Opinião: Precisamos de mais obras como Heartstopper
Opinião: Precisamos de mais obras como Heartstopper
Nova série da Netflix concentra seus esforços em uma inclusão positiva e não-assimilacionista!
Desde que foi anunciada, Heartstopper atraiu bastante a atenção do público, seja dos leitores já fiéis da série de quadrinhos de Alice Oseman ou do público leigo, que viu no material de divulgação um romance fofo entre dois garotos no auge da puberdade. Após debutar com aprovação máxima, a produção se tornou um dos assuntos mais comentados das últimas semanas, conquistando um espaço que, há alguns anos, seria impensável para uma série com teor LGBTQIA+.
Para mim, desbravar os oito episódios que compõem a primeira temporada foi um delírio febril. Toda a construção do relacionamento entre Nick Nelson e Charlie Spring tem um quê de comédia romântica, com boas pitadas de coming-of-age e dramas escolares. Tudo amarrado em uma trilha sonora gostosinha e com uma estética que não só “copia” os quadrinhos originais, mas dá a eles um significado no audiovisual. Mas sua importância vai além de todo o furor dos últimos dias e das redes sociais – e nós precisamos de mais obras como Heartstopper.
Heartstopper devolve ao público LGBTQ+ algo que nunca tivemos
No ápice da minha adolescência, enquanto lutava comigo mesmo e tentava encontrar meu lugar no mundo, havia um claro desacordo entre a vivência LGBTQIA+ e a representação midiática que era construída na época. Ainda que uma ou outra produção mais adulta apostasse em conteúdos sobre questões de sexualidade e gênero, o “modelo” dessas dinâmicas ainda era relativamente incipiente na cultura mainstream.
Foi por isso que um certo fascínio se abateu sobre mim ao ligar a televisão no domingo e ver, na TV aberta, uma obra como Glee. Ainda que tenha diversas problemáticas, tanto na frente quanto atrás das câmeras, a série musical criada por Ryan Murphy oferecia um vasto repertório de discussões que permeiam a juventude – mesmo que no contexto norte-americano, bem diferente da realidade brasileira.
Ali foi onde eu vi pela primeira vez um personagem gay sendo tratado de forma humanizada e multidimensional. Ainda que Kurt Hummel seja um forte elemento cômico da série, ele nunca foi tratado como motivo de chacota. Na verdade, o personagem tem todo um arco nas primeiras temporadas, onde precisa lidar com a homofobia do ensino médio e seus primeiros romances.
Claro, Glee envelheceu como leite. Por mais que vários momentos da série permaneçam icônicos e os personagens ainda sejam queridos, muitas notícias sobre o elenco vieram à tona provando como a série era amaldiçoada, para dizer o mínimo. E não ajuda muito que a trama tenha passado por um declínio de qualidade com o passar dos anos, com muitos fãs abandonando a série ao deus dará.
Anos depois, ligo a Netflix e me deparo com Heartstopper. A série é baseada numa webcomic criada por Alice Oseman, da qual já tinha ouvido falar anteriormente. Mesmo com desconfiança, dado o nível das produções mais recentes da Netflix, dou play. E em menos de trinta minutos, já estou entregue a uma história sobre amadurecimento e sobre a busca por uma identidade própria. E com um romance muito bonitinho para coroar tudo.
Heartstopper terá, eu imagino, um papel similar para as gerações mais jovens ao que Glee teve pra mim, há uma década. Porém, há algo de diferente na nossa sociedade e na forma como nos entendemos, que faz com que uma obra assim seja ainda mais importante para os tempos atuais. Progredimos lentamente, com a conquista de direitos para pessoas LGBTQIA+ e a luta por uma inclusão maior na mídia.
Porém, os retrocessos também vieram galopando em nossa direção. A política mundial foi sequestrada por debates radicais e conservadores, enquanto a vivência das minorias sociais é empurrada cada vez mais para debaixo do tapete. A Disney, “grande aliada” que é, estava financiando campanhas anti-LGBTQ+ nos Estados Unidos, enquanto outra autora de uma saga mundialmente reconhecida achou bonito pagar de transfóbica na internet, contrariando a mensagem de sua própria obra.
É nesse sentido que Heartstopper se faz necessária – não apenas para dar ao público LGBTQ+ algo que nunca lhes foi oferecido, mostrando a naturalidade e a pureza dos primeiros romances, da “família escolhida” e das dinâmicas e relações quando se é um indivíduo queer. Mas também é necessária como forma de resistência e de luta, nos fazendo ocupar espaços que historicamente nos foram renegados.
Assimilacionismo? Aqui não!
Dentro da teoria queer, existe um termo que pipoca aqui e acolá e que é muito importante para entendermos mais do apelo e do papel que Heartstopper traz. O assimilacionismo é uma tática usada dentro da estrutura capitalista para “abraçar” públicos minoritários e passar a ilusão de que realmente “fazemos parte” de uma sociedade, de que somos iguais em direitos, em vivências e em privilégios com quem está no topo da pirâmide social.
Muitos estúdios atualmente investem nessa política, mesmo que deem apenas migalhas para o público que tentam atingir. É o caso da Disney e suas cenas de seis segundos com personagens LGBTQIA+ que mal têm falas, ou então as campanhas de marketing focadas em atender a todos os públicos, quando por baixo dos panos financiam várias campanhas que ameaçam as nossas vidas.
