Crítica – Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes faz jus à franquia com estudo de personagem e críticas políticas

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Crítica – Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes faz jus à franquia com estudo de personagem e críticas políticas

Por Jaqueline Sousa

Quando Tigris Snow (Hunter Schafer) olha para Coriolanus Snow (Tom Blyth), com seu cabelo milimetricamente arrumado e suas vestimentas imponentes, a única coisa que ela consegue dizer ao primo é “você se parece com seu pai”. É uma frase que, vista de longe, parece batida e simplória, mas não quando o sujeito para quem ela se dirige é o homem que lentamente se tornou o tirânico presidente de Panem – um processo impulsionado pela figura inescrupulosa do pai, o pontapé inicial para que os Jogos Vorazes condenasse a vida de milhares de crianças apenas pelo prazer do espetáculo.

Inspirado no livro homônimo da escritora Suzanne Collins, a criadora de uma das distopias mais relevantes da contemporaneidade, Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes volta no tempo para nos apresentar uma Panem antes da revolução de Katniss Everdeen. Com direção de Francis Lawrence (Jogos Vorazes: Em Chamas), o longa-metragem, assim como a obra literária na qual se baseia, coloca aquele que aterrorizou a jornada da introspectiva tributo do Distrito 12 na trilogia original no centro dos holofotes para fazer um cuidadoso estudo de personagem, enquanto honra o legado da franquia com suas conhecidas discussões políticas e reflexões pertinentes à atualidade. Muito mais do que ser apenas “mais um spin-off” de uma saga de sucesso, A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes mostra o porquê distopias – com suas visões futuristas e um toque de surrealismo – podem revelar mais sobre nós mesmos do que qualquer outra coisa.

Ficha técnica

Título: Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes

 

Direção: Francis Lawrence

 

Roteiro: Michael Lesslie e Michael Arndt

 

Data de lançamento: 15 de novembro de 2023

 

País de origem: Estados Unidos da América

 

Duração: 2h 37min

 

Sinopse: Anos antes de se tornar o presidente tirânico de Panem, Coriolanus Snow, de 18 anos, vê uma chance de mudar sua sorte quando se torna o mentor de Lucy Gray Baird, o tributo feminino do Distrito 12.

Pôster de Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes.

A neve sempre fica por cima

Mais de 60 anos antes de Katniss Everdeen se oferecer como tributo para salvar a vida da irmã mais nova nos Jogos Vorazes, o futuro Presidente Snow esbanjava um falso ar de imponência para esconder o fato de não tinha dinheiro nem para comprar uma camisa nova. Traumatizado pelas consequências da guerra que silenciou aqueles que lutavam contra um sistema opressivo, Coriolanus tinha apenas um sonho: reconquistar o prestígio que a família Snow teve um dia.

É com essa sede de vingança que o jovem Coriolanus encontra a oportunidade perfeita para dar a volta por cima ao se tornar o mentor de Lucy Gray Baird (Rachel Zegler), o tributo feminino do Distrito 12 na décima edição dos Jogos Vorazes. Apesar de acreditar inicialmente que a garota não tem a mínima chance de vencer, Snow logo muda de ideia quando percebe que a força magnética do pão e circo pode ser a estratégia mais eficiente para colocá-lo de volta no topo, o lugar que ele sempre acreditou merecer.

Novo Jogos Vorazes se passa mais de 60 anos antes de Coriolanus Snow se tornar o tirânico presidente de Panem.

Logo na epígrafe de A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes, Suzanne Collins seleciona algumas citações que preparam o terreno para o que você vai encontrar na obra que expande a mitologia de Jogos Vorazes. Entre pensamentos de filósofos como Jean-Jacques Rousseau e Thomas Hobbes, a escolha por uma frase de Frankenstein, clássico da literatura de horror escrito por Mary Shelley quando ela tinha apenas 18 anos, chama atenção por aproximar a dinâmica entre Victor Frankenstein e sua Criatura da relação entre Coriolanus Snow e a Dra. Volumnia Gaul, a antagonista do spin-off que é brilhantemente interpretada por Viola Davis.

