Crítica – Os Fabelmans: Steven Spielberg mergulha em suas memórias para fazer o filme mais pessoal de sua carreira
Crítica – Os Fabelmans: Steven Spielberg mergulha em suas memórias para fazer o filme mais pessoal de sua carreira
Inspirado nas experiências da juventude de Spielberg, o filme capta a essência da árdua jornada de um artista enquanto faz uma homenagem à sétima arte
Memórias podem ser traiçoeiras. Camufladas pela passagem do tempo, são elas que nos acompanham por toda a vida, misturando situações imaginadas e reais para formar uma bagagem de vivências que influenciam a nossa jornada em direção ao futuro. Com o grande Steven Spielberg, claro, não seria diferente, e foi impulsionado por suas próprias lembranças que o cineasta decidiu fazer as pazes com um dos períodos mais transformadores (e traumáticos) que experienciou.
Estrelado por Gabriel LaBelle, Michelle Williams e Paul Dano, Os Fabelmans busca nas memórias de Spielberg uma maneira de compreender a trajetória de um artista. A obra semiautobiográfica da mente por trás de Tubarão (1975) e E.T.: O Extraterrestre (1985) é tudo aquilo que você poderia esperar dela, porém de um jeito mais intimista e corajoso. Isso porque, ao decidir mostrar um pedaço de si, Spielberg teve a coragem de se tornar vulnerável e, assim, reconciliar-se com suas lembranças através da egocêntrica experiência artística.
Ficha técnica
Título: Os Fabelmans
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Steven Spielberg e Tony Kushner
Data de lançamento: 12 de janeiro de 2023
País de origem: Estados Unidos da América
Duração: 2h 31min
Sinopse: Um retrato profundamente pessoal da infância americana do século XX, narra a história de um jovem que descobre um segredo familiar devastador e revela o poder dos filmes para nos ajudar a ver a verdade sobre os outros e sobre nós mesmos.
Capture cada momento
Quando Mitzi Fabelman (Michelle Williams) diz ao pequeno Sam Fabelman (Mateo Zoryon Francis-DeFord/Gabriel LaBelle) que “filmes são como sonhos”, o garoto leva aquilo como uma verdade absoluta para vida toda. A primeira ida ao cinema, tão transformadora para muitos, deixa marcas irreversíveis em Sammy, que fica completamente deslumbrado (e um tanto quanto assustado) com a magia da ilusão cinematográfica.
Mesmo com o impacto inicial, Sam transforma a câmera em sua melhor amiga. Com a ajuda da família e de colegas, ele passa a produzir seus próprios filmes à medida que cresce, experimentando técnicas e estilos para tirar do papel seus faroestes e épicos de guerra.
Mas é por meio dessa arte, que traz tantas alegrias para um garoto que explora as primeiras incertezas da adolescência, que uma verdade devastadora se apresenta. Por meio de olhares e gestos, a câmera mostra para Sam que o mundo que ele conhecia era, na verdade, uma coisa inventada, e o casamento dos pais, que até então parecia consistente, não passava de uma mera ilusão, assim como nos filmes que transformaram sua vida a ponto de se tornarem sonhos inesquecíveis.
Dizer que Os Fabelmans é uma simples homenagem de Spielberg ao cinema é reduzir a complexidade de suas entrelinhas: muito mais do que celebrar a sétima arte, o filme mostra como a necessidade de criar qualquer tipo de arte eleva o nosso espírito até a compreensão de experiências vividas, principalmente aquelas que deixaram uma marca irreparável. Para Spielberg, esse “ato irreparável” foi o divórcio dos pais, uma ruptura impactante o suficiente para afetar seus trabalhos como diretor ao longo dos anos (basta viajar um pouco por sua filmografia para ver como as relações familiares são retratadas).
Afinal, se a arte é um reflexo de nossas experiências e daquilo que habita dentro de nós, dizer que ela está livre de influências externas ou internas é ridículo. Sam consegue perceber isso, mesmo de forma inconsciente, quando usa a câmera para mostrar aos outros – e a si próprio – verdades escondidas ou fabricadas. Por meio de uma escolha de enquadramento ou um movimento de câmera, é possível revelar as reais nuances de alguém ou fazer com que isso se torne uma verdade. A câmera escancara o que não é visível a olho nu, e é dessa forma que Spielberg trabalhou a vida inteira: com suas verdades escondidas respingando em todos os seus projetos.
A jornalista e escritora Joan Didion disse uma vez que nós contamos histórias para viver. Assim, quando Spielberg decide ficcionalizar a história de ruptura dos pais (brilhantemente interpretados por Michelle Williams e Paul Dano no filme), é exatamente isso que ele faz: conta uma história para continuar existindo depois de enfrentar uma situação específica. Permanece vivo, então, por meio de sua arte, que é necessária para o (nem um pouco) simples ato de existir.
Ao se projetar em Sam Fabelman, Spielberg revive momentos críticos de sua infância e adolescência, reunindo memórias – inventadas ou não – e confundindo-se cada vez mais com o protagonista. Logo, a performance de Gabriel LaBelle se beneficia do privilégio de seu diretor conhecer essas lembranças, mas não de um jeito sufocante. É algo necessário para que quem está do outro lado da tela capte cada nuance.
