Crítica: Batem à Porta promete apocalipse e nos entrega reflexão
Crítica: Batem à Porta promete apocalipse e nos entrega reflexão
Novo filme de M. Night Shyamalan resgata a temática da fé de um jeito assombroso e claustrofóbico
Na última quinta-feira (02), chegou aos cinemas brasileiros o mais novo filme de M. Night Shyamalan. Baseado no livro O Chalé do Fim do Mundo, de Paul Tremblay, Batem à Porta nos leva até uma cabana afastada, enquanto seguimos uma família vivenciando o pior final de semana de suas vidas.
Com um elenco de peso abrilhantado pela performance surreal de Dave Bautista, o filme resgata alguns temas bem conhecidos na filmografia do diretor, sobretudo a relação da humanidade com a fé – ao mesmo tempo em que induz seus personagens à Escolha de Sofia. Confira aqui o que achamos do filme!
Ficha técnica
Título: Batem à Porta (Knock at the Cabin)
Direção: M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan, Michael Sherman e Steve Desmond
Data de lançamento: 02 de fevereiro (Brasil)
País de origem: Estados Unidos
Duração: 1h 40m
Sinopse: Durante as férias, uma jovem garotinha e seus dois pais são encurralados por quatro figuras estranhas e armadas que exigem que a família faça uma escolha impossível para evitar o apocalipse.
O dilema incontornável de Batem à Porta
Uma jovem garotinha brinca do lado de fora do chalé recém-alugado por seus dois pais, onde passam um ensolarado final de semana. De repente, o maior homem que ela já viu na vida sai de trás das árvores próximas, se apresenta e pede desculpa por tudo que irá acontecer logo em seguida.
Essa primeira sinopse de Batem à Porta foi o bastante para cativar minha atenção desde antes de saber que o mais novo longa de M. Night Shyamalan era baseado no premiado livro O Chalé no Fim do Mundo, publicado em 2020 e recipiente do Bram Stoker Award, o “Oscar da literatura de horror”.
Sem pensar duas vezes, adquiri o livro de Paul Tremblay na esperança de “me preparar” para o que veria no filme e tentar entender um pouco mais sobre o fim do mundo retratado na obra. Meses depois, me arrumo para assistir o longa, passo uma boa meia hora enfezado com o casal na fileira da frente que não para de conversar durante o filme e volto para casa com muito mais dúvidas que conclusões.
De muitas maneiras, o cinema de M. Night Shyamalan me agrada por tudo isso. Filmes como O Sexto Sentido, A Vila, Tempo e até o subestimado A Visita são daquelas obras que, gostando ou não, vão encontrar um lugar vago na sua mente, preparar um terreno e construir uma casa de dois andares durante semanas – e de brinde ainda vem uma piscina de pavor existencial e questionamentos cósmicos.
Aqui não seria diferente. Quando a jovem Wen (interpretada por Kristen Cui), já nos primeiros cinco minutos da projeção, olha para o horizonte além do chalé e vê uma figura se mexendo por trás das árvores, que lentamente se aproxima até revelar o corpo monumental de Leonard (vivido por Dave Bautista), já temos um gostinho de tudo que há de mais doce e terrível nessa trama apocalíptica.
E para quem, assim como eu, leu o livro e espera uma transcrição daquela história para os cinemas, já vai a real: você vai se decepcionar. Talvez se surpreenda com o rumo que Shyamalan opta por seguir, invertendo acontecimentos e até alterando todo o final. Mas não espere pelo show niilista na obra de um diretor cujo maior mérito, em meio a um mundo vil e despedaçado, é justamente a esperança e o otimismo.
Mas isso não significa, nem de longe, que os questionamentos abordados na obra de Paul Tremblay não estejam em voga aqui. Imagine-se no lugar de Andrew e Eric (interpretados, respectivamente, por Ben Aldridge e Jonathan Groff), um casal gay que testemunhou na pele a maldade e decadência do mundo, precisando mentir até para que pudessem adotar a jovem vivida por Kristen.
De repente, chegam quatro estranhos que eles nunca sequer viram na vida (será?) e imploram que os dois tomem, ao lado de sua filha, uma decisão absurda e impossível, para salvar a humanidade que os condenou e hostilizou durante as suas vidas. No lugar deles, também precisaria ser amarrado em uma cadeira para não quebrar o pescoço de quem passasse na minha frente.
Por isso, o grande mérito de boa parte do filme é o jogo intelectual entre os personagens, mais do que a ameaça física em si. O que está em risco não é apenas a integridade e a saúde de alguém, mas sim o destino de toda a raça humana (será mesmo?), onde a cada segundo, o relógio para o juízo final se aproxima mais da meia-noite.
Assim, M. Night Shyamalan extrai o melhor de seus atores de um modo que não víamos desde que Fragmentado apresentou as várias versões alternativas de um James McAvoy no auge da sensualidade. Em Batem à Porta, o núcleo principal do elenco está brilhante, e chega a ser difícil pontuar destaques em uma obra com tantos artistas dando seu sangue pelo papel.
Dave Bautista certamente está no maior papel de sua carreira. Como Leonard, ele precisa impor uma ameaça mais física, mas suas palavras e ações contradizem o arquétipo do brutamonte violento. Nikki Amuka-Bird e Abby Quinn, que interpretam respectivamente Sabrina e Adriane, estão ali quase que na glória de deus e na graça do rivotril, cientes de que são agentes de uma força dolorosa e vingativa.
