Opinião: Ms. Marvel merece mais amor
Opinião: Ms. Marvel merece mais amor
“Não existe um normal”
Entre expectativa e realidade, o que eu não esperava da nova série da Disney+, Ms. Marvel, era sentir o mesmo frescor do quadrinho escrito por G. Willow Wilson, de 2014. Reencontrar a Kamala que eu e tantos outros nerds fora do “padrão”, fomos. É curioso notar que, como naquela época — em que a entrada desta heroína para a Marvel foi conturbada, com boa parte do público a rejeitando e a outra, fingindo que a personagem não existe —, como agora, Kamala Khan merece mais amor.
Uma ode aos estranhos
Por isso, esse texto não é sobre apontar problemas. Longe de “molhar no molhado” e traçar os erros da escrita dos vilões da Marvel, quero resgatar um rapaz que, em seus dezessete anos, não sabia onde se encaixava. Entre grupos nerds do Facebook, se deparou com a capa de um quadrinho que parecia com ele mais do que imaginava.
Naquelas páginas de traço solto e roteiro cativante, conheceu uma personagem que se tornou uma constante em sua vida desde então. Uma lembrança que os “estranhos” existem, que o “normal” não é algo de verdade e que garotas paquistanesas de Nova Jersey podem ser heroínas. Assim como, garotos negros do Rio de Janeiro podem ser o que quiserem.
Nos anos seguintes, cobertos de racismo, preconceito e LGBTfobia, não imaginei que essa sensação de completude e representatividade chegaria sob o disfarce de uma série da Disney+. Da mesma empresa acusada, diariamente, de silenciar funcionários e utilizar pautas políticas para ganhar dinheiro.
Mas chegou. A série da Ms. Marvel é tudo que Kamala Khan representou para os estranhos que não conseguiam se encaixar entre os nerds ou os populares. Para aqueles que viram a silhueta de Thanos na tela do cinema, mas custaram a encontrar um personagem parecido com eles no Universo Cinematográfico da Marvel.
Um exemplo é como a primeira vez que encontrei espaço para conciliar espaço político e nerdice foi em 2018, com Pantera Negra. Antes, “quadrinhos” pareciam apenas com um tópico da internet em que todos queriam falar, mas ninguém sabia exatamente sobre o que estava falando.
É curioso como um espaço digital me lembra da própria academia. A antropologia, por exemplo, surgiu na busca de entender o outro e não sob a necessidade de olhar para si mesmo. Entre compreender outras identidades e transformar a sua como certa, essa disciplina acabou caindo em preconceito e alteridade.
Conceito que por si só é a mistura caótica de vozes tentando definir o que não pode ser definido. Com ela, se cria a diferença, constitui o “outro”. Seu viés pode ter se modificado para um espaço mais inclusivo com o passar dos anos, mas a base do racismo científico se deu aqui. Com homens brancos acreditando que eram o centro do mundo.
E, queira ou não, isso se instaurou na sociedade de outras formas. Estamos cansados de apontar como há pouca representatividade no cinema, série, livros e afins. Exaustos de dizer como o preconceito se instaurou na cultura pop e no cotidiano. Esgotados em como todo dia, uma nova discussão sobre conservadorismo surge no Twitter.
Entre vozes paquistanesas, negras e amarelas
Geograficamente, o centro do mundo pode ter continuado o mesmo, mas socialmente, ainda vivemos percorrendo opiniões brancas, masculinas e heterossexuais. Tentando sobreviver com o pouco. Se, por um lado, as redes sociais deram voz a todos; por outro, apenas uma voz alcança ao mainstream.
Quadrinhos como Ms. Marvel e filmes como Pantera Negra serviram para diversificar as vozes e trazer uma visão diferente da realidade. Não muito longe das mudanças que a antropologia sofreu e sofre. Ouvindo e deixando seus interlocutores falarem, ao invés de esperar que alguém fale por eles.
Algo que parece faltar na fase atual da Marvel. Kevin Feige controla cada enredo com mãos de ferro, fazendo com que os criadores ao seu redor tenham pouco espaço para mostrar o seu diferencial. Porém, foi nesse pequeno espaço que Ms. Marvel conseguiu brilhar com sua autenticidade e inclusão.
