A Pequena Sereia: Como uma Ariel negra melhora a história clássica da princesa da Disney
A Pequena Sereia: Como uma Ariel negra melhora a história clássica da princesa da Disney
Escalação de Halle Bailey acrescenta camadas à história
Era uma vez, no ano de 2019, uma talentosa cantora que havia sido convidada para participar do mágico mundo da Disney. Halle Bailey, protegida da própria Beyoncé, foi escalada para viver a Princesa Ariel na versão live-action de A Pequena Sereia — um conto de fadas virando realidade. A bela donzela só não esperava que seria perseguida por um mal mais perverso que uma bruxa do mar: o racismo da internet.
Quando o primeiro vislumbre de sua participação no novo filme foi divulgado, durante o evento D23, rapidamente se tornou o vídeo mais rejeitado da história do Youtube, ao mesmo tempo que tocou o coração de meninas ao redor do mundo. A raiva do preconceito cegava para uma clara verdade, perceptível aos olhares inocentes das crianças: a mera presença de uma Ariel negra ampliava completamente a abrangência da história. Além de representar uma legião de meninas pretas, que sonhariam em ser uma princesa como aquela do filme, a chegada de Halle Bailey trouxe uma nova interpretação muito mais rica para A Pequena Sereia.
Pressão submarina
Como a animação de 1989, o longa conta a história de uma sereia, filha do poderoso Rei dos Mares, que luta contra a opressão patriarcal em busca de um espaço em que possa ser valorizada — a superfície. Porém, a nova versão vai além e atualiza muitos pontos rasos do roteiro do desenho clássico, trazendo mais profundidade a este conto submarino, principalmente ao esclarecer as motivações da heroína. A Pequena Sereia de Halle Bailey não está fazendo tudo para conseguir o amor do príncipe, mas por seu fascínio por encontrar o seu lugar no mundo.
Desde o início, esta é uma história sobre uma garota querendo encontrar um espaço onde a sua voz possa ser ouvida, em que seu futuro não seja determinado pelas decisões de mais ninguém além dela mesma. E a produção de Rob Marshall faz de tudo para reforçar essa narrativa explorando melhor o conflito entre a princesa e seu pai super protetor, o Rei Tritão vivido por Javier Bardem.
Ao invés de uma enorme mudança, os produtores preferiram acrescentar uma série de detalhes, como pequenas peças de um quebra-cabeças que juntas formam uma figura maior. Nesta versão, por exemplo, o conflito inicial entre pai e filha deixa de ser motivado pelo esquecimento de um número musical bobo para a ausência da princesa em um reencontro de irmãs que só acontece uma vez por ano — o que tem desdobramentos bastante interessantes para a construção da natureza desse conflito.
Nesta versão, as irmãs de Ariel têm mais personalidade, apesar do pouco tempo de tela, e um papel a cumprir no governo de Tritão. De acordo com o livro The Little Mermaid: Guide to Merfolk (“A Pequena Sereia: Guia dos Sereanos”, em tradução livre), lançado pouco antes do filme, cada princesa é responsável por guardar uma região dos sete mares. Enquanto suas irmãs têm a liberdade de explorar outros cantos do mundo, a pequena Ariel fica com o grande peso de suceder o próprio pai como regente do Mar do Caribe.
Sem direito de escolher, Ariel sofre com as expectativas excessivas de seu pai, que a cria para ser absolutamente perfeita em tudo que se propõe a fazer, sem direito a errar, sempre sob seu olhar vigilante. Não surpreende que a jovem rapidamente desenvolva uma obsessão com o mundo da superfície, que representa um respiro de liberdade, um mundo alternativo onde ela poderia ser algo diferente. Esse sentimento de ser sufocada com expectativas é algo muito comum entre pessoas negras, especialmente na relação com os pais, e ficou conhecido popularmente como “excelência negra”, ou “black excellence” no inglês.
A garota que tem quase tudo
Mesmo que muitos não consigam expressar este sentimento em palavras, a pressão pela excelência negra é parte integral da experiência da população preta no Brasil e no mundo ocidental. Desde criança, somos ensinados por nossos pais a se esforçar ao máximo para ser sempre melhor que os demais, para receber o mínimo de respeito da sociedade. Aceitando o fato de jamais receber o devido reconhecimento por nosso trabalho, apenas uma fração dele. De certo modo, em um mundo racista, pessoas negras são cobradas a se sobressair para reconquistar sua humanidade roubada — como se precisassem lutar com garra para serem ouvidas.
“Você tem que ser duas vezes melhor que eles para conseguir metade do que eles têm,” aconselha o pai de Olivia Pope, protagonista de Scandal, em um episódio marcante da série. O sentimento é ecoado pelo polêmico Chris Rock, em um stand-up famoso. O comediante relata, com muito humor, como conquistou o direito de morar na mesma vizinhança que dentistas e médicos brancos comuns. Para isso, precisou apenas se tornar um dos mais renomados e mais bem pagos humoristas pretos de todo mundo. E pode ser sentido também em A Pequena Sereia quando, na voz de Halle Bailey, ouvimos a canção Parte do Seu Mundo (Part of Your World no original).
