Crítica: Ó Paí, Ó 2 captura mais uma vez a energia da Bahia, mesmo intimidado com seu próprio legado
Crítica: Ó Paí, Ó 2 captura mais uma vez a energia da Bahia, mesmo intimidado com seu próprio legado
Sequência protagonizada por Lázaro Ramos tropeça nas expectativas criadas pelo filme original
Poucos lugares do Brasil tem uma carga cultural tão rica quanto Salvador, a capital da Bahia. Como um verdadeiro caldeirão de tendências, a cidade mistura influências de diferentes povos e devolve de uma forma única, bem especial. Com um tempero, por assim dizer, que Ó Pai Ó, filme de 2007, tem de sobra. Quinze anos depois, a sequência, Ó Paí Ó 2, chega aos cinemas de todo o Brasil com o desafio de repetir o sabor delicioso desse prato. Porém, apesar de agradar, ao servir uma boa dose de humor com uma leve pitada de drama, o retorno ao cotidiano do cortiço mais bagunçado do país não deixa de ter um gostinho de algo requentado.
Ficha técnica
Título: Ó Paí Ó 2
Direção: Viviane Ferreira
Roteiro: Elísio Lopes Jr. e Viviane Ferreira
Data de lançamento: 23 de novembro de 2023
País de origem: Brasil
Duração: 1h 30min
Sinopse: Roque, aspirante a músico, retorna ao lado de uma nova geração de personagens, filhos dos moradores do velho cortiço no Pelourinho, que entram na luta pela causa negra de forma bem humorada e regada a música e poesia.
Uma caldeirão cultural bem morno
Assim como na vida real, a história retorna quinze anos após os eventos do filme original ao cotidiano de um grupo de amigos de um cortiço do Pelourinho. Muita coisa mudou e não só entre os personagens: a cidade e a própria sociedade precisaram se atualizar. E enquanto vamos nos inteirando sobre as fofocas que rolaram ao longo de todo esse tempo, acontece uma pequena tragédia que une todos por uma única causa: Neusão, a sapatão que era como uma mãe para o grupo de amigos, perde o seu bar.
Diferente do longa original, escrito por Márcio Meirelles, Ó Paí Ó 2 opta por uma trama mais tradicional. Abandona de vez a estrutura mais experimental, que navegava entre diferentes núcleos do elenco como uma vizinha fofoqueira, sempre curiosa em saber de tudo da vida dos outros. Dessa vez, existe uma organização mais familiar para a história. O grande problema de Neusão funciona como um fio condutor para toda a narrativa, do qual pequenas subtramas acabam florescendo, mas sem nunca roubar o holofote principal.
Se Ó Paí Ó era como um robusto e exuberante carvalho, que permitia que seus personagens crescessem de forma saudável e encantadora, a sequência é como uma árvore que podada antes da hora. Sem deixar o elenco desabrochar ao seguir suas próprias histórias, a sequência acaba sufocando o ritmo do longa. De um lado, as subtramas não tem o mesmo charme do filme clássico porque são encerradas abruptamente para seguirem um outro enredo. Por outro, a própria história principal, de Neusão, também acaba sendo prejudicada por não contar com personagens profundos que façam o público se importar. E assim, sem se comprometer com nenhuma estratégia, o roteiro fica perdido.
O próprio Neusão, uma das figuras mais carismáticas do primeiro filme graças a atuação de Tânia Tôko, não passa de um fantasma do que foi um dia. Um simples artifício de roteiro sem muita personalidade, que não tem momentos de holofote o suficiente para brilhar. Muitos personagens veteranos acabam perdendo um pouco de seu charme. Ainda encantam, devido ao talento descomunal do elenco, mas não recebem oportunidades o suficiente no longa para se destacarem.
Existem muitos momentos focados em desenvolver uma mensagem social, super necessária e bem-vinda, e para fazer graça ou avançar a rasa trama geral. E nesses aspectos, o longa entrega um trabalho bem competente. Mas o custo acaba sendo muito alto. Afinal, cenas para desenvolver os personagens que são a alma de Ó Paí Ó são sacrificadas de forma um tanto arbitrária. A Maria, de Valdinéia Soriano, o Edinaldo, de Érico Brás, e até mesmo a Yolanda, do Lyu Arisson, são alguns exemplos. Não estão ruins, mas não mostram a que vieram em momento algum.
Felizmente, o vazio deixado pelo elenco clássico é, ao menos, preenchido: seja por novos rostos do elenco juvenil ou por nomes inusitados do longa de 2007. Dona Joana, por exemplo, assume um novo papel que fisga a atenção como nenhum outro. Sua história pode ser a mais isolada de todo o elenco, porém — ou talvez por este exato motivo — é a que melhor funciona. Luciana Souza entrega uma atuação espetacular, com um show de versatilidade, navegando tranquilamente entre uma figura triste e esvaziada pela morte de seu filho a um sopro de esperança. Infelizmente é outra que tem uma trama incompleta, mas que entretém do início ao fim com a dinâmica cheia de altos e baixos com seu menino.
