Opinião: Como Better Call Saul conseguiu ser melhor do que Breaking Bad
Opinião: Como Better Call Saul conseguiu ser melhor do que Breaking Bad
O pupilo superou o mestre!
Atenção: Alerta de Spoilers!
Imagine um ringue de luta. Enquanto o público vai à loucura nas arquibancadas, dois homens se aproximam do clássico tablado cercado. A dupla não é nada convencional, mas promete um espetáculo dos bons: de um lado Walter White, um professor de química que, nas horas vagas, dedica seu tempo à construção de um império de drogas, e do outro, o carismático Saul Goodman, um advogado famoso que consegue impedir qualquer um de ver o sol nascer quadrado. Quem leva a melhor?
Analogias à parte, é praticamente um consenso entre aqueles que acompanham o universo das séries que Breaking Bad faz parte de um seleto grupo de programas que podem ser considerados como uma verdadeira obra-prima. Criada por Vince Gilligan, a história da transformação de Walter White, que é interpretado brilhantemente por Bryan Cranston, no temível Heisenberg conseguiu estabelecer um padrão altíssimo na indústria televisiva, elevando ainda mais a maneira como as séries de TV eram feitas, especialmente em um cenário onde os serviços de streaming começavam a se tornar cada vez mais populares.
Diante de toda a aclamação entre a crítica e o público, não demorou muito para que a equipe por trás de Breaking Bad resolvesse expandir esse universo. Com a série de Walter White devidamente finalizada em 2013, Gilligan e Peter Gould, roteirista que também estava envolvido com o programa original, uniram-se para criar o spin-off Better Call Saul. A premissa? Contar a história de Saul Goodman, o advogado trambiqueiro que passou por poucas e boas ao lado de White em Breaking Bad.
À primeira vista, o projeto parecia destinado a permanecer para sempre nas sombras de sua antecessora. Afinal, como é que uma série protagonizada por um personagem secundário de Breaking Bad poderia ao menos chegar aos pés do seriado original? Bem, Better Call Saul não só chegou aos pés de Breaking Bad como também conseguiu a proeza de superá-la, apresentando uma jornada ainda mais coesa e eletrizante do que sua antecessora.
Sim, Breaking Bad realmente é uma ótima série e conta com excelentes performances e momentos interessantes, mas, muitas vezes, ela é demasiadamente superestimada. É claro que isso não apaga a qualidade do seriado, mas tratá-la como a última bolacha do pacote não é o melhor dos caminhos. Isso porque, em um mundo onde séries como Família Soprano e A Escuta existem, limitar-se a Breaking Bad é perder a oportunidade de explorar o genuíno auge da indústria televisiva.
Mas voltando ao ringue de luta em questão. A primeira temporada de Better Call Saul teve início em 2015, dois anos após a emblemática conclusão de Breaking Bad. Com o ator Bob Odenkirk reprisando seu papel na série, conhecemos uma outra faceta de Goodman, alguns anos antes dos eventos narrados no programa de Walter White, quando ele era conhecido por seu nome de batismo, Jimmy McGill.
Nessa época, Jimmy exercia sua função como advogado, mas sem grandes realizações. A grana era curta, as ligações de clientes nunca chegavam e a única relação significativa que ele tinha era com seu irmão mais velho, Chuck (Michael McKean).
Chuck era tudo aquilo que Jimmy queria ser: um advogado bem-sucedido e respeitado por todos, mesmo quando ele precisou se afastar da empresa devido à condição psicológica que o fazia sentir dor por causa da eletricidade. Jimmy, em sua maior pose de bom samaritano, fazia questão de ajudar o irmão, tornando-se fundamental para a sobrevivência de Chuck.
A irmandade entre Chuck e Jimmy é apenas um dos fatores que influenciaram a criação da persona “Saul Goodman”. A própria maneira como Jimmy se dispõe a ajudar Chuck, acreditando ser o único capaz de fazer isso, embora o irmão mais velho vivesse dizendo que poderia contratar alguém para realizar tais tarefas, demonstra como Jimmy sentia uma enorme necessidade de aprovação.
E o mais interessante de tudo isso é que Better Call Saul conseguiu estabelecer seu próprio universo sem usar Breaking Bad como uma muleta. É claro que a ponte entre as duas séries foi criada, afinal, além do protagonista, temos diversos personagens da série original no spin-off, como Mike Ehrmantraut (Jonathan Banks) e Gustavo Fring (Giancarlo Esposito). A questão é que Better Call Saul tirou as rodinhas da bicicleta e partiu em uma jornada ainda mais intrigante e sutil do que sua antecessora.
Se Vince Gilligan já apresentava uma enorme competência em Breaking Bad, em Better Call Saul ele retornou ao universo mais afiado do que nunca. A maneira como Gilligan e Peter Gould construíram Jimmy McGill/Saul Goodman é, e peço licença para usar uma expressão clichê, uma verdadeira aula de como desenvolver um personagem tão complexo quanto esse anti-herói que conhecemos lá em Breaking Bad.