Meera Menon, que dirigiu dois dos episódios da série, contou que quando foi convidada pela Marvel Studios, deixou claro o seu intuito: “[…] criar um pedaço da cultura pop que pudesse refletir meu próprio crescimento como indiana-americana”.
“Eu trabalhei com tantos gêneros e eu amo como a série tem um pouco de tudo. É uma história sobre família, um romance adolescente, uma história sobre crescimento, um filme de ação, um thriller. […] É um pouco de tudo e eu amo essa junção”, explicou para o The Hollywood Reporter.
A diretora buscou e conseguiu inserir a cultura paquistanesa em um espaço onde as histórias de romance e de heróis são majoritariamente brancas. Lembrando ao público que “sonhar” também é um ato político.
Mas, não foi imediato para eu perceber a força dessa adaptação de Kamala. Bombardeada por críticas no IMDB e sendo apontada como “uma série da Nickelodeon”, por um momento, era como se a personagem tivesse falhado em levar diversidade à cultura pop. Em juntar o que ela é nos quadrinhos, unir com o cinema da Marvel e se divertir no meio disso.
Só que, por baixo do enredo e das mudanças dos poderes, Ms. Marvel trouxe novas vozes. Nos quadrinhos, sua ascensão levou a personagem a se tornar um símbolo político, como também refletiu na luta contra a extrema direita e preconceito. Mais do que esticar os punhos, o poder de Kamala se tornou dar espaço a vozes que não eram ouvidas.
Dentre tantas, estava a de sua criadora: G. Willow Wilson, roteirista dos quadrinhos da heroína. Com a oportunidade de contar mais sobre como é ser uma descendente de imigrantes asiáticos nos Estados Unidos, a cultura pop deu o braço a torcer, aceitando que todos tem uma história que merece ser contada.
Assim como Kamala e outros personagens, como Miles Morales, Riri Williams e América Chavez, foi aberta uma porta para ouvir os “estranhos” no mundo dos quadrinhos. Já com a série, Iman Vellani, no papel de Kamala Khan, parece ter aberto outra porta e, novamente, numa época política conturbada.
Entre essas aberturas, encontrei alguns criadores de conteúdo que também sentiram o mesmo fervor e orgulho com a execução da série. Um que misturava decepção por alguns arcos e decisões, mas também carinho por Iman Vellani e todo o resto da produção.
O youtuber Imran, por exemplo, trouxe o olhar de alguém inserido na cultura paquistanesa. Ao mostrar os problemas em utilizarem uma figura religiosa, os Djinn, como um artifício de roteiro, ele ainda lançava uma luz a referências culturais e como a experiência da personagem ecoa com a sua própria.
Já o @Islamchannel entendeu que nem toda representação é perfeita, mas que todas merecem atenção ao abordar um tópico delicado: Atores que não usam hijabi deveriam interpretar personagens que usam?
🦸♀️Actor Yasmeen Fletcher has confirmed that her character Nakia Bahadir will stick to her comic roots and wear a hijab in Ms. Marvel’s Disney+ series
🧕But should non-hijabi actors play hijabi characters on screen?
🤔We ask actress @Aisha__Rosalie
👇Leave your comments below pic.twitter.com/25bJRXMQQT
— Islam Channel (@Islamchannel) September 29, 2021
“Finalmente estamos com algum tipo de boa representação em uma série grande que não se resume a ser um terrorista ou um vilão”, diz a atriz Aisha Rosalie.
Boa representação e má representação
São nesses altos e baixos que Ms. Marvel se destaca por trazer o diálogo. Enquanto nos saturamos de polêmicas e controvérsias, precisando enfrentar “hate” desnecessário e preconceito, Kamala, mais uma vez, ignora o ódio e segue dando espaço para que outras pessoas falem.
Resumindo essas duas páginas de apontamentos e citações, quero lembrar que, entre “boa”, “má” e a “única representação”, existem indivíduos que apenas querem fazer parte. Não é aleatório que a série se tornou uma favorita entre indivíduos racializados. Como também o fato de boa parte das críticas e hate ter vindo de um público já conhecido por isso.
Ms. Marvel pode não ser real. Seu uniforme é tão legítimo como as páginas de um quadrinho. Seus poderes? Falsos como um bom — ou ruim — efeito especial e tela verde. Mas, sua imagem ainda ecoa na realidade como uma heroína de verdade, nos lembrando que “‘Bom’ não é algo que você é, é algo que você faz”.
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