Mais do que isso, o assimilacionismo é prejudicial para a comunidade queer por nos forçar a “ficar na coleira”. É quase como se dissessem: você pode até gostar de homens, mas tem que abdicar de toda sua identidade para se encaixar num padrão heteronormativo. E isso não vale apenas para gays, mas para todas as siglas que habitam essa comunidade.
Nos últimos anos, há uma ascensão de produções que voltam seus olhos para uma cultura assimilacionista. Talvez a mais curiosa de todas seja Com Amor, Victor, série spin-off de Com Amor, Simon, que foi despejada direto na Hulu, mesmo que tenha sido originalmente anunciada para o Disney+. O motivo? De acordo com o estúdio, havia muito consumo de bebidas alcoólicas e o Disney+ era uma plataforma “para a família” – o que não se sustenta a partir do momento em que séries como Justiceiro e Jessica Jones são inclusas no streaming.
Porém, além das polêmicas dos bastidores, precisamos notar como Com Amor, Victor tenta nos encaixar em um lugar de “conforto” que não existe. Victor é bem-recebido no time de basquete de sua escola, vive um clássico amor heteronormativo, não possui nenhum amigo LGBTQ+ próximo e está sempre passando a imagem do “bom gay” — isto é, aquele que não compra brigas e que aceita todas as macro e microviolências de cabeça baixa.
Heartstopper toma um rumo drasticamente diferente. Claro, há um relacionamento entre dois homens brancos “padrões”, mas a série sempre mostra o quão difícil é a realidade e como temos que abrir mão de muita coisa para encontrarmos nossa própria identidade. Mais do que isso, Charlie Spring precisa enfrentar os fantasmas do assimilacionismo representados na forma de Ben Hope.
Além disso, em obras assimilacionistas, é normal que qualquer coisa que fuja ainda mais do “padrão” seja tratado com desdém ou simplesmente “escondido”. Você mal vê pessoas transgênero, discussões sobre bissexualidade são invalidadas e pessoas queer que estão na intersecção com minorias étnicas quase sempre são desprezadas, salvo uma ou outra exceção. Heartstopper não vai nessa onda: uma das protagonistas da série, Elle Argent, é uma mulher trans negra, enquanto Nick Nelson tem um grande arco enquanto tenta definir sua sexualidade.
Não pode parar por aí!
Por mais que Heartstopper tenha vindo para parar os nossos corações com tanta fofura e amor (perdão pelo trocadilho), não devemos parar por aí – afinal de contas, é a retratação de uma vivência. Pessoas queer são plurais e devem possuir diferentes retratações, ainda mais considerando como algumas das siglas além do “L” e do “G” são motivo de escárnio para a sociedade e possuem muito menos espaço na mídia.
A nossa esperança é que, com o sucesso da série, outras produções possam vir para um público mais jovem, que tenha uma representação positiva e possam se ver retratados sem receio. Através disso, a normalização de suas vivências é respeitada e eles não precisam mais se sentir “estranhos” em meio a uma sociedade heteronormativa – ao mesmo tempo em que não serão obrigados a se assimilar.
Por isso, é muito importante que estejamos abertos para obras que fogem um pouco do mainstream. Em vez de bater palmas toda vez que um personagem da Marvel fala um diálogo ambíguo que pode ser interpretado como um indicativo de sua sexualidade, é melhor procurarmos filmes e séries que de fato se comprometem em mostrar pessoas queer vivendo abertamente suas verdades. E nem precisa ir muito longe ou fugir totalmente do mainstream: basta pensar em Sex Education, The Bold Type, Rua do Medo, It’s a Sin e até mesmo Euphoria.
Além destas, também é importante olhar para o passado e ver como vivências queer já foram retratadas em obras que são voltadas para a nossa comunidade – ainda que algumas dessas séries tenham representações que não condizem exatamente com o zeitgeist contemporâneo. Queer as Folk, as minisséries da antologia Crônicas de São Francisco, filmes do New Queer Cinema, especialmente os dirigidos por Gregg Araki e Todd Haynes, além de obras um pouco mais recentes como Looking e The L Word são imprescindíveis.
Por fim, um único adendo que tem me chamado a atenção nos últimos dias: muitos defendem Heartstopper com unhas e garras por ser uma série que não possui cenas de sexo ou tramas mais “adultas”. E por mais que isso seja muito compreensível, afinal é uma história sobre adolescentes e seu despertar romântico, não podemos cair nesse discurso porque é mais uma forma de nos manter “na coleira” da moral e dos bons costumes – ainda mais levando em conta que o nosso sexo, a nossa sexualidade, é o principal motivo pelo qual somos excluídos.
Tendo dito isso, caso ainda não tenha visto Heartstopper, assista – especialmente se você for uma pessoa LGBTQ+ que, assim como eu, cresceu com escassos exemplos de boa representação. E quando eu falo em “boa” representação, não estou dizendo necessariamente representação positiva e higienizada, mas sim uma pequena amostra de como as vivências queer são plurais, diversas e distintas entre si. E se por acaso você for uma pessoa heterossexual cisgênero, ainda é a chance de ver uma comédia romântica fofa, divertida e cheia de momentos emocionantes.
Heartstopper está disponível na Netflix.
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