Opinião: Voz tem cor? Entenda o problema de escalar dubladores brancos para personagens negros
Opinião: Voz tem cor? Entenda o problema de escalar dubladores brancos para personagens negros
Depois das recentes críticas ao redor do elenco da dublagem de Red, o assunto voltou à tona
Para Alfred Gell, a arte carrega significado. Através de suas linhas, traços e intenções, a forma como ela atinge seu público é única. Apontados por ele como “artefatos”, a arte é capaz de “indexar suas ‘origens’ em um ato de fabricação” (Arte e Agência, p. 55). E, quando eu vi um homem branco sob a máscara do Pantera Negra, talvez essas fossem as palavras que eu tentei procurar para verbalizar o que estava sentindo.
- Uma nota pessoal
- Entre vermelho, amarelo, branco e negro
- Um whitewashing da animação?
- Ressignificar e representar
- Dar a César o que é de César
- Vozes silenciadas
Uma nota pessoal
Foi na noite de estreia de Vingadores: Guerra Infinita. Entre cosplayers e fãs curiosos sobre aquela primeira parte do fim da saga de Thanos, vi um homem vestido com o uniforme de Pantera Negra. De máscara e tirando foto com algumas crianças, algumas negras, me perguntei quem estaria por baixo daquele uniforme.
Ignorei a questão, segui para a minha sessão, sem saber que, horas depois, veria aquela mesma pessoa, ainda com a roupa do herói, mas sem máscara. Era um rapaz branco em seus vinte e poucos anos. Não havia surpresa para mim, nem decepção, apenas desconforto. Como um discurso poderia ser esvaziado desta forma? Dá para tirar a agência da arte? Será que o discurso atribuído ao Pantera Negra é dele de fato? Afinal, ele foi criado por dois homens brancos. Ele foi dublado no Brasil por um homem branco.
Entre vermelho, amarelo, branco e negro
Faz quatro anos desse ocorrido e das polêmicas ao redor da dublagem nacional do filme Pantera Negra, com seu elenco majoritariamente branco, mas avançamos pouco nos debates sobre o assunto.
Enquanto ainda enfrentamos um racismo velado com a dublagem de produções como Red: Crescer é uma Fera, a mais recente animação da Disney-Pixar, a controvérsia ao redor de voz e cor parece esquecer não apenas o rosto de seus personagens, mas também o que representam. Em outras palavras, suas vozes.
VERSÃO ORIGINAL 🥰 X VERSÃO BRASILEIRA 😞
O meu ❤️ (e o de muita gente) se encheu de alegria quando soube da nova animação da Disney, “Red, Crescer é uma fera”.
Pela 1a vez, a protagonista de uma animação da Disney/Pixar é uma menina asiática (chinesa-canadense p/ ser mais + pic.twitter.com/K22AfhC2iZ
— A Y A (@ayazita) March 17, 2022
Isso porque ainda vivemos sob a falácia de que o melhor ator sempre ganha o papel. O que não é levado em conta é que tal explicação se apoia na ilusão de uma meritocracia — sociedade ou organização que prioriza aqueles que têm mais méritos. E, em uma sociedade onde ainda é necessário implementar políticas de diversidade para empregar funcionários negros, tal critério não existe em sua plenitude.
Esse é um problema que a indústria cinematográfica, em um geral, enfrenta diariamente. Enquanto produções americanas grandes, como Red: Crescer é uma Fera e Soul, tentam escalar uma equipe que combine com o texto, voz e vivência do personagem, algumas adaptações parecem pecar no simples fato de analisar a importância de, não apenas a voz, mas o rosto do ator combinar com a situação.
Um exemplo claro disso é que a Funimation americana ainda sofre com a dublagem de animes para o inglês. Não é sempre, mas personagens negros podem aparecer nas tramas japonesas. Porém, são raras as vezes em que dubladores negros são escalados para essas adaptações. Apesar de pregar sempre a ideia de que “escalamos a pessoa certa para o papel”, na prática, a empresa opta por priorizar dubladores com quem já trabalhou no passado que, em sua maioria, são brancos (via Anime Feminist).