São exatamente jovens, como o filho adotivo de Joana, que trazem um novo brilho à história. A maioria acaba ficando meio perdida no meio de tanta gente, infelizmente, mas os que conseguem ter um destaque, como a filha de Neusão, conquistam com uma alegria genuína. A juventude também está no coração das principais soluções da trama, reforçando muito a ideia de que a nova geração está mais preparada para os problemas da nova sociedade. Nisso, o filme consegue demonstrar uma humildade que costuma faltar no cinema brasileiro — de saber reconhecer a necessidade de renovação sem que isso signifique o fim da era daqueles que tanto batalharam para conquistar um cenário mais justo para todos.
Passado e futuro, inclusive, convivem muito bem nessa narrativa. Se a juventude e suas tecnologias movimentam a trama, com uma pitada de renovação e um certo frescor, são os momentos em que o filme se permite desacelerar para saudar seus ancestrais que trazem sentimento e autenticidade à obra. Elementos de religiosidade africana, mais aceitos na sociedade moderna, estão presentes em abundância e são apresentados sem qualquer vergonha. E a relação ancestral do povo preto com a música é mais uma vez abordada com sutileza, de forma bastante orgânica.
Afinal, conquistar o Brasil com seu canto é a motivação principal de Roque, personagem de Lázaro Ramos. E seu ritmo tipicamente baiano se espalha em diversos pontos do longa para salpicar um toque de autenticidade à obra. Para reforçar essa verdade e esse respeito que o longa trata a cultura baiana, o filme acerta em convidar para as telas quem trabalhou arduamente, aqui do lado de fora, para disseminar essa cultura pelo país. Mesmo que não existam para avançar o enredo principal, as cenas com a participação de Margareth Menezes e o Baianasystem são um exemplo do tempero certo que fazem essa história funcionar. E se existissem em maior quantidade, talvez o filme não parecesse ter tão pouco fôlego.
Ao mesmo tempo, estas sequências acabam trazendo à tona temas sociais importantes para o centro da narrativa, algo que o projeto faz questão de incorporar. Em 2007, Ó Paí Ó esteve na vanguarda da discussão racial para o grande público do Brasil, levando para a tela da Globo e para o cinema temas sobre sexualidade, afeto e preconceito, comuns à vivência de pessoas pretas, que simplesmente não eram comentados abertamente na época. Não ironicamente, o filme original quebrou tabus, como uma obra a frente do seu tempo. A sequência não tem nem de perto o mesmo poder, ou impacto, mas não deixa de reforçar pontos importantes sobre a comunidade.
A questão é que discussões sobre negritude, apesar de não serem exatamente a norma, não são mais a exceção como eram há quinze anos. Tanto a televisão quanto o cinema evoluíram muito neste sentido, trazendo diversas abordagens ao assunto em obras como Cara Gente Branca, Atlanta e Pantera Negra. Assim, Ó Paí Ó 2 não consegue encontrar uma perspectiva especialmente nova à discussão. Onde antes liderava o discurso, agora parece apenas concordar com questões bem disseminadas entre pessoas com algum letramento racial.
Tópicos como a importância de incentivar empresários pretos e o pacto da branquitude não são exatamente novidade no discurso público, podem ser encontrados aos montes em páginas de Instagram hoje em dia, e não recebem o devido aprofundamento no filme. Falta uma cena que se permita ser impactante, com uma entrega descomunal, como aconteceu no monólogo clássico entre Roque e Boca, de Wagner Moura, no filme original.
A mensagem que mais tem destaque é o questionamento sobre a importância de ampliar vozes pretas e os perigos de permitir que empresários brancos se apropriem de nossos trabalhos, esvaziem nossos discursos e usem o nosso suor para continuar a alimentar a máquina de projetar brancos tão bem estabelecida em nosso país. Ainda assim, apesar dos esforços de Lázaro Ramos em aquecer esse discurso com sua atuação, o roteiro não tem uma base sólida o suficiente para tocar tanto quanto no passado. Tudo é resumido em uma simples frase, de fácil digestão, entre o personagem e seu filho, que traz uma dinâmica legal no filme, apesar de não ter lá uma presença de palco muito memorável.
No final, Ó Paí Ó 2 ainda é uma ótima experiência, como há quinze anos atrás. Só acabou se esquecendo de seguir suas próprias lições no caminho. Seu maior tesouro continua sendo o carisma do povo baiano, representado muito bem pelo Bando de Teatro Olodum. Pena que não existem tantas oportunidades para este elenco encantar em todo seu potencial. Há um esforço do filme em se podar para encaixar nas expectativas de um público mais polarizado, maneirando nos discursos sociais para não ser taxado de militante e também perdendo um pouco da leveza que havia no primeiro. Faltou ouvir o próprio discurso do Roque no filme, quando diz que “que mais tira oportunidade do preto é tentar agradar quem nunca gostou dele.”
Ó Paí Ó 2 está em exibição nos cinemas.
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