Por que muitos animes têm medo de assumir seu lado LGBTQ+?
Por que muitos animes têm medo de assumir seu lado LGBTQ+?
Como a questão da representatividade LGBTQIA+ vem sendo trabalhada nos animes e mangás?
América Chavez, heroína da Marvel, foi criada por um casal de mulheres. Ellie, protagonista de The Last of Us, possui um relacionamento com outra garota no segundo jogo da franquia. O capitão Raimond Holt, de Brooklyn 99 é um homem gay e um dos personagens mais queridos da série.
Ainda que a passos de tartaruga, a representatividade LGBTQIA+ começa a ser introduzida na indústria do entretenimento ocidental com um pouco mais de força e diversidade. Mas, e quanto a oriental? Como andam essas questões para o lado da Terra do Sol Nascente? Muitos podem pensar que, devido a determinados fatores, eles estejam muito à frente de nós nesse quesito, mas a coisa pode não ser exatamente desse jeito se pararmos para analisar.
- Por que a representatividade é importante?
- Os erros de representatividade LGBTQIA+ em animes
- Os pequenos acertos
- Driblando os preconceitos de uma sociedade ainda mais rígida
- Por que Boys Love e Girls Love não resolveriam o problema?
- Mas, afinal, a representatividade nos animes e mangás existe?
Por que a representatividade é importante?
Mas, antes de qualquer coisa, é preciso entender o motivo dessa discussão ser relevante. Talvez seja mesmo complicado para aqueles que não fazem parte de um grupo considerado como minoria entender a importância da representatividade no consumo de entretenimento. Para quem cresceu se vendo em protagonistas, coadjuvantes e personagens com qualquer tipo de relevância em histórias a discussão, de fato, pode parecer apenas mais “mimimi” do que busca por diretos. Porém, a representatividade é algo essencial na formação do indivíduo em diversos meios e, no consumo de cultura pop isso não tem como ser diferente.
Aristóteles, em sua Poética, define o processo de catarse proporcionado pela arte como algo capaz de “libertar, limpar e purificar um indivíduo”. Segundo ele, esse estado de purificação é capaz de ajudar na superação de medos, traumas, opressão e demais perturbações psíquicas.
Para isso, o espectador precisa “entrar na obra” por meio dos personagens apresentados e, assim, sofrer, se alegrar, superar ou até mesmo lutar através dos punhos deles. Mas, como um processo tão complexo quanto esse pode ser eficaz se o indivíduo não consegue se ver nos personagens? Não identificar situações que estejam em conflito com sua própria realidade para se sentir “livre” ou mesmo forte o suficiente para superar os próprios desafios? Dificilmente.
Não é impossível, porém é muito mais efetivo quando os personagens e os espectadores estão próximos de vários modos. Porém, o leitor pode se perguntar onde estaria o problema uma vez que as animações asiáticas já vem apresentando personagens tidos por alguns como “inclusivos” desde as décadas de 80 e 90 por exemplo. De fato, esses personagens estão em diversas obras famosas como Sailor Moon e Cavaleiros do Zodíaco. Mas o problema não se resolve apenas colocando um personagem na trama e pronto.
Os erros de representatividade LGBTQIA+ em animes
O modo como são introduzidos e desenvolvidos também afeta diversas questões que podem atrapalhar mais do que ajudar no processo de catarse. Analisando as funções de alguns desses personagens em tramas famosas, podemos ver como a maioria é representada como puro alívio cômico ou, então, com dúvidas sobre si mesmos que acabam os levando a aderir a heteronormatividade para acabar com seus sofrimentos.
Um exemplo desse último problema citado pode ser visto em Fruits Basket, cujo anime ganhou um remake em 2019. No mangá, passamos boa parte do tempo acreditando que o personagem Akito Souma é um homem e ele próprio se trata com pronomes masculinos. Mas, conforme a trama avança, percebemos que Akito, na verdade, nasceu como uma garota e foi criado como garoto não exatamente por vontade própria, no intuito de assumir a liderança do clã Souma. Sua “libertação” quando, ao fim, vestes roupas mais femininas e assume um relacionamento com Shigure, passando a viver uma vida “normal” ao seu lado quando a maldição do clã é quebrada.
Essa reviravolta pode servir como um soco no estômago de muitos leitores trans que, por ventura, poderiam estar buscando um apoio na história de Akito. A redenção da personagem ser conduzida dessa forma gera um sentimento amargo de que ser uma pessoa trans é algo errado, uma maldição que precisa ser quebrada de algum modo.
Os pequenos acertos
Mas, em meio a um cesto cheio de erros, podemos colher alguns acertos também. Ainda visando as obras mais antigas, podemos apontar a personagem Haruka Tenou, do clássico Sailor Moon, como um acerto em representatividade lésbica. Ainda que caia em alguns estereótipos da época, a personagem é forte, tem sua relevância, não se mostra confusa com relação a si mesma e tem uma ligação afetiva com Michiro Kaiou, uma de suas companheiras sailors.
Questionada pela protagonista Usagi sobre seu gênero em determinado momento do mangá, Haruka responde a menina com uma pergunta sobre a relevância disso, se realmente importava de alguma forma. Essa, talvez, tenha sido a cena mais marcante de toda a obra para pessoas queer que a tenham visto.
