a personalidade e a maneira como a amada se comporta publicamente. É ele quem dita o que ela deve vestir, ler ou pensar, forçando um processo de amadurecimento que, ao invés de ser natural, é imposto a ela em uma sociedade que pouco se importa com os desejos femininos. Gradativamente, Priscilla anula suas próprias vontades, sufocada pelas correntes opressoras de um relacionamento violento e tóxico.

É esse ambiente autoritário e nada saudável que coloca Priscilla em uma posição degradante, onde ela é vista apenas como um frágil acessório perto do Rei do Rock. Isso se reflete até mesmo na gritante diferença de altura entre Jacob Elordi (com seus quase dois metros) e Cailee Spaeny, uma escolha que faz o trabalho de Coppola ser ainda mais preciso e certeiro exatamente por conseguir reforçar a injusta hierarquia dentro dessa relação.

Diferente do Elvis de Luhrmann, que usa o exagero para condensar em algumas horas os principais acontecimentos da carreira de Presley, Coppola segue seu próprio caminho para contar a história de Priscilla, uma mulher que, apesar de ser mundialmente reconhecida, muitas vezes é lembrada apenas como a “esposa do Rei do Rock” e não como uma pessoa propriamente dita, alguém com desejos, defeitos, angústias e frustrações.

Jacob Elordi cria sua própria versão de Elvis Presley em Priscilla.

Até mesmo Elordi consegue se beneficiar da proposta de Coppola. Ao contrário do Elvis caricato e exagerado de Austin Butler, o astro de Euphoria não está muito preocupado em mudar o seu tom de voz ou mover montanhas para tentar conquistar prêmios por aí: ele cria sua versão de Presley, sempre dialogando com o universo construído pela diretora e construindo uma persona distinta daquela que estamos acostumados a imaginar quando o nome de um dos astros mais importantes da música vem à tona. Aqui, o cara apaixonado por Memphis é mais humanizado do que a versão endeusada de Luhrmann, produzindo um efeito mais intenso e sincero na narrativa.

Porém, apesar de toda a comoção criada ao redor de Elvis Presley, Sofia Coppola não deixa, em nenhum momento do filme, que ele seja a figura central da trama. Não é o sucesso, as motivações ou as icônicas vestimentas do músico que interessam para a diretora, afinal todo mundo já está cansado de ver a mesma história sendo contada inúmeras vezes. O que ela realmente quer é fugir disso para, então, falar de Priscilla, a mulher que permaneceu ao lado do astro até o instante em que percebeu que só conheceria a liberdade quando tomasse a iniciativa de sair daquele casamento sufocante e solitário.

Do início ao fim, Priscilla mostra a força de Sofia Coppola como uma cineasta ímpar que entende seu objeto de trabalho com leveza, intensidade e respeito. Mesmo em projetos que não conquistam o espectador logo de cara, como aconteceu com a comédia On the Rocks (2020), seu último longa antes de Priscilla, a capacidade da diretora de enxergar novos pontos de vistas e transformá-los em universos únicos — com seus ares melancólicos à la Encontros e Desencontros (2003) e suas subversões à la Maria Antonieta (2006) — é uma constante em sua filmografia, repetindo-se em cada projeto seu de maneira distinta e, ao mesmo tempo, tão convergente.

Priscilla reúne o melhor do estilo de Sofia Coppola.

É por isso que Priscilla, ao unir todos os pontos fortes de Coppola, consegue ter êxito naquilo que se propõe a explorar, buscando maneiras sutis e aparentes para contar a história de uma jovem cujos sonhos foram abafados pelos desejos de uma estrela do rock. Muito autoconsciente e incisivamente delicado, o filme expõe os horrores de um relacionamento controlador em que a mulher é constantemente silenciada e moldada pelo violento olhar masculino, em um ambiente onde tudo é imposto e seus desejos nunca são atendidos com uma devoção recíproca.

Coppola faz tudo isso sem degradar a imagem de Priscilla – muito pelo contrário. A delicadeza da direção não humilha sua protagonista, mesmo que o olhar masculino a revire de ponta cabeça. É um filme que caminha por sutilezas, mas sem nunca deixar de pontuar muito bem todas as problemáticas envolvendo o relacionamento entre Elvis e Priscilla. Um tanto quanto amargo, o novo longa-metragem de Sofia Coppola rompe o mito por trás de Presley, enquanto humaniza e dá voz àquela que orbitou a vida de um dos maiores astros do rock como um fantasma.

Nota: 5 de 5.

Priscilla estreia no dia 4 de janeiro de 2024 nos cinemas, com sessões de pré-estreia a partir do dia 26 de dezembro de 2023.

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