[Opinião] Entre servidão e agressividade, onde o corpo negro se encaixa no entretenimento?
[Opinião] Entre servidão e agressividade, onde o corpo negro se encaixa no entretenimento?
Sobre como a mídia ainda cai em estereótipos racistas
Entre argumentos como “as crianças irão compreender que se trata de uma caricatura racista” e “conteúdo racista em animações antigas deveria ser apagado ou exibido com avisos”, me pergunto como, eu mesmo, consumi, de forma tão natural, algumas produções carregadas de problemas.
Com rostos monstruosos ou performances caricatas, hoje olho para trás e consigo apontar momentos incômodos que passaram despercebidos na minha infância. Como em Tom & Jerry, onde uma mulher negra é representada sob o arquétipo de Mammy. Ou em Dumbo e Pica-Pau, em que havia o uso de outro estereótipo racista Jim Crow.
Mas, nessa linha tênue, entre representação e estereótipo, a pergunta que fica é: O que podemos aprender com as imagens de Mammy, Sapphire e tantas outras? Entre servidão e agressividade, onde o corpo negro se encaixa?
Antes, uma viagem histórica
O melhor pontapé inicial para o início desse debate é sob a fala de um acadêmico da Royal Academy of Medicine, em 1815, em Paris: “Eu nunca vi um ser humano com uma cabeça tão similar à de um macaco”. A cena está representada no filme Vênus Negra, mas corresponde a um fato intrigante da história do mundo: Sarah “Saartjie” Baartman.
“Eu vim para te levar – longe dos olhos de homens monstruosos que vivem no escuro, com suas garras do imperialismo, que dissecam seu corpo pouco a pouco e comparam sua alma à de Satanás e se declaram como o deus supremo”, Diana Ferrus em Um poema para Sarah Baartman.
A mulher negra do povo khoisan foi exibida por diversas regiões da Europa como uma aberração. Seu corpo foi analisado e desenhado. Nos traços, partes suas ganhavam alterações que a transformavam em algo monstruoso. Após sua morte, sua vagina foi dissecada e colocada aos olhos e alcance de todo um centro acadêmico. Sob um novo nome, Sarah era investigada e tratada como um animal exótico.
Parece aleatório essa viagem de mais de 200 anos no tempo para explicar conceitos tão recentes como o arquétipo de Mammy e Sapphire, mas, a verdade é que toda a estrutura racista tem início em um mesmo ponto: nesse curioso encontro entre o branco e o negro, entre o europeu e o africano, entre o “Eu” e o “Outro”.
A construção do “Outro”
Em qualquer currículo de antropologia, “alteridade” será um dos termos mais comentados. Forjado como uma resposta ao processo colonial, esse termo significa o estudo do “Outro”. Uma construção identitária que consiste em analisar valores, representações e sentidos de outro grupo social.
Isso significa não apenas estudar outro povo e coletar informações, mas tentar experimentar conceitos e vivências, se colocando, de forma empática, no lugar do outro. Porém, esse processo não é tão simples quanto parece. Assim como boa parte dos campos acadêmicos, é impossível se despir de conceitos e pré conceitos para uma análise sociológica.
Logo, entender um grupo como o “Outro” era também resumi-lo a um conceito que apenas quem o escreveu compreende. Por exemplo, reduzir a Ásia a uma imagem essencialmente japonesa ou chinesa, quando há diversos outros países e culturas. Ou, compreender todos os povos indígenas como “atrasados” tecnologicamente quando cada um está em um processo diferente.
O corpo negro na mídia
É a partir desse ponto tão seguro de se olhar e pré-julgar que se cria o estereótipo. De acordo com Stuart Hall, essa estereotipagem é o que reduz, essencializa, naturaliza e fixa a “diferença”. Utilizado como um método de controle, construir um arquétipo que resume uma classe é criar uma expectativa sobre alguém.
Um exemplo clássico desse movimento para o corpo negro é a lista extensa de imagens racistas construídas no entretenimento americano. É a polêmica recente de Lenora em Pokémon, mas também o curioso caso de Mammy Two Shoes, personagem de Tom & Jerry.
Apelidada desta forma pela equipe de produção do desenho, Mammy era a dona das pernas de quem cuidava de Tom. Sempre pronta para controlar a casa com mãos de ferro, vimos a mulher brigar com o gato e até agredi-lo.
Quando seu rosto foi visto pela primeira vez, chegou a assustar as crianças, o que resultou em uma mudança drástica na personagem: transformá-la em branca. Ou melhor, fazer uma nova dona para Tom, que tinha pernas magras e brancas e um rosto “dócil”.
Mas, o que Mammy Two Shoes representou nos dezenove episódios em que apareceu, entre 1940 e 1952, é uma imagética que mistura duas figuras conhecidas na mídia americana: Mammy e Sapphire.
Mammy e Sapphire
Enquanto Mammy pode ser descrita como a nossa Tia Nastácia, mas, principalmente, como a personagem de Hattie McDaniel em E o Vento Levou, Sapphire é uma figura mais complicada. Uma mulher negra de temperamento explosivo, em que lhe era permitido ter uma postura agressiva, mas sempre leal aos seus patrões brancos.
