Opinião: Seu filme de terror favorito é gay
Opinião: Seu filme de terror favorito é gay
E tá tudo bem!
“Não se deixe levar pela minha aparência; Não julgue um livro pela capa; Eu não sou muito homem à luz do dia; Mas à noite, eu sou um grande amante”. Existe algo de sombrio na sexualidade. As conversas em aplicativos duvidosos, os encontros em ruas escuras, tudo isso é como um filme de terror para a heteronormatividade, mas é apenas um dia comum na vida de um LGBTQ+.
Pensando nisso, este artigo vai analisar como a história dos filmes de terror, que sempre se pautaram na transgressão das normas, anda lado a lado das narrativas queer, que por definição são muito disruptivas.
“Eu vejo você estremecer com anteci… pação!”, Frank Furter
Ao rever pela milésima vez Rocky Horror Picture Show, ouço na letra da música cantada por Tim Curry, interpretando Frank N. Furter, muito mais do que uma apresentação de personagem. Frank nos mostra a dicotomia que é existir em um corpo biologicamente masculino, se apresentar com uma estética andrógina e atiçar a curiosidade de todos ao seu redor, que esperam pelo próximo movimento dessa criatura complicada e desconhecida.
Curiosamente, essa experiência não é muito diferente, por exemplo, do que vemos em Um Lobisomem Americano em Londres. Em uma hora e meia de filme, conhecemos David, vemos seu melhor amigo morrer nas mãos de um ser sobrenatural e o vemos sucumbir a condição de um lobisomem. Sua transformação e até mesmo enredo, que foge de um debate sobre sexualidade, conversa com o mito de “virar gay”.
O personagem entra em um estado em que não sabe o que sente ou o que é capaz de fazer. Ser não-hétero, pelo olhar de uma pessoa hétero, é não ter controle sobre esse corpo. Um dia sendo algo; No outro, quem sabe?
Olhando para trás, percebo o quão estranhas foram as minhas conversas sobre sexualidade. Feitas em tom baixo, como um segredo. E, quando finalmente parecia livre do armário, havia aquele enredo confuso sobre “ser apenas uma fase” ou “por favor, não aja como uma mulher”.
E nessas questões que atravessam a individualidade, uma me marcou através dos anos: Como as pessoas lidavam como “ser diferente” quando não havia a identidade “queer”? Como as pessoas se definiam quando ainda não havia existido uma Judith Butler para cunhar o termo “queer” e dizer “Nós existimos, não somos uma espécie desconhecida”?
A resposta está na mesma sensação de não se encaixar no todo, de não fazer parte da “norma”. Está no horror. Nos monstros, na metalinguagem e na sátira. No surreal, na ficção científica de Mary Shelley presente em Frankenstein e na “doce travesti” que é Frank, em busca de construir o “homem perfeito” em Rocky Horror Picture Show.
Queer horror, estranho horror
Mas, para compreender essa lógica, é importante evidenciar um momento complicado da história: a década de 30 e o Código Hays. “Perversão sexual ou qualquer menção a ela é proibida”, diz uma das linhas desse conjunto de normas morais aplicadas aos filmes lançados entre 1930 e 1968 nos Estados Unidos.
Através delas, Hollywood seguia uma conduta em que o uso de drogas em qualquer filme era proibido, a não ser se fosse para vilanizar e mostrar as consequências de seu consumo. Não só isso, mas mulheres seguras de si e sexualmente liberais não eram aceitas nos longas, pois mulheres boas eram mulheres castas ou casadas.
Entre tantas regras ridículas sobre boa conduta, o cinema estadunidense, junto do internacional, foi se fechando em uma rede de tramas que precisavam ser criativas para trazer algo que representasse seu autor. Filmes clássicos como E o Vento Levou precisou mostrar um parto, mas sem nenhuma nudez. Já Hitchcock, sugeria a traição ou sexo fora do casamento, mas nunca de forma clara.
Um dos métodos clássicos do diretor para contornar o Código Hays foi fazer um plano sequência em Festim Diabólico, de 1948, que colocasse os censores entre a cruz e a espada. Tornar o filme menos violento e destruir a visão criativa e o método inovador do diretor ou deixar todo o filme passar?
Porém, nem todos tinham o orçamento ou criatividade de Alfred e precisaram usufruir de um gênero em específico, o terror. Subestimado pelo público, crítica especializada e censores por anos, era o local perfeito para construir narrativas diversificadas, mas dentro da norma.
O beijo da vampira lésbica
Mas, se o horror surgiu como uma solução, não foi algo aleatório. Além de ser um gênero que as pessoas não “levavam a sério”, a própria existência LGBTQ+, negra, feminina é uma trama de horror.
Em A Filha do Drácula, de 1936, Condessa Marya Zaleska, interpretada por Gloria Holden, vivia sob a dualidade de seguir os passos do pai e se deixar levar pelo desejo de sangue ou se adequar a “normalidade”. Precisando recorrer a um psiquiatra para entender o que se passava com ela, a mulher não consegue se controlar e acaba enfeitiçando e tomando o sangue de Lili.