É intrigante ver como Saul Goodman foi de “aquele advogado engraçado de Breaking Bad” para uma figura com camadas bem mais trabalhadas do que Walter White. Embora a fórmula seja similar, a transformação de Walter em Heisenberg parece menor perante a complexidade que os criadores da série derivada conseguiram incluir na trajetória de Jimmy McGill, algo que é feito de maneira tão sutil que você precisa estar de fato prestando atenção para compreender todas as nuances.
Enquanto Breaking Bad, muitas vezes, apoiava-se no brilhantismo de Bryan Cranston ao interpretar o professor de química e nas reviravoltas eletrizantes, Better Call Saul corria para o lado oposto. Não que a performance de Bob Odenkirk seja inferior, muito pelo contrário, o ator é excelente na pele de Jimmy McGill. O que distingue as duas nesse quesito é que a série derivada é mais paciente e preocupada em aprofundar seus personagens do que recorrer a outros artifícios de narrativa apenas para chocar o público.
Além disso, a forma como as personagens femininas são apresentadas em Better Call Saul nem se compara ao que temos em Breaking Bad. Skyler White (Anna Gunn), a esposa de Walter, é até hoje incompreendida – e hostilizada de forma injusta e misógina – por uma grande parcela de entusiastas da série original.
A aversão às atitudes de Skyler na série, que sempre batia de frente com as atrocidades que White cometia, foi reconhecida por Vince Gilligan, em entrevista ao The New Yorker. Além de afirmar que “quanto mais se distancia de Breaking Bad, menos simpatia tem por Walter”, o criador admitiu que a narrativa da série original, construída sob o ponto de vista de Walter, encorajou as reações negativas sobre Skyler e os frequentes ataques destinados à atriz Anna Gunn.
Afinal, por que raios estaríamos torcendo por um cara que tem um ego maior do que a Via Láctea, é egoísta e completamente obcecado por si mesmo? É claro que essa é a magia dos famigerados anti-heróis, o próprio Saul Goodman é um. A diferença é que, se por um lado Walter White é um ser humano odioso e, basicamente, um monstro, Jimmy até pode ter seus (muitos) defeitos, mas no final das contas, a compaixão que ele tem dentro de si sempre fala mais alto.
Percebemos isso a partir de sua relação com Kim Wexler (Rhea Seehorn). Diferente da forma como Skyler foi incluída na narrativa de Breaking Bad, o olhar de Jimmy não desmerece Kim e seu protagonismo em Better Call Saul.
É ao lado de Kim Wexler que nós passamos a conhecer ainda mais quem é Jimmy McGill. Se com Chuck ele é capaz de chegar ao fundo do poço para pedir sua aprovação, Kim consegue retirá-lo de lá de um jeito triunfal. Separados, eles estão bem. Mas juntos são capazes de conquistar qualquer coisa que desejarem.
Não é à toa que o último episódio de Better Call Saul resumiu aquilo que a série é: isso é uma história de amor (leia na voz de Phoebe Waller-Bridge em Fleabag). Mesmo que já não estivessem mais juntos, Jimmy desiste de concluir seu último esquema para não ficar tanto tempo atrás das grades apenas para proteger Wexler, como um último ato de redenção. A questão aqui não é quem tem a melhor personalidade, mas não dá para não questionar: em que mundo Walter White faria algo assim?
Desde o começo, nós já sabemos, em partes, qual é o destino de Jimmy/Saul/Gene (ou seja lá como você queira chamá-lo) depois da última temporada de Breaking Bad. Ainda assim, Better Call Saul é tão surpreendente na construção de sua narrativa que consegue surpreender mesmo quando conhecemos o final. E faz isso sem se apoiar em artifícios baratos, prezando sempre pela paciência e a atenção aos detalhes.
No fim, toda essa comparação entre Breaking Bad e Better Call Saul pode até parecer injusta e redutora. Entretanto, distanciar-se de Breaking Bad (e do feitiço de Walter White) é uma maneira de enxergar como Vince Gilligan e Peter Gould conseguiram aprimorar suas habilidades de contadores de história ao longo dos anos, mudando aquilo que precisava ser modificado e acrescentando novos elementos para expandir ainda mais a franquia iniciada em 2008.
Foi assim que eles, juntamente com uma equipe talentosa por trás, colocaram Saul Goodman no centro dos holofotes e apresentaram uma das construções de personagens mais consistentes da indústria televisiva. O que parecia uma ideia arriscada no começo, na verdade, superou as expectativas, e o pupilo, enfim, superou o mestre. É por isso que, como dizia o tal advogado carismático e bom de lábia, é melhor mesmo chamar o Saul.
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