Para resumir, a citação escolhida por Collins se refere à mudança em que a Criatura de Frankenstein passa ao longo da narrativa – as virtudes que ele apresentava no início de sua existência que logo foram destruídas pelo desprezo e a aversão que seus protetores manifestaram em relação a ele. Não cabe aqui entrar no contexto em que a frase se insere em Frankenstein, mas o que vale destacar é a maneira como Coriolanus Snow se posiciona em um mundo pós-guerra, onde um governo autoritário e vingativo pune aqueles que se uniram contra o sistema da maneira mais perversa possível: colocando suas crianças para matar umas às outras, enquanto o restante do país bate palmas atrás das câmeras. E isso também vale para quem se camufla na falsa proteção da Capital, como Snow logo aprende ao longo da narrativa.

Diferente da trilogia original, que se aprofunda mais nas consequências de uma guerra e em como a concentração de poder causa disparidades econômicas, Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes busca explorar a natureza humana a partir das condições sociais, políticas e culturais nas quais os indivíduos se inserem e como nossas escolhas, por mais que sejam responsabilidades individuais, ecoam aspectos do ambiente social onde vivemos.

Derivado explora os limites da natureza humana.

É a partir disso que, além de fazer suas já conhecidas críticas políticas, tão presentes em todos os livros de Jogos Vorazes, a criadora desse universo acerta ao colocar no centro do debate uma figura tão desprezível quanto Coriolanus Snow, um trabalho que é adaptado com precisão pelos roteiristas Michael Lesslie e Michael Arndt, e que repete seu êxito com a condução de Francis Lawrence.

Como diretor das adaptações da franquia desde o majestoso Jogos Vorazes: Em Chamas (2013), Lawrence sabe como transitar entre as nuances da obra de Collins sem cerimônias. Afinal, por conhecer seu objeto de trabalho, ele entendeu exatamente o caminho que precisava percorrer para mostrar como Coriolanus Snow se tornou o temível déspota que fez de tudo para silenciar Katniss Everdeen na trilogia original. Novamente, as virtudes que aquele jovem inteligente e promissor exibia no início de sua jornada acadêmica em Panem são deturpadas pelo meio que influencia suas escolhas, e isso fica nítido em cada uma das três partes que narram a transformação do jovem Snow.

Mas é claro que, por mais preciso que Lawrence tenha sido em explorar visualmente as nuances de uma figura tão densa quanto Coriolanus, ele não conquista sua vitória sozinho: Tom Blyth (A Idade Dourada), o intérprete do jovem futuro presidente de Panem, excede às expectativas ao apresentar uma versão mais “vulnerável” e ao mesmo tempo extremamente arrogante de uma pessoa que se descobre apaixonada pela sensação de poder – algo que foi “tirado” dele quando sua família caiu em desgraça após entrar em falência.

Performance de Tom Blyth como Coriolanus Snow é magnética.

Blyth não ficou intimidado pela popularidade da franquia e muito menos pelo peso de interpretar uma versão mais jovem do grande antagonista de Jogos Vorazes, muito pelo contrário. O ator tem uma presença magnética que é impossível desviar os olhos do domínio que ele exerce em cena. Há vários momentos em que o astro consegue transmitir, com apenas alguns gestos ou olhares, todo o conflito vivido por Snow, desde sua sede por glória até a obsessão por Lucy Gray Baird, um amor doentio que provoca escolhas decisivas para o futuro de ambos, dentro e fora dos Jogos.

Todos são vorazes por algo

Ambientada em uma Panem um tanto quanto diferente da que conhecemos através da perspectiva de Katniss, Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes une sequências musicais, reflexões sobre como a educação pode ser usada para perpetuar sistemas opressores e debates acerca da nossa posição na sociedade – e como ela influencia nossas vivências – em uma trama dividida em três partes, cada uma explorando causas e consequências que levaram um jovem promissor a se tornar uma figura tirânica.