E se Rupert Grint consegue passar o traço mais irritado e agressivo de Redmond, Kristen Cui surpreende com a doçura e a curiosidade nos olhos da pequena Wen. Mas quem realmente dá o show são Ben Aldridge e Jonathan Groff. Muito além de uma caricatura, os dois exibem uma afinidade real e palpável, e um desejo de proteger tudo o que têm a qualquer custo.
É difícil ter esperança no fim do mundo
Passada uma hora de pura tensão enquadrada pelas lentes propositalmente esquisitas de Shyamalan, que em vez de procurar pelo “belo” extraem a maior dose de emoção do rosto de seus personagens, o filme toma uma virada brusca. Quem já espera ver os famosos plot twists do cineasta vai quebrar um pouco a cara, já que aqui, o roteiro escrito por ele ao lado de Steve Desmond e Michael Sherman opta por uma narrativa bem mais plana e direta ao ponto.
Porém, se há algo que me incomoda em Batem à Porta, certamente não é a ausência de um plot twist premeditado ou um segredo escondido na trama, mas sim a completa falta de ambiguidade, que faria com que as escolhas dos personagens tivessem um peso ainda maior.
Pouco a pouco, Shyamalan decide revelar todos os seus segredos sem dar margem para a interpretação do público. E é dessa forma que, mesmo antes da primeira meia hora de filme, já sabemos que o apocalipse é real. Até mesmo uma decisão inteligente do livro, que envolve a identidade do personagem de Rupert Grint, é deixada o mais evidente o possível no longa-metragem, eximindo o espectador da difícil tarefa de tirar suas próprias conclusões.
Mas calma lá: livro é livro e filme é filme, e não estou dizendo que uma obra é melhor que a outra por ter seguido em tal direção ou que a adaptação deveria ser fiel ao extremo para funcionar. Toda a composição do roteiro faz jus à obra original, sem dúvidas, mas fica evidente desde o começo que esse é um filme de M. Night Shyamalan e privá-lo de tal liberdade artística seria repetir os erros que levaram a O Último Mestre do Ar e Depois da Terra.
Na verdade, mesmo com a falta de ambiguidade, o filme é capaz de quebrar aquela barreira chata da “boa adaptação” x “má adaptação” e leva a questionamentos próprios. A completa mudança do terceiro ato é um atestado disso, que nos leva rumo a decisões ainda mais difíceis do que as retratadas no livro de Paul Tremblay – ainda que exista uma força motriz por trás dessas decisões, tudo residindo no campo da fé e da espiritualidade.
Aliás, é até curioso notar como Shyamalan, um diretor que nunca se considerou uma “pessoa muito religiosa”, traz algumas reflexões sobre a religiosidade, a fé e a própria Bíblia de uma maneira que diversos artistas cristãos nunca foram capazes de fazer. Aqui, entre metáforas e alegorias sobre os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, a história de Abraão e Isaque e até Jesus Cristo, ele busca aprofundar o papel humano na relação com o divino.
E, sendo incapaz de abraçar o niilismo e a devastação em uma era onde essa parece ser a norma, Shyamalan nos dá de mão beijada mais uma injeção de otimismo e esperança – mas não sem as consequências amargas e doloridas. O que fica após o filme, depois que os créditos sobem, é o que concentra toda a glória e todo o horror da narrativa.
De muitas formas, o saldo total acaba sendo um pouco como Tempo, de 2021. Se você gosta do filme até aquela reviravolta e depois não compra o “epílogo” proposto por Shyamalan, talvez se frustre um pouco com o final de Batem à Porta. Mas se você também encontra refúgio nessa visão mais otimista – que nos leva por caminhos um tanto quanto agridoces – aqui você encontrará uma vastidão de dilemas e conflitos.
No fim, mesmo após alguns dias de reflexão e análise, ainda não sei totalmente como me sentir quanto à narrativa de Batem à Porta. Se mergulharmos em uma discussão profunda a respeito da representação queer no cinema e nas artes, podemos nos deparar com a armadilha do “bom gay“, que só existe quando obedece e se conforma com todas as regras de um mundo heteronormativo.
Porém, há mais do que isso – e por mais que ainda me encontre refletindo sobre todas as possibilidades, noto como a experiência na sala de cinema não me deixou até agora. Continuo preso nas decisões difíceis dos personagens, ainda penso no que eles poderiam fazer de diferente para que tudo aquilo fosse evitado de uma forma “fácil”. E não dá, é absolutamente impossível.
Por isso, mesmo com sentimentos conflitantes, acredito que Batem à Porta reflete exatamente o que M. Night Shyamalan tanto buscava no projeto: um dilema que vai além do moral e testa os limites da nossa fé no divino e em uma humanidade que ainda é passível da salvação. No lugar dos personagens, teria tomado decisões absurdamente diferentes. Mas o filme não é sobre mim, é sobre eles.
Batem à Porta resgata tudo que há de melhor na carreira de M. Night Shyamalan e que nunca faltou em seus filmes. Aqui, fé e mortalidade se entrelaçam para nos provocar dúvida e questionamento – e ainda que o diretor pudesse ter aproveitado um pouco mais dessas incertezas, ainda é uma obra incomparavelmente profunda na forma como nos apresenta o fim do mundo e nos dá as ferramentas para impedi-lo – ou não.
Batem à Porta está em cartaz nos cinemas.
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