A música fala sobre “uma garota que tem quase tudo” quando o assunto são posses materiais. No sentido literal, Ariel fala de todos os tesouros da superfície que acumulou. Contudo, no subtexto, podemos entender que é alguém que enriqueceu ou conquistou muito e que as pessoas esperam que não tenha mais problemas. Mas Ariel quer mais. Tudo que ela quer é poder fazer coisas normais que toda a pressão por excelência lhe roubaram: estar entre as pessoas, andar pelas ruas, pular, dançar… Viver sem preocupações e sem medo de ser repreendida por ser apenas ela mesma — sem toda a pressão de sua família e sociedade.
Em um artigo para a Forbes, a Doutora Janice G. Assare, formada em psicologia organizacional pela Hofstra University, alerta que a ideia de que ser excepcional vai proteger pessoas pretas de sofrerem discriminação e racismo é uma falácia, uma armadilha. O que geralmente acontece é o contrário — pessoas pretas são penalizadas por sua excelência.
Em suas palavras, a doutora Assare define o seguinte: “viver em um mundo construído para te manter confinado é excelência negra”. Todo sentimento de estar presa no mundo submarino que a Ariel de Halle Bailey expressa ao longo de todo o primeiro ato tem um peso maior quando consideramos a cobrança por excelência negra que sofreu desde o berço. A jovem é roubada até mesmo do direito de expressar essa aflição construindo um altar para seus tesouros da superfície, seu tão almejado sonho. Quando seu pai descobre, destrói tudo em um segundo.
Essa é uma história sobre esta constante angústia. Defender o amor pelo príncipe deixa de ser o principal objetivo de Ariel. Encontrar um novo fôlego na superfície se torna mais urgente, algo aludido na cena de abertura do filme: “Uma sereia não tem lágrimas, e portanto ela sofre muito mais”. Essa é uma citação poderosa, como aquelas comentadas na música Aquela Fé, do rapper Don L. Quando ele diz que “uma frase muda o fim do filme”, está se referindo à potente mudança de perspectiva que a fala certa pode causar.
Presente no conto original de 1837, de Hans Christian Andersen, a frase resume a narrativa de A Pequena Sereia como a história de alguém que não se sente no direito de expressar a sua dor. Na época, o autor estava se referindo a si mesmo, que ao que tudo indica não podia sofrer publicamente o seu amor por outro homem. Mas no contexto do live-action protagonizado por Halle Bailey, a citação ganha uma nova perspectiva: a dor silenciosa das pessoas pretas que são pressionadas a nunca demonstrar fraqueza.
A doutora Assare, na mesma reportagem, alerta que mentalidade de excelência negra é um reflexo da ideia de excepcionalismo negro. Para a sociedade, as características positivas são vistas como uma exceção na comunidade negra, como se os pretos bonzinhos e bem-sucedidos não merecessem o racismo que acontece com eles. Sendo que nenhuma pessoa preta merece sofrer os horrores do racismo, mesmo que mostrem o seu lado mais vulnerável. “O excepcionalismo preto encoraja pessoas pretas a sacrificar a sua saúde, bem-estar mental e prosperidade em prol da grandeza,” explica. Colocar a sua vida em risco em prol da promessa vazia de realizar seus sonhos, o que Ariel faz ao assinar o contrato de Úrsula, se encaixa bem nessa armadilha descrita pela doutora.
No live-action, para convencer a princesa a abandonar sua família e amigos do oceano, a bruxa do mar não tenta explicar como homens gostam de mulheres submissas. Amor não é a motivação principal da sereia. A vilã tem a sacada de mirar em seu ponto mais fraco, na relação da princesa com seu pai, o nó que amarra todo esse mar de angústia em seu coração. E sufocada por tudo que precisou sacrificar para ser a garota perfeita, Ariel aceita sacrificar aquilo que tem de mais precioso, sua voz, em nome da possibilidade de se sentir aceita.
Existem muitas interpretações incríveis que podem ser encontradas na versão animada de 1989, dos produtores Howard Ashman e John Musker. Porém nada se compara as novas questões que a simples introdução de uma “Pequena Sereia preta” trazem ao filme.
De certo modo, essa história agora consegue refletir com profundidade as dores que a própria atriz Halle Bailey precisou encarar ao longo de sua vida — e mesmo agora com os constantes ataques que recebeu após conquistar a posição de protagonista de um filme da Disney. E também de todas as garotas e garotos negros que sofrem calado as dores do racismo sem entender exatamente a situação. Aqueles olhares emocionados, que aparecem em vídeos como de Títi Gagliasso e sua mãe Giovanna Ewbank, enxergam isso. Não só um reconhecimento, mas a percepção da possibilidade de um futuro diferente. Um futuro em que é possível superar isso, como a Princesa Ariel no final do filme. Um futuro em que garotas e garotos pretos também possam viver “felizes para sempre”.
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