Crítica – Barbie: Filme de Greta Gerwig é um conto vibrante e feminista sobre o amadurecimento feminino
Crítica – Barbie: Filme de Greta Gerwig é um conto vibrante e feminista sobre o amadurecimento feminino
Margot Robbie encanta na pele da boneca mais famosa do mundo, enquanto Greta Gerwig emociona com uma história divertida e reflexiva sobre a vivência das mulheres
Ninguém nasce mulher, torna-se. Entre ressignificações e interpretações diversas desde que apareceu em O Segundo Sexo, a frase mais popular de Simone de Beauvoir é um clássico do pensamento feminista que ajudou a impulsionar diversas discussões sobre o que é ser mulher em um mundo comandado pelo patriarcado. Beauvoir foi apenas uma entre diversas teóricas, escritoras e ativistas, como Angela Davis e Audre Lorde, cujas ideias serviram como propulsoras para diversas vertentes feministas, cada uma buscando um objetivo em comum: a libertação de todas as mulheres.
É nesse contexto da luta feminista por direitos políticos, sociais, culturais e outros que Greta Gerwig posiciona Barbie, seu novo filme como diretora. Estrelado por Margot Robbie e Ryan Gosling, o live-action da boneca mais famosa do mundo é um conto mágico, vibrante e imaginativo sobre a experiência do amadurecimento feminino, abordando questões existencialistas e as construções sociais que acompanham a vivência de diferentes mulheres desde o primeiro suspiro do nascimento.
Ficha técnica
Título: Barbie
Direção: Greta Gerwig
Roteiro: Greta Gerwig e Noah Baumbach
Data de lançamento: 20 de julho de 2023
País de origem: Estados Unidos da América e Reino Unido
Duração: 1h 54min
Sinopse: Depois de ser expulsa da Barbielândia por ser uma boneca de aparência menos do que perfeita, Barbie parte para o mundo humano em busca da verdadeira felicidade.
Bem-vindos à Barbielândia
No fantástico mundo da Barbielândia, todo dia é perfeito. Cada Barbie, seja ela uma médica, uma veterinária, uma sereia ou até mesmo a presidente, encara um novo amanhecer com uma chuva de otimismo. Afinal, quem não estaria feliz vivendo na Casa dos Sonhos, onde a água do chuveiro está sempre quentinha e você sempre flutua majestosamente para dentro de seu conversível rosa?
É essa rotina que Barbie (Margot Robbie) quer viver pelo resto de sua vida. No entanto, as coisas começam a ficar esquisitas quando questionamentos existenciais – e até dúvidas sobre a morte – surgem na cabeça da boneca. Barbie, então, parte em uma jornada desafiadora pelo Mundo Real para tentar (re)descobrir a verdadeira fonte da felicidade. Mas o que ela encontra no caminho pode ser ainda mais valioso do que conseguir andar na ponta dos pés, basta que a boneca se permita querer.
Se em 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) foi um monolito que proporcionou o avanço da ciência e da tecnologia, em Barbie foi a vez da boneca mais popular do mundo fazer história. Criado em 1959 por Ruth Handler, o brinquedo da Mattel conquistou um rápido apelo comercial, que logo acabou se transformando em um símbolo para reforçar estereótipos femininos, já que sua versão mais conhecida – a boneca loira, magra e perfeita – ajudou a perpetuar discursos pré-concebidos e idealistas sobre a representação da mulher na sociedade.
Foi uma trajetória cheia de altos e baixos, com controvérsias e outras problemáticas a mais que ganharam novos olhares e perspectivas com a passagem do tempo e a gradativa emancipação das mulheres, que ainda segue em seu curso. E é por isso que o filme de Greta Gerwig se torna ainda mais especial: ao se apropriar da imagem estereotipada da Barbie, a diretora reverte tudo aquilo que o nosso imaginário associa à boneca, construindo uma narrativa mágica e, de certa maneira, melancólica sobre o que é ser mulher no século XXI, enquanto esbanja comentários ácidos sobre masculinidade tóxica e críticas ao sujo sistema patriarcal.
Como alguém que sempre acreditou no potencial de Greta Gerwig no comando de Barbie, ver tudo aquilo que a diretora conseguiu construir ao lado de Noah Baumbach, seu parceiro e colaborador de longa data, é ainda mais revigorante. Costurando referências a O Mágico de Oz (1939), com toda a jornada de Barbie por um mundo desconhecido e fantástico, e aos trabalhos do diretor Jacques Demy, o live-action estrelado por Margot Robbie bebe da mesma fonte de filmes como Duas Garotas Românticas (1967) para explorar o universo da Barbie com uma explosão de cores que leva uma vivacidade onírica para cada elemento da produção, seja na cenografia ou no figurino.