“Ela irá te pegar!”, dizia um dos pôsteres com um olhar sinistro de Marya e uma Lili assustada. Repleto de cenas sugestivas, o longa se tornou um cult lésbico. Mesmo com seu enredo que, de certa forma, vilaniza e coloca a sexualidade como uma patalogia, o subtexto homossexual evidencia o maior medo de qualquer LGBTQ+ não assumido: sair do armário.
O horror de sair do armário
Quase cinquenta anos depois, surgiria A Hora do Pesadelo 2: A Vingança de Freddy, consagrando-se como uma das maiores produções gays da história. E, ironicamente, com nenhuma menção direta à sexualidade.
O filme dirigido por Jack Sholder e protagonizado por Mark Patton e Robert Englund traz Jesse em uma nova fase da vida. Nova casa, colégio, colegas, interesses românticos e um demônio do sonho assombrando suas noites.
Mas essa é apenas a primeira camada da trama, pois, aos poucos, um desejo pulsante toma a vida de Jesse, que o leva até um bar gay, o coloca em uma experiência pseudo sadomasoquista com seu professor de educação física e o faz deixar sua namorada para ir dormir com seu amigo.
É claro que, anos mais tarde, o roteirista, David Chaskin, revelou que havia inserido, propositalmente, cenas com subtextos homossexual. Mas, ainda assim, essa foi a primeira e única vez que Freddy Krueger utilizou um adolescente para matar.
Enquanto, anteriormente, ele não passava de um demônio do sonho, nesta sequência, ele se tornou um desejo desconhecido crescente em Jesse. Que misturava o horror com pensamentos que o garoto não dividia nem com o travesseiro. Sugestivo, não?
O T não é de Terror, mas deveriam adicionar mais um T à sigla
A Hora do Pesadelo 2 utiliza o horror corporal para tratar de sexualidade, mas no dia a dia, existir como LGBTQ+ é um horror corporal do cotidiano. E, talvez por isso, seja tão fácil para essa comunidade consumir, se engajar e identificar com esses filmes. Seja com os vilões que são excluídos pela sociedade, como Jason Voorhees, Pinhead, Michael Meyers, a filha do Drácula; Seja como heróis que parecem gritar para um vazio existencial em busca de ajuda, como Jesse, Nancy Thompson, Sidney Prescott, Ash Williams e tantos outros.
Olhando de forma macabra para o assunto, parece existir um conforto em poder ver uma situação de horror que dura pouco mais de uma ou duas horas. Uma que parece fácil de sair, sendo preciso apenas seguir as regras dadas por Randy em Pânico. Uma situação que não perdura pelo resto de sua vida.
James Jenkins, fundador da Valancourt Books, responsável pela publicação de diversos livros desse nicho explica um pouco dessa preferência ao tema:
“A explicação tradicional para a ligação entre gay e horror é que, durante a vertente da literatura gótica, era impossível para eles, autores como Lewis, Beckford e Lathom, escrever abertamente sobre ‘temas gays’. Então, eles expressavam essas temáticas de uma forma ‘aceitável’, usando o gênero de terror como meio”.
Olhando para o legado que essas histórias deixaram, é gratificante ver o cinema dando o braço a torcer e evidenciando que são os LGBTQ+ que construíram o horror. Assim como são os que sobrevivem no slasher que é o dia a dia. Com filmes como They/Them, Rua do Medo, Pânico, a série Chucky, existe o conforto para não usar apenas metáforas, mas deixar claro que pessoas LGBTQ+ fundaram o medo do desconhecido. No nosso caso, o medo de nós mesmos.
Porém, tratar de representatividade ainda é visto por uma boa parte do público como “forçar uma pauta”. Mesmo levando em conta que há pouco mais de cinquenta anos atrás o Código Hays estava em vigência, ainda existe uma resistência grande ao ver qualquer minoria tomando algum destaque.
Seja no horror ou em Star Wars e Doctor Who. Dar de cara com isso é perceber que regredimos. Há um avanço tecnológico e uma abertura no debate de pautas sociais, mas ainda vivemos em uma sociedade em que as metáforas e subtextos referentes à sexualidade através da história não ficaram tão evidentes como deveriam.
Encontrar em A Noite dos Mortos Vivos, a representação de um embate racial, deveria ser algo natural. Assim como o romance em A Filha de Drácula, as referências ao HIV em Def by Temptation, o medo da puberdade e desejo sexual em Ginger Snaps, o incômodo de não se ver no próprio corpo em O Massacre da Serra Elétrica.
A lista de referências e debates presentes no mundo do terror é extensa, mas, por que não ter sido explícito, significa que não existia? Entre sangue e tripas nas telas de cinema, o maior horror é perceber que, mesmo sendo o gênero da transgressão, ainda caminhamos devagar para encontrar mudanças no público que o consome.
Talvez, a melhor pessoa para concluir esse pensamento, que tenta encontrar orgulho em ser minoria em um gênero que é minoria, seja Clive Barker, criador de Hellraiser:
“O horror costuma ser reacionário. É sobre retornar ao status quo — o monstro é um ‘de fora’ que deve ser expulso do ‘santuário’. Mas, diversas vezes, eu tento colocar monstros que vem ‘de fora’ e que convidam alguém a se juntar a eles em seu ‘santuário’.”
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