Mais recentemente, no anime da Netflix Komi-san Can’t Comunicate de 2021, também somos apresentados a mais um desses acertos. Lá, podemos ver Najimi Osana, uma pessoa trans não-binária que faz uso de pronomes neutros. Elu é um dos estudantes mais populares da escola, sendo uma pessoa próxima de todos. Sua apresentação se dá de modo tão natural e divertida que sua identidade de gênero é apenas mais um detalhe sobre sua personalidade e não todo o foco de suas aparições.
Driblando os preconceitos de uma sociedade ainda mais rígida
Vale ressaltar também que a sociedade japonesa é bem mais complicada com relação a certas coisas que a nossa. Apesar de demonstrações de afeto entre pessoas do mesmo sexo não serem tão “levadas para o outro lado” como aqui, quando o assunto é mostrar casais em relações homoafetivas em rede nacional a coisa muda bastante de figura.
Este é o principal motivo para muitos roteiristas optarem por caracterizar um personagem como queer de forma bem escancarada — em seus jeitos, falas e modo se se expressar — sem nunca abordar de forma direta sua exata sexualidade. Para evitar censura, a regra é confiar nas habilidades de interpretação do público para coisas mais óbvias.
No entanto, há algumas obras que conseguem “driblar” essas questões mais rígidas e entregam ao público o desenvolvimento de uma relação fora dos padrões mesmo quando falamos de anime que não foram desenvolvidos para atender um nicho mais específico, como no gênero Boys Love.
Esse foi o caso do anime esportivo Yuri!!! On Ice, de 2016, em que o protagonista se envolve romanticamente com seu treinador e ídolo, Victor Nikiforov. O anime é carregado de simbologias bem diretas, desde beijos fora de tela a uma troca de alianças. O casal está sempre mostrando o quão firmes estão juntos, ainda que nada seja tratado explicitamente no decorrer da trama que foca na ascensão da carreira de patinador de Yuri Katsuki.
Porém, mais uma vez o leitor pode se perguntar: existem animes especificamente voltados para o público LGBTQIA+, certo? Então isso resolve o problema da representatividade? E a resposta é sim e não. Por diversos motivos.
Por que Boys Love e Girls Love não resolveriam o problema?
Como mencionado anteriormente, relações de amizade intensas e cheias de afeto entre pessoas do mesmo sexo – incluindo homens cis – não são tão incomuns em países do leste asiático. Por essa razão, alguns animes focados em cenas de bromance se tornaram populares entre o público queer em busca de representatividade. Migalhas deixadas, por exemplo, pela relação de Sasuke e Naruto na franquia que nomeia o protagonista.
Mas essas situações, que existem às pencas por shounens dos mais diversos, nunca foram suficientes para sanar o problema da falta de representatividade. Afinal, difícil se sentir refletido nas experiências de pessoas cis hetero que provavelmente vão usar situações típicas de grupos LGBTQ+ como piada.
Dessa forma, muitos que procuravam uma abordagem mais sensível de relacionamentos homoafetivos partiam para títulos Boys Love e Girls Love, gêneros que são assumidamente focados em relações entre pessoas do mesmo gênero.
Só que essa procura pode se mostrar bastante frustrante uma vez que grande parte dos títulos desses gêneros apresentam casais extremamente problemáticos com relacionamentos tóxicos romantizados. É esse o caso que vemos em títulos como Junjou Romantica e Citrus, em que os protagonistas namoram pessoas controladoras, grosseiras e de difícil convivência, tendo suas vontades e opiniões constantemente ignoradas por seus parceiros.
Existem títulos, no entanto, que conseguem acertar ao retratar relacionamentos mais saudáveis, como Koimonogatari e Doushitemo Furetakunai, mas eles estão no meio de tantos outros questionáveis que é necessário garimpar bastante para encontrá-los.
Além do mais, a ideia da criação de um gênero à parte para contar histórias de cunho homoafetivo soa muito mais segregadora do que inclusiva uma vez que as histórias poderiam ser todas abarcadas por suas tramas e não pela orientação sexual de seus personagens. Um shounen com ação poderia muito bem ter um personagem LGBTQIA+ como protagonista sem necessariamente ter de ser um GL ou um BL, coisa que raramente é vista por aí.
Mas, afinal, a representatividade nos animes e mangás existe?
Levando em consideração todos os fatores expostos neste artigo, podemos concluir que sim. Ainda que o trabalho venha sendo um trabalho de formiguinha e, na maioria das vezes, a forma como esses personagens são apresentados nas tramas passem uma ideia totalmente errada, há representatividade LGBTQIA+ nos quadrinhos e animações japonesas.
É a representatividade perfeita para que as pessoas possam passar por suas catarses tranquilamente? Não. Há problemas, há complicações e há alguns poucos acertos entre esses muitos erros. Mas a evolução do modo em que a sociedade enxerga minorias nunca foi perfeita na história. É importante entender esses problemas para saber o que é possível tirar destas histórias.
No fim, da mesma forma que as minorias estão conquistando seu espaço aqui no ocidente, ainda há um longo caminho a ser percorrido no leste asiático como um todo no que diz respeito a indústria do entretenimento. Estamos começando a sair do lugar e esperamos sempre que o caminho siga para a frente e não acabe retrocedendo.
Mas e você? Conhece mais alguma obra que tenha tratado do assunto com sensibilidade e que não foi citada aqui? Tem alguma experiência envolvendo representatividade em animes e mangás que queira compartilhar conosco? Divida com a gente nos comentários!
Aproveite e confira tanbém: