Opinião: A mudança de poderes da Ms. Marvel no MCU é uma perda para todos
Opinião: A mudança de poderes da Ms. Marvel no MCU é uma perda para todos
Mais que simples mudança de poderes, decisão diminui uma história que poderia teria mais a dizer
Ms. Marvel é um dos diversos projetos do Universo Cinematográfico da Marvel que chegarão este ano, e seu primeiro trailer ressuscitou uma das discussões mais polêmicas entre os fãs de quadrinhos: as mudanças de poderes. Volta e meia, algo é alterado em favor das adaptações em live-action, o que em retorno leva a fãs entristecidos ou enraivecidos por não verem um herói querido representado fielmente nas telas.
Nesse caso, porém, a mudança vai muito além de uma busca por purismo ou culto ao material original. Quem reclama da mudança em Kamala Khan muitas vezes não o faz simplesmente por ser uma mudança, e sim pela enorme perda que a decisão representa.
Kamala não é uma heroína somente por conta de seus poderes – mas suas habilidades são essenciais no desenvolvimento de uma trama que usa a ótica do universo dos super-heróis para lidar com identidade e aceitação.
Kamala Khan apareceu pela primeira vez nos quadrinhos em 2013, em uma série estrelada por Carol Danvers, a Capitã Marvel. No ano seguinte, a personagem ganhou sua própria série, se tornando a nova Ms. Marvel – e a primeira protagonista muçulmana de uma série solo da Marvel.
A jovem heroína logo se tornou um sucesso, com sua história sendo reconhecida mesmo em premiações como o Hugo Award, prêmio literário dedicado às obras de fantasia e ficção científica. Mais que qualquer prêmio, porém, a história de Kamala estabeleceu uma forte conexão com o público, a tornando muito querida entre os leitores que, assim como ela, eram inspirados pelos heróis da Marvel.
Antes de tudo, a personagem era uma garota adolescente americana de família paquistanesa. Por si só, essa construção levanta inúmeras discussões sobre uma identidade em conflito quando a garota passa por dilemas culturais: sua família nem sempre a entende, já que ela também foi moldada por crescer nos Estados Unidos, mas ela não é simplesmente uma garota americana, algo que leva a situações de tensão com seus amigos que não entendem a cultura de Kamala.
Não é preciso mais para mostrar como, desde o início, a jornada de Ms. Marvel tem como ponto principal encontrar seu lugar no mundo quando você não sente que pertence completamente a nenhum lugar ou grupo. A diferença é que, utilizando do universo de super-heróis ao máximo, a trama utiliza os poderes de Kamala como metáfora para isso – bem como para discutir identidade, raça, cultura, e estabelecer que todos podem ser heróis e inspirar outras pessoas.
Um dos elementos mais marcantes nessa construção vem justamente por meio dos poderes de Kamala, recém despertos depois do contato dela com a Névoa Terrígena. Sua capacidade como metamorfa dá a ela inúmeras possibilidades de ação, que acabam sendo exploradas posteriormente. Mas, ao sair de seu casulo, ela se vê transformada em Carol Danvers, a Ms. Marvel original.
No plano das ideias, se transformar no seu maior ídolo e herói pode parecer algo positivo, mas Kamala logo descobre que isso não é verdade. Enquanto olha para si mesma aterrorizada por assumir a pele de Carol, a personagem também entende isso: por mais que admire a heroína, essa não é quem ela é – algo que tem ainda mais impacto e conotações pelo fato de Carol ser uma mulher estadunidense branca, que não compartilha das experiências e desafios que Kamala vive.
O fato de ela ser a pessoa em quem a personagem se transforma não é por acaso: Carol representa o que Kamala entende como um ideal de beleza, força e perfeição. Como alguém em busca de seu lugar, que não se sente confortável em sua pele, a polimorfia apresenta a oportunidade de colocá-la nessa posição, à qual ela não pensa pertencer a princípio. Mas isso tudo só serve para fazê-la encarar que mesmo que esse ideal não seja quem ela é, isso não é um problema: ela possui força, beleza e tudo mais de sua própria forma, e não precisa se tornar Carol para isso.
Apesar de ser uma das cenas mais impactantes, este é apenas um exemplo de como a jornada de heroína da Ms. Marvel está profundamente atrelada a sua identidade, e a entender e aceitar a si como é – como Kamala e Ms. Marvel, com origens estadunidenses e paquistanesas, sendo fã de super-heróis e descobrindo que ela própria pode se tornar a inspiração de outros.
Ao invés de começar como heroína, ela continua fingindo ser Carol no início. Ainda assim, ela eventualmente entende que inspirar e proteger não são ações relegadas apenas à Capitã Marvel ou o Homem de Ferro, dois dos maiores ídolos da jovem e que são pessoas privilegiadas em diversos níveis. Seu primeiro arco permite que ela deixe de lado a necessidade subconsciente de ser aceita como o padrão, e passe a se ver como heroína do jeito que ela é, independente de quão pouco convencional seja ver alguém como ela como super-heroína. Kamala não precisa ser uma garota padrão, loira, branca e de olhos azuis para ser uma heroína.
Da mesma forma, seus poderes não são o que é considerado convencionalmente incrível e agradável de se ver. Em sua encarnação nas HQs, a Ms. Marvel não conta com grandes explosões, graciosidade sobre-humana, habilidades brilhantes ou mesmo algo como vôo. A polimorfia permite que ela mude sua aparência, mas isso é explorado de modo pouco convencional, já que ao se aceitar, Kamala não a usa como subterfúgio, ou para estar na pele dos outros. Esticar partes de seu corpo ou torná-las maiores potencializa as características da própria Kamala, e não é algo feito para ser legal e interessante, mas não agradável aos olhos. Esse, no entanto, é justamente o ponto: suas habilidades foram criadas para serem peculiares, ao invés de facilmente aceitas.
A jovem não precisa de habilidades “bonitas”, com brilho cristalizado em tons de roxo, para ser considerada como uma heroína. A força de sua narrativa está, em parte, nisso: seus poderes não são fáceis de aceitar, mas ela os aceita. Eles deixam de ser um meio de se esconder por trás da identidade de outra e se tornam algo muito característico seu, com todos seus usos e problemas causados por eles. Kamala aprende não só a controlá-los, mas a se amar do jeito que é, mesmo quando isso foge a um padrão.
Transformá-los em algo que é estéticamente agradável, além de potencialmente não ser inteiramente parte dela, dada a relação com os braceletes, vai contra essa noção e o papel que os poderes dela teriam na trama. É compreensível que, do jeito que são, esses poderes não sejam traduzidos bem para o formato live-action sem comprometer muitos recursos, já que se trata de fazer alterações no corpo humano funcionarem como algo real e não assustador. Uma das co-criadoras da personagem, G. Willow Wilson, já afirmou anteriormente que esse seria o caso, uma vez que eles foram pensados para explorar ao máximo o formato dos quadrinhos.
Ainda assim, haviam formas de adaptar isso sem tornar os poderes de Ms. Marvel o oposto do que deveriam ser narrativamente. Mais que isso, em uma marca tão forte quanto a Marvel, cujos filmes rendem bilheterias extraordinárias, é difícil acreditar que o investimento necessário para criar algo bem feito seja um real limitador de adaptar melhor a heroína para as telinhas, principalmente quando outros heróis de produções já anunciadas, como o Sr. Fantástico, contam com habilidades similares.
A co-criadora Sana Amanat comentou em uma entrevista que os poderes de Kamala foram concebidos pensando no centro de sua narrativa, que tem como pilar o conceito de identidade. A heroína é uma adolescente que sente não se encaixar nos ideais, e seus poderes são propositalmente meio estranhos e nada bonitos. Nas palavras da própria Amanat, ela não ter poderes tipicamente bonitos era algo importante desde a criação de Kamala:
“Nós tivemos algumas ideias muito ruins no começo, mas ela ser uma polimorfa parecia fazer sentido. Tem uma mensagem realmente boa quando você pensa sobre uma jovem garota, que não gosta de sua aparência e não acredita que se encaixa, e pode mudar sua aparência para qualquer coisa. E ela não ser ela mesma foi grande parte de sua auto-exploração. Sabe, nos primeiros volumes, ela se transforma em sua ídolo, e essa é uma escolha muito específica que fizemos por causa dela pensar que o ideal e conceito de força e beleza e perfeição é alguém que é literalmente o oposto dela em termos de aparência. Então esses poderes foram realmente orgânicos em sua história. E eu queria garantir que ela não teria os poderes bonitinhos típicos com explosões brilhantes e cabelos voando ao vento. Ou mesmo o poder de voar. Queríamos garantir que era meio peculiar; ela é uma adolescente. Seus poderes são meio estranhos, e acho que é divertido brincar com isso.”
Substituir esses poderes por uma força visualmente semelhante à controlada pelo Lanterna Verde elimina todo esse aspecto da história. Certamente, Kamala ainda pode passar por uma jornada de aceitação de sua própria identidade sem esses poderes, mas não de modo tão visceral e completo quanto ter a possibilidade de aparentemente se tornar aquilo que via como ideal, e ainda assim crescer, aprender e optar por se assumir como é, reconhecendo suas próprias forças ao invés de tentar se encaixar em outros moldes.
Além disso, é um desperdício ignorar algo que torna a Ms. Marvel tão única, já que sua história entrelaça essas questões com a mídia em que se encontra e um dos elementos mais característicos dos super-heróis. Poderes recorrentemente fazem parte dessas narrativas, mas muitas vezes apenas como um elemento e não como ferramenta para dizer algo. Nos quadrinhos da Ms. Marvel, porém, eles são utilizados como parte importante, adicionando ao porquê de essa ser uma história de super-heróis além de simplesmente a jornada de uma adolescente por identidade.
Pessoalmente, não costumo me incomodar com mudanças em adaptações de HQs. Como mídias fundamentalmente diferentes, é impossível que algo não acabe divergindo entre o que foi criado nas páginas dos quadrinhos e o que chega às telas, seja dos cinemas ou por meio do streaming e da TV.
Na maioria dos casos, discussões sobre alterar ou não poderes de personagens são extremamente superficiais, e geradas apenas pela incapacidade de parte do público de aceitar que essas diferenças às vezes precisam acontecer. No caso da Ms. Marvel, porém, o problema vai além da habitual discussão entre fidelidade e adaptações. Suas habilidades são um reflexo de sua jornada de auto-aceitação. Mudar os poderes de Kamala é tirar parte fundamental de sua construção, e substituí-los por algo visualmente agradável é desmanchar qualquer discussão que eles pudessem levantar sobre identidade.
Ainda é cedo para fazer julgamentos sobre a série em si, e é completamente plausível que a obra consiga tocar em temas semelhantes e outras formas, mas quão difícil realmente seria aceitar seus poderes do jeito que são, quando eles se assemelham àqueles dos seus ídolos? Ao invés de permitir que a protagonista encontre força em suas individualidades e fuga aos padrões, a mudança apenas a aproxima desses padrões para torná-la mais “aceitável” – um desserviço enorme a quem se apaixonou por Kamala em sua jornada para descobrir e abraçar sua identidade, mas também ao grande público do MCU, que não terá a chance de experienciar a história com o mesmo impacto.
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