Tudo tem um propósito, e Greta Gerwig conduz a obra com uma esperteza hilária repleta de alusões a movimentos feministas, que seguem proporcionando a mulheres ideias libertadoras até os dias de hoje. Afinal, apesar da imagem estereotipada da Barbie continuar existindo, a boneca já passou por diversas reformulações ao longo de sua história que, querendo ou não, transmitem a noção de que mulheres podem ser aquilo que elas quiserem ser. Seja a Barbie Presidente ou a Barbie Comum, cada uma delas é especial e suficiente à sua própria maneira, e o filme de Greta Gerwig deixa isso evidente a todo momento.
Claro que não podemos deixar de lado recortes sociais, econômicos e raciais diante da vivência feminina no mundo, mas a questão é que a imagem da Barbie pode ser ressignificada de diversas maneiras, e é isso que o live-action consegue fazer. Ao explorar temas recorrentes na carreira da diretora, como o amadurecimento e a autoaceitação, questões que conduzem a jornada da personagem de Saoirse Ronan em Lady Bird: A Hora de Voar (2918), por exemplo, Gerwig mergulha na mitologia ao redor da boneca para mostrar o ponto de virada na vida de mulheres, especialmente no início da juventude, quando tomamos consciência de nossos corpos em relação ao olhar do outro. Um olhar que diminui, degrada, humilha e objetifica, em um mundo que nos coloca em caixas sufocantes e nos inferioriza a cada segundo.
É essa dura realidade que a Barbie de Margot Robbie enfrenta quando descobre que ser uma mulher no Mundo Real não se resume apenas em otimismos, conversíveis e noites de festa com as outras Barbies. É uma percepção cruel que, mais cedo ou mais tarde, atinge a experiência de todas as mulheres durante a época do amadurecimento, ou quando elas partem para desbravar o mundo fora das paredes de seus quartos. Mas nem tudo precisa ser tão trágico, melancólico e difícil: ainda é possível encontrar pontos de luz nessa estrada de tijolos rosa, e a Barbie bem sabe disso.
Ela é tudo, ele é só o Ken
Barbie é um conjunto de referências e críticas feministas que, sem a presença de uma equipe de peso, não alcançaria o mesmo efeito. Começando por Margot Robbie, a própria personificação da imagem mais conhecida da Barbie, a atriz entrega um excelente trabalho ao condensar as inseguranças e descobertas da boneca, usando todos os artifícios desse universo a seu favor. Com o apoio de um talentoso time de atrizes que dão vida a diferentes tipos de Barbies, como Issa Rae e Kate McKinnon, Robbie cativa com seu carisma contagiante e uma força em cena que ecoa o excelente trabalho que ela fez em Babilônia (2022).
Ryan Gosling, por sua vez, retoma sua veia cômica da melhor maneira possível. O papel caiu como uma luva no colo de Gosling, que age com uma naturalidade tão admirável na pele do boneco Ken, o tal do namorado da Barbie, que é praticamente impossível não ser cativado por sua presença em cena, algo que resgata seu talento no gênero, como ficou nítido em filmes como Os Caras Legais (2016) e Amor a Toda Prova (2011). Quando Ryan se junta com Robbie, então, não tem como desviar o olhar dos dois.
Com um elenco tão diverso e talentoso (aqui vale uma menção honrosa para o trabalho da atriz America Ferrera no filme), o longa leva vivacidade para um mundo plastificado e cuidadosamente perfeito, posicionando suas várias versões de Barbies e Kens em jornadas particulares que incrementam ainda mais esse universo mágico.
Mas o filme vai muito além das inúmeras referências, detalhes e aspectos que tratam do histórico da boneca, já que é uma produção extremamente autoconsciente o tempo todo. Greta soube brincar com diversos aspectos do sistema, tanto o social quanto o cinematográfico, para construir diálogos e comentários irônicos sobre os temas explorados na produção, o que deixa o projeto ainda mais interessante hoje em dia.
Barbie é sarcástico e ácido na medida certa, com uma mistura entre otimismo e melancolia que transforma a história da boneca mais famosa do mundo em uma jornada de autodescoberta e aceitação, como se Lady Bird tivesse caído de paraquedas na Barbielândia. É sobre tentar a todo custo descobrir quem você é diante de uma sociedade que tenta te silenciar, apagar e destruir. Mas também é olhar para uma ideia é fazer o possível e o impossível para conseguir levantar sua voz no meio da multidão.
Assim, Greta Gerwig mostra, mais uma vez, o porquê ela é uma das diretoras mais talentosas e especiais de sua geração, não somente por saber como conduzir uma obra cinematográfica, mas por ter a sensibilidade para tal. Para quem sempre acreditou no trabalho da diretora, a excelente execução de Barbie não deve ser uma grande surpresa, mas isso não apaga a sensação inspiradora de ver o que uma mulher pode fazer quando, como Virginia Woolf disse um dia, tem um teto todo seu e a coragem para ser livre.
Barbie estreia no dia 20 de julho de 2023 nos cinemas brasileiros.
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