Na Dinamarca, isso também gerou uma polêmica quando o protagonista de Soul, Joe Gardner, interpretado por Jamie Foxx, foi dublado por um homem branco. Todos os aspectos da animação foram pensados para representar toda a verdade da vivência negra, desde a importância do jazz à relação do protagonista com sua mãe. Entretanto, este ode à negritude se esvazia na dublagem dinamarquesa.
As falas que tentam explicar a situação são sempre as mesmas, mesmo que ditas em outras línguas. “Meu trabalho é encontrar a voz que melhor combina com a original. Negra, branca, asiática, não importa”, explica Juan Logar, um diretor de elenco e dublador espanhol (via The New York Times).
Um whitewashing da animação?
Mas não importa mesmo? Talvez eu consiga compreender isso quando estamos falando de Idris Elba em Esquadrão Suicida 2. Dublado no Brasil por Ronaldo Júlio, um homem branco, a narrativa do personagem do filme, Sanguinário, pouco tem relação com sua racialidade. Apenas alguns pormenores, como fidelidade aos quadrinhos e sua história de origem, que mal é citada no filme, fazem com que um homem negro, no caso Idris Elba, seja essencial para o papel.
Mas e quando falamos de Meilin “Mei” Li, dublada originalmente por Rosalie Chang, mas por Nina Medeiros no Brasil? Ser amarela é tema central da história de Mei. Não apenas quando tratamos da ligação ancestral com o panda vermelho, mas características comportamentais, o desejo de seguir contra o estereótipo do “asiático quieto, educado e inteligente” e até sua relação com a mãe.
Essa troca étnica não é tão diferente quanto Scarlett Johansson interpretando Major Motoko Kusanagi no live action de Ghost in the Shell. Esteticamente, seu cabelo, maquiagem e figurino parecem perfeitos, mas há algo de errado ali. Algo mais profundo. Que trata do desejo de pertencer em uma sociedade que nega, ou abomina, sua existência.
Em uma primeira camada, a história de Major parece apenas um enredo futurista de ação, mas é uma obra que apenas poderia ser criada por Shirow Masamune, um homem japonês, nos anos 80. Ghost in the Shell é uma expressão da voz japonesa.
O embranquecimento da personagem é uma forma de silenciamento dessa voz. Assim como apagar toda a diversidade cultural de Red — escolhida a dedo para o filme da primeira diretora asiática da Pixar, Domee Shi — é ignorar o que o filme representa. É tirar as sutilezas que só a interpretação de um sinobrasileiro, com suas vivências únicas, poderia trazer.
Ressignificar e representar
E é claro que nada é 100% representativo, afinal vivemos em um mundo dominado por homens brancos. Jack Kirby e Stan Lee criaram o conceito do Pantera Negra. Brancos e, majoritariamente, homens são os que recebem os lucros dos filmes da Pixar. E isso se repete com o dinheiro que Pantera Negra gerou e o que Wakanda Forever irá gerar. Mesmo as posturas mais inclusivas podem guardas aspectos, exclusivamente, mercadológicos.
Ainda assim, uma das maiores lutas diante do racismo é ressignificar o que já foi abuso em uma forma de empoderamento, de forma contínua e cotidiana. O primeiro episódio de Random Acts of Flyness, série da HBO criada por Terence Nance, explica isso de uma forma bastante didática.
Em uma sketch que se repete pelo piloto, Terence tenta mudar o significado de “blackface” — antiga prática teatral racista de atores brancos que se coloriam com carvão de cortiça para representar personagens afro-americanos. Nela, ele associa a palavra ao que ela significa literalmente: “rosto negro”.
Uma decisão histórica opressiva, de diretores brancos, corrompeu o significado do nosso próprio rosto para sempre. Parecia inocente na época, mas seus desdobramentos mancham nossa história até hoje. Mesmo que a ideia de Terence seja apenas um nado em um mar tempestuoso, ainda é uma lembrança do que nos foi tirado como pessoas negras. Mas com um esforço coletivo, sempre é possível retomar estes símbolos, estas vozes.