Isso porque, em Os Fabelmans, o jovem Sam é um garoto que vive para os outros – ele age como o figurante da própria vida, sem vivê-la do jeito que queria de fato. Reprime seus desejos e vontades porque não consegue se libertar das amarras familiares. Nós que, por mais que tentemos, também não conseguimos desfazê-los. Afrouxá-los talvez, mas nunca desatá-los.
É dessa forma que LaBelle consegue mostrar cada conflito interno vivido por Sammy. Conforme ele vai amadurecendo, seu amor pelo cinema vai dando significado à sua existência. O que é visto apenas como um “hobby passageiro” pelo pai, é na verdade a maneira que Sam encontrou de expressar seus anseios e de dizer aquilo que ninguém quer entender, mas que, no fundo, sabe que está ali. É uma forma de ter a falsa sensação de controle, enquanto o mundo desmorona ao seu redor – como se ouvir um simples “luzes, câmera, ação” fosse uma sensação entorpecente.
Sobre ter coragem para criar
Há uma cena lindíssima entre Gabriel LaBelle e Judd Hirsch, o intérprete do tio Boris de Sam, que resume bem uma questão importante no filme: a de que, para ser um artista, é preciso ser egoísta. Mas não somente isso, já que o garoto também tem que entender que esse caminho é solitário e, muitas vezes, doloroso e exaustivo.
Além disso, é compreender também que, longe dos julgamentos familiares e daquilo que a sociedade espera dele, Sam ficaria preso em um “entre”, onde o passado o impulsiona para frente, mas o futuro ainda não está próximo o bastante para que o garoto consiga agarrá-lo. E é quando ele está nesse “entre” que o vemos sofrer pela perda da obsessão que lhe dava vida, em uma luta injusta que coloca arte e família em lados opostos.
Assim, se escolher dedicar sua vida à arte, essas quatro palavrinhas mágicas que sugam tudo aquilo que habita em você – seus sonhos, suas vontades, suas ideologias, suas vivências – Sam assumiria, por fim, a direção da própria vida, mas perderia o apreço familiar. Mas, apesar do dilema, o rapaz sente que, somente por meio da manifestação artística, conseguiria dizer o indizível, aquilo que seu coração ainda não conseguiu compreender o suficiente para se transformar em palavras.
Talvez seja isso que Steven Spielberg encontrou em Os Fabelmans – uma forma de ordenar suas memórias e expressá-las através da lente de uma câmera, controlando-as. Dessa maneira, a necessidade incessante de compreender um momento vivido, seja ele traumático ou não, encontra na arte uma forma de existência. O próprio Sam Fabelman faz isso em um dos momentos mais dramáticos do filme: é a câmera quem diz para ele, em imagens, aquilo que ele não conseguiu enxergar sem ela. É quase como Victor Frankenstein dando vida a um monstro, juntando partes aqui e acolá até que o “quebra-cabeças” tome forma.
Como Rainer Maria Rilke disse em suas Cartas a um Jovem Poeta, a arte é apenas um modo de viver e é vivendo a vida que nos preparamos para ela. Afinal, muitas coisas que acontecem conosco não encontram meios para serem expressadas em voz alta. Para o protagonista de Os Fabelmans (e para Spielberg também), juntar uma sequência de imagens, ajustar enquadramentos e narrar uma história é exatamente isso – dar voz àquilo que ainda não aprendeu a falar.
É por isso que Os Fabelmans não pode ser reduzido a ser “apenas” um filme de memórias, como o morno Belfast ou o aclamado Roma, tampouco deve ser reduzido a uma simples homenagem ao cinema. Ele é mais do que isso porque entende a necessidade da criação artística para a sobrevivência, algo que não é um fenômeno exclusivo da sétima arte.
Cada linguagem carrega consigo a necessidade de querer comunicar alguma coisa. Contudo, mais do que isso, talvez seja o equilíbrio entre o querer comunicar e o querer esconder que caracteriza a jornada de um artista. E isso, consciente ou inconscientemente, não deixa de ser um caminho solitário e egoísta. Algo que, mesmo que seja doloroso, ainda precisa ser enfrentado pelo bem da existência humana.
Embora pareça piegas em momentos onde escancara sua carta de amor à sétima arte, Os Fabelmans não perde seu impacto por isso. Com uma atmosfera nostálgica à la Cinema Paradiso, o filme de Spielberg é um retrato intimista e sincero dos mecanismos que usamos para tentar controlar aquilo que acontece conosco. Para o diretor, a válvula de escape calhou de ser o cinema, e foi transformando suas inseguranças e dores em arte que ele conseguiu entender a si próprio a partir de perspectivas diferentes.
Afinal, tudo é uma questão de ponto de vista, e isso até pode ser mascarado pela magia do cinema, já que essa é a linguagem em questão. A belíssima e divertida cena em que David Lynch interpreta o cineasta John Ford no filme deixa isso claro. Assim, em Os Fabelmans, Steven Spielberg oferece um novo olhar sobre um dos eventos mais marcantes de sua vida, voltando-se para o passado na tentativa de compreender a figura que é hoje e, assim, mudar a linha de seu próprio horizonte, quantas vezes for necessário.
Os Fabelmans estreia no dia 12 de janeiro de 2023 nos cinemas brasileiros.
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