Crítica: Desculpa Barbie, mas a Frankenstein feminista de Pobres Criaturas tem tudo para ser a boneca do ano

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Crítica: Desculpa Barbie, mas a Frankenstein feminista de Pobres Criaturas tem tudo para ser a boneca do ano

Por Gabriel Mattos

Barbie que se cuide, porque há uma nova boneca de olho no Oscar 2024. Dirigido por Yorgos Lanthimos, Pobres Criaturas (ou Poor Things, no original) vem cativando entusiastas com um olhar bem mais macabro e esquisito do universo feminino, que constrasta naturalmente com a delicada e precisa interpretação de Emma Stone. Herdando a pegada sinistra de Wandinha e uma sinceridade corajosa que deixaria Sex Education com vergonha, é fácil entender como este filme conquistou o Leão de Ouro no Festival de Veneza, o coração do público no Festival do Rio e pode levar o Filme do Ano na cerimônia do Oscar.

Ficha Técnica:

Título: Pobres Criaturas (Poor Things)

 

Direção: Yorgos Lanthimos

 

Roteiro: Tony McNamara

 

Data de lançamento: 1º de fevereiro de 2024

 

País de origem: Irlanda, Reino Unido e Estados Unidos

 

Duração: 2h 21min

 

Sinopse: A incrível história sobre a evolução fantástica de Bella Baxter, uma jovem trazida de volta à vida pelo brilhante e não convencional cientista Dr. Godwin Baxter.

Nem tudo que reluz é rosa

O que começa como uma simples reimaginação feminina da história do Monstro de Frankenstein, logo revela as suas próprias cores. O ponto de partida é um cientista maluco, vivido por Willem Dafoe, que traz uma mulher de volta à vida após uma tentativa bem-sucedida de suicídio. Como sua mente retorna a um estado infantil, o tom rapidamente foge para o ridículo, o que é ótimo. Afinal, a proposta é explorar um tema que costuma deixar as pessoas bastante na defensiva e o humor surge como uma ótima ferramenta para desarmar esse instinto de repulsão.

Em um minuto, você está rindo de como Emma Stone se move de forma desengonçada, quase como a cantora Lorde em seus shows antigos. E quando menos espera, cai a ficha de que tudo que o filme fez graça até então não era das esquisitices do seu mundo macabro, mas sim da ridícula reação dos homens diante da independência feminina. Lembra bastante a abordagem de Barbie, da Greta Gerwig, trocando a plasticidade gritante do mundo cor de rosa por uma atmosfera sombria e surrealista.

Trazendo a mesma veia satírica, o longa está menos preocupado em ser didático em sua abordagem e mais focado em cobrir o máximo de situações da vivência feminina. Ele confia que o espectador vai questionar a natureza bizarra das dinâmicas que surgem dos papéis de gênero sem precisar entregar um roteiro mastigado, cheio de explicações. E por não precisar se preocupar em agradar as crianças, por não ser um filme comercial, nenhum assunto está fora de cogitação. Questões sobre sexualidade e o prazer feminino, por exemplo, são tratadas sem pudor ou moralidade, de uma forma mais saudável. 

Emma Stone é uma força da natureza incontrolável, mesmo nas mãos de Mark Ruffalo (Créditos: Disney)

Apesar de manter um universo fantástico, com uma inventividade típica de um conto de fadas, o que mais chama atenção é a forma realista que encara seu tema. Ao invés de propor uma utopia em que o empoderamento feminino existe em uma bolha imaculada, sem interferência masculina, Pobres Criaturas ousa retratar uma dinâmica mais parecida à sociedade real. Aqui, mulheres exigem e conquistam seu espaço mesmo vivendo em um mundo dominado pelo olhar masculino. Não sonha com uma alternativa imaginária, mas ousa propor uma disrupção realista mais próxima de sacudir a nossa sociedade machista.

Do princípio ao fim, os conflitos do filme são muito guiados por esse choque de realidades. A Bella Baxter de Emma Stone é a encarnação do olhar mais inocente e puro possível sobre o amadurecimento feminino. Todos os seus questionamentos, suas experimentações, frustrações e desencantos, transformados em expressões e falas entregues com maestria pela atriz. Por vezes pode ser gutural, o que faz parte do processo. Como se algo estivesse entalado em sua garganta por anos, lutando para sair com a interpretação brilhante de Stone.

E do outro lado, os diferentes homens do elenco representam facetas das expectativas de uma sociedade patriarcal. A relação com o pai de Willem Dafoe, por exemplo, sintetiza as primeiras experiências de controle e rebelião diante deste contexto tão opressor. O marido compreensivo, interpretado por Ramy Youssef, mostra rapidamente as amarras esperadas da mulher em um relacionamento matrimonial. Temos o amante que alega ser um aliado da liberdade feminina, até essa liberdade se voltar contra seus interesses, um amigo gay que tenta ajudar, ao mesmo tempo que se incomoda com os privilégios de sua mana, um ex-abusivo que tenta ao máximo controlar o corpo da mulher… 

Cada novo capítulo da história funciona como um ensaio da conturbada relação entre homens e mulheres no patriarcado, o que é bem marcado também nas decisões estéticas da direção. A escolha de retratar o mundo em preto e branco nas sequências iniciais, por exemplo, reforça a sensação cadavérica de viver uma vida sem autonomia. Quando a protagonista começa a tomar as rédeas de sua própria vida, sem se deixar guiar pelas amarras dos homens ao seu redor, sua história começa a ganhar cores e seguir por um caminho de possibilidades infinitas.

Os ambientes insanos em seu caminho são outro reflexo bastante intencional das diferentes fases de sua vida. A colorida e vívida Lisboa, que de tão exagerada lembra a cidade de Lestallum de Final Fantasy XV, funciona perfeitamente como um encontro de todas as experiências das quais Bella se via privada, até então. A gélida Paris, de outro capítulo, representa bem um momento mais frio de sua vida, após ter encarado de frente os lados mais devastadores da sociedade que mudam para sempre seu jeito de ver o mundo.

Assim, a aventura externa da personagem ao redor do mundo funciona muito como metáfora para uma jornada interna de autoconhecimento. Todo aquele mundo fantástico acaba existindo em prol de contextualizar a evolução e as emoções de Bella Baxter. É como um conto de fadas que fica mais mágico e incrível a cada lição de moral. Mesmo que a estrutura da trama pareça imitar episódios de uma série, acaba sendo daquele tipo que você maratona tudo de uma vez sem enjoar.

Nota: 5/5

Olhar para o absurdo da sociedade como um alienígena que entra em contato pela primeira vez com a nossa cultura é simplesmente catártico. E essa é a experiência que Pobres Criaturas entrega do início ao fim. Belo, estranho, sagaz e sensível — o filme cresce nas suas contradições, abraça as imperfeições humanas e cutuca o espectador apenas o suficiente para tirá-lo da zona de conforto. Um confortável mundo colorido pode ser incrível, mas tem emoções que apenas na estranheza podem ser sentidas com verdade.

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