Se Kirby e Lee se apropriaram de uma narrativa africana para construir um herói negro, esse é o momento para tornar essa uma história de força para a comunidade negra contemporânea, ampliando a voz de roteiristas negros como Ta-Nehisi Coates. Se ainda é difícil para a comunidade amarela conseguir se mostrar em uma indústria branca, como na animação ocidental, está na hora de conseguirem esse espaço que, essencialmente, já é deles.
Dar a César o que é de César
Entre os diversos textos que pesquisei para construir essa pauta, tinham diversas frases revoltantes, mas a que marcou foi: “Cobrar pureza racial dos envolvidos com o filme é mais do que ridículo: é divisivo, é contraproducente. Uma total perda de tempo.”
Lendo isso de uma pessoa branca, percebo que o que é divisivo é a própria estrutura racista sob a qual vivemos. É ela que minimiza debates óbvios: o que não beneficia a classe hegemônica se torna “perda de tempo”. Entretanto, não é uma questão de pureza racial, sim de equidade de oportunidades. O meio da dublagem precisa criar um espaço acolhedor para profissionais racionalizados — pretos, amarelos, indígenas e afins. Só assim teremos vozes mais diversas na dublagem nacional.
Em uma estimativa para o portal Aventuras na História, o dublador negro Jorge Lucas, levanta que, considerando aproximadamente 450 atores/dubladores em atividade no Brasil, o número de profissionais pretos não passaria de 40, cerca de 8%. Parafraseando uma de suas declarações nesta mesma entrevista, “colocar dubladores racializados para dar voz a personagens racializados é
Uma forma de dar a César o que é de César. Mas isso deve ser visto de forma muito sensível e minuciosa, pois a voz não tem cor. […] É uma questão de representatividade, inclusão e respeito ao contexto e à alma do personagem”.
Vozes silenciadas
Porém, se voz não tem cor, porque ainda me sinto silenciado? No trabalho de Claudia Rocha da Silva, Vozes do Silêncio, a autora traz Rajagopalan para dizer que: “A identidade de um indivíduo se constrói na língua e através dela. Isso significa que o indivíduo não tem identidade fixa anterior e fora da língua” (p. 92).
Apenas definimos a noção de “eu” quando aprendemos a falar a palavra “eu”. E a forma como tudo é dito, carrega um peso identitário. Não é necessariamente apenas sobre qual voz combina melhor para tal personagem, mas sobre como adaptar, da melhor forma, a linguagem. Para esta nuances, um profissional etnicamente compatível com o personagem faz toda diferença.
Talvez o melhor exemplo para explicar isso seja uma frase da saudosa dublagem de Yu Yu Hakusho: “Rapadura é doce, mas não é mole não”. A possibilidade de que exista rapadura no Japão é pequena. Mas, se existe, ela não conseguiria carregar o mesmo significado a ponto desta frase ser entendida aqui no Brasil e no Japão. Logo, o ditado que virou uma frase icônica de Yusuke Urameshi tem natureza regional e identitária.
Do mesmo modo, pautas raciais são constituídas de uma linguagem específica que, pode ou não, ter detalhes realçados devido a história da pessoa que a fala. Muito além de um debate sobre português culto e português modernista, da cultura quilombola e da comunidade, escalar um dublador negro para um papel de um personagem negro é sobre identificação. O mesmo se aplica a um dublador amarelo para um personagem amarelo.
É preciso encontrar um meio termo nessa objetividade técnica — que, por si só, não é tão objetivo assim — no ato de se encontrar um dublador. É preciso utilizar alguma sensibilidade, que leve em conta que sim, a voz precisa ter cor. Afinal, uma pessoa não carrega sua cor só na pele. Carrega também em sua essência, em sua alma, em sua voz.
Esse artigo foi feito em colaboração de Gabriel Mattos.
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