É um processo lento e que não acontece da noite para o dia, e o filme faz isso com sinceridade, algo que já vimos na construção da jornada revolucionária de Everdeen nos filmes da saga original. Aqui, Lawrence tem um conhecimento tão preciso desse universo que, mesmo que num processo quase inconsciente, a câmera consegue te mostrar todos os conflitos internos de Coriolanus. Mesmo que seja impulsionada pela criação de Suzanne Collins, a linguagem cinematográfica encontra novas maneiras de apresentar ao público facetas escondidas de uma figura autoritária que estava começando a dar seus primeiros passos em direção à tirania.

Grande parte dessa influência vem de seus “protetores”, como a Criatura de Frankenstein bem conheceu. No caso de Snow, Lucy Gray Baird e a Dra. Gaul são duas peças chaves nessa dinâmica, cada uma à sua própria maneira. Começando pela personagem interpretada por Rachel Zegler, cujas limitações como uma atriz iniciante, que não evoluiu muita coisa desde sua estreia nas telonas em Amor, Sublime Amor (2021), até casaram com a personalidade performática de Lucy Gray, é interessante acompanhar a influência que a tributo do Distrito 12 exerce em Snow, algo que faz ele perder totalmente o controle de suas ações.

As limitações como atriz de Rachel Zegler dialogam com a personalidade performática de Lucy Gray Baird.

Lucy Gray Baird, com suas canções expositivas e a fome por ser vista e adorada por todos ao seu redor (o que, diga-se de passagem, é o completo oposto de Katniss), manipula as emoções de Coriolanus, mesmo sem perceber, de tal maneira que o futuro presidente de Panem não pensa duas vezes antes de arriscar tudo para protegê-la na arena – e fora dela. Ela evoca o lado mais vulnerável de Snow, uma faceta de sua personalidade desprezada por ele mesmo, já que encara o amor que sente por Baird como uma fraqueza.

A Dra. Gaul, por outro lado, com suas experiências laboratoriais peculiares e o grande entusiasmo para manter a chama da guerra de Panem viva, “adota” Snow como um de seus experimentos, novamente exercendo uma forte influência na maneira como o rapaz se posiciona como mentor na décima edição dos Jogos Vorazes, enquanto alimenta o desejo por poder na mente de Coriolanus.

Nada disso encontraria êxito no filme se não fosse pela performance arrebatadora de Viola Davis, a intérprete da idealizadora que usa tudo que está à sua disposição — figurinos estrategicamente pensados para transmitir uma mensagem, sorrisos diabólicos e uma aura de mistério que só aumenta o seu interesse pela personagem — para que Gaul também entre na sua cabeça com suas ações insanas e até mesmo doentias.

Relação entre Coriolanus Snow e Dra. Gaul é um dos grandes destaques do filme.

Cada ponta desse triângulo, como um dos slogans do filme diz, é voraz por alguma coisa, e o comando de Francis Lawrence é bastante eficaz em apresentar ao público as motivações por trás de cada um deles, mesmo com um terceiro ato bastante apressado. Aqui, ao invés de tentar seguir seu próprio caminho para garantir uma maior coesão na narrativa, o longa repete os mesmos erros do livro em prol da tão polêmica “fidelidade à obra original”, o que o leva a perder sua força com a chegada da parte três.

No entanto, não é algo tão problemático a ponto da trama perder seu foco, o que demonstra mais uma vez como a equipe envolvida, dentro e fora das câmeras, sabia exatamente qual caminho precisava ser percorrido para que a história de como Coriolanus Snow se tornou um governador autoritário ganhasse vida nas telonas.

Portanto, seja no brilhantismo de Viola Davis, no magnetismo de Tom Blyth, ou na presença carismática de figuras como Jason Schwartzman (Asteroid City) e Hunter Schafer (Euphoria), apenas para citar alguns, Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes honra a saga criada por Suzanne Collins sem deixar de fazer comentários ácidos sobre uma sociedade que usa a guerra como uma arma de controle à medida que milhares de inocentes são deixados à sua própria sorte. Por mais pessimista que seu cerne possa parecer, a distopia não precisa se apoiar em um mar de referências da franquia original para te conquistar. O spin-off caminha com as próprias pernas sem deixar de fazer jus ao que veio antes, e é isso que faz A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes ser um derivado fora da curva.

Nota: 4/5.

Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes está em cartaz nos cinemas.

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