“É um mecanismo de controle social que era utilizado para punir mulheres negras que violavam certas normas sociais e as encorajam a ser passivas, servis, não ameaçadoras e nem vistas”, diz o site do Museu Jim Crow da Universidade do Estado de Ferris sobre esses arquétipos.
Como uma evidência de que a escravidão era “aceitável”, essas imagens foram perpetuadas ao longo da história, se infiltrando em cinema, séries e animações. Mammy Two Shoes é apenas uma expressão desse arquétipo, mas o medo que ela gerou é apenas a prova de como esses mecanismos foram bem sucedidos em sua disseminação.
Não apenas nos Estados Unidos, mas também ao redor do mundo. No Brasil, por exemplo, além da comédia brasileira tomar posse dessas imagens, os comentaristas do Carnaval 2022 não souberam articular as referências à cultura negra nacional vistas nos desfiles. Isso porque, invariavelmente, as imagens negras que chegam no todo ainda são resumidas, excludentes e norte-americanas.
O assunto acabou retornando nos últimos anos após a Amazon disponibilizar a segunda temporada de Tom & Jerry em seu streaming. Antes da exibição dos episódios, o site advertiu aos possíveis espectadores de que o programa continha cenas de “preconceito racial” e que ele poderia “reproduzir preconceitos étnicos que eram comuns na sociedade norte-americana”.
Anteriormente, o Boomerang havia feito alguns cortes para poder exibir o desenho. Mas, entre podar ou não, onde é possível encontrar a negritude real? Como encontrar representatividade no estereótipo? Em uma época em que personagens são criados apenas para fazer volume e menos para construir narrativas inclusivas, essa é a verdadeira pergunta.
Jaque Patombá e o mito da mulher negra agressiva
Ironicamente, tivemos uma preparação para essa resposta no Big Brother Brasil de 2021. Entre debates errôneos e preocupantes, Karol Conká e Lumena fizeram diversas análises corretas, mas em situações controversas.
“Ela é a cara da fofurice da indústria mercadológica (…) Eu fico calada porque tenho preguiça de gastar minha saliva”, comentou Lumena sobre Carla Diaz em conversa no BBB21.
O que era apenas a língua de chicote de Jaque Patombá e Lumena era, também, uma crítica a essa construção mercadológica que limita discursos a estereótipos frequentes. O olhar torto de Karol, a forma como andava pela casa como se fosse sua, o jeito que se dirigia a Lucas.
São características claras de uma Sapphire. Quando colocadas fora de contexto, sobre a esfera do Twitter, se tornou fácil pintar a sua imagem como uma vilã, em que lhe era permitido tratar as pessoas de forma ruim – inclusive, existia um debate ao redor do “se tirar ela, ficará chato” –, mas junto, também haviam os constantes ataques a cantora.
“Tem menina aqui que se reivindicam ‘fofas’, gozam, se privilegiam desse lugar de ser fofa, se isentando de se posicionar”, apontou Lumena em outra conversa.
Deixando memes de lado, julgamentos ou questionamentos sobre suas atitudes, o retorno de Conká com Dilúvio é também uma construção em cima do oposto da Sapphire. Uma “nova mulher”, como foi dito pela cantora, uma em que o público possa desvincular do que ocorreu dentro da casa.
Jaque Patombá e Karol Conká
Entre Jaque e Karol, parece impossível existir um meio termo. Entre a doce e fiel Hattie McDaniel e a explosiva Mammy Two Shoes, parece difícil encontrar as diferentes formas de ser negro.
Nos últimos anos, avanços ao redor do assunto têm sido feitos. Mais personagens negros tem entrado no debate, mas por trás disso, ainda há uma essencialização de algumas imagens. Reduzidas ao bem e ao mal, ao bom e ruim, certos personagens e personalidades são dispostos apenas na servidão ou agressividade.
“[…] ele – o estereótipo – provoca uma cisão no que é normal e aceitável para o que é anormal e inaceitável, o que pode ser entendido, no caso da representação de pessoas negras, como a delimitação do espaço de atuação desses personagens”, explica Souza e Azevedo em Discutindo o Mito Negro: Uma Crítica à Importação dos Estereótipos Estadunidenses Mammy e Coon Na Telenovela Brasileira.
Orgulho(s) negro
Entre tantas falas sobre orgulho negro, talvez o que falte seja um plural. Um que inclua mais diversidade e não apenas um resumo. Não apenas uma presença para fazer volume em um elenco, uma personalidade que faça da produção “representativa”.
É óbvio e redundante chegar nessa conclusão, mas o lugar do corpo negro, ou melhor, de qualquer corpo racializado, é onde for possível estar. Não é sobre escolher as melhores tramas e sempre construir os mesmos debates em cima de assuntos que já conhecemos, mas levá-los adiante, onde for.
Mammy, Sapphire, Jim Crow, o “Negão”, a “Mulata”. Parafraseando o meme: O essencialismo tem que acabar. Não existe apenas uma construção identitária negra. Assim como também não há uma norma para o “normal” e “anormal” que possa comportar as múltiplas facetas do que é ser negro.
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