Opinião: O Batman de Matt Reeves é uma farsa, mas de um jeito bom
Opinião: O Batman de Matt Reeves é uma farsa, mas de um jeito bom
Novo filme questiona os paralelos entre o milionário vigilante e a ideia de cidadão de bem, com requinte de psicologia clássica.
Atenção: Alerta de Spoilers!
Batman, o novo filme do Homem-Morcego, traz uma nova visão sobre o tão idolatrado Cavaleiro das Trevas. Entretanto, ao invés de perder tempo recontando uma história lentamente construída ao longo de diversas encarnações, o diretor Matt Reeves decidiu seguir por um caminho diferente. O Bruce Wayne de Robert Pattinson vem para destruir o mito do Batman.
No momento em que as luzes do cinema se apagam, o Batman é uma farsa. Mas quando elas se acendem novamente, ele é um herói.
Eu sou a Vingança
Em um filme tão preocupado em “desmascarar a verdade” sobre Gotham, não tinha como o roteiro fugir da questão que ronda as discussões mais acaloradas sobre o herói — podemos considerar um milionário mascarado que age acima da lei como um mocinho? A resposta tem muito mais nuances do que alguns gostariam e o argumento do filme se esconde nessa penumbra de moralidade.
Recheado de monólogos, em que Bruce Wayne reflete de forma bastante introspectiva sobre o papel do Batman na sociedade, o filme abre sua discussão reconhecendo a simbologia do vigilante no imaginário popular: ele é o medo, que se esgueira em cada sombra. A força silenciosa de justiça que funciona mesmo onde as instituições falham. “Eu sou a Vingança,” declara o herói para instigar pânico em seus inimigos. Uma frase perigosa demais para ser dita de forma leviana.
Afinal, a vingança é a justiça dos cegos. Uma resposta imediata e impulsiva a problemas complexos e desconfortáveis, geralmente oferecida não para solucionar uma questão, mas sim mascará-la. Vingança é a arma de programas televisivos sensacionalistas que instigam a população contra a trivialidade dos crimes cotidianos, enquanto encobre uma ampla gama de corrupção. E de corrupção, as instituições de Gotham estão cheias.
O esgoto da sociedade
A ruína das instituições de Gotham é o pilar para o desenvolvimento do filme. O clima de instabilidade política é representado pela corrida pela prefeitura de Gotham. Há um candidato oferecendo a manutenção do status quo, enquanto outra prega renovação. Mas para o povo, nenhum dos lados é confiável. Neste cenário, o Batman surge como um elemento anti-establishment, um agente de verdadeira mudança que não liga para as regras. E a gente sabe o quão perigoso é isto.
Outra instituição em amplo declínio é a Polícia de Gotham, que ganha uma importância que permeia o grande mistério do filme. Afinal, quando um novo serial killer ameaça a paz da cidade, os homens de azul são incapazes de dar um fim à ameaça. Pelo contrário, cada pista desvendada pelo Batman, junto a Jim Gordon, mostra que a instituição está intrinsecamente ligada ao crime. A própria polícia é uma ameaça.
E quando a política falha e a milícia ganha força, extremistas se sentem cada vez mais confortáveis em agir. Assim, surge o Charada. Não como o epítome de todo mal, um típico vilão. Mas como o símbolo de um movimento. Este psicopata que ataca os poderosos é um reflexo desconfortável, barulhento e impossível de ignorar do autodeclarado herói de Gotham, o Batman.
A cada nova cena perturbadora de crime que o vigilante sombrio precisa investigar, o desconforto por debaixo da máscara fica mais aparente. O assassino sempre deixa um bilhete endereçado especialmente ao herói e a possível motivação para esta relação tão íntima entre a dupla perturba profundamente Bruce Wayne. Tanto quanto as verdades que o personagem descobre a cada pista desvendada.
A heroína da sarjeta
E uma destas pistas coloca este mistério sangrento entra em rota de colisão com a vida injusta de Selina Kyle, a Mulher-Gato. É então que os problemas na concepção do Batman, como um conceito, ficam ainda mais escancarados. Ele alimenta uma ideia de justiça da qual ele não concorda. Ele apenas não chegou a esta conclusão ainda.
Interpretada por Zöe Kravitz, a personagem é introduzida trabalhando em um bar suspeito operado pelo Pinguim. Em um primeiro momento, ela parece ser apenas outra oportunidade para avançar a investigação do maior detetive do mundo, mas a situação acaba sendo mais complicada do que aparenta.
Longe de ser inocente, Selina representa o rosto das pessoas comuns que precisam sujar as mãos e quebrar uma unha para sobreviver em uma cidade corrupta. Ela aprende na prática que moralidade surge de um lugar de privilégio e não perde uma oportunidade de expor a hipocrisia do julgamento de valores de Bruce. O bar que financia o narcotráfico local, na qual ela trabalha, é financiado pelos vícios de “cidadãos de bem”. Palavras dela, que não usa por acaso.
Conforme Selina convive mais com Bruce, mesmo sem saber sua verdadeira face, a anti-heroína não hesita em arranhar o ego do bilionário, enxergando cada falha em sua identidade com seus olhos de lince. A facilidade com que o Batman tem em julgar os métodos da mulher para conseguir dinheiro lhe revelam uma verdade inevitável — por debaixo de toda aquela armadura, e discurso de servir o povo de Gotham, o Batman é apenas um rico excêntrico.
E ao chegar a esta conclusão, a Mulher-Gato não perde tempo em colocar seu parceiro contra a parede. O Charada, até aquele momento, tinha um tipo específico de alvo: homens brancos e ricos que lucram com a desigualdade socioeconômica de Gotham. E entre sua lista, estão Thomas e Bruce Wayne. Ao declarar ser a vingança que limparia a cidade, o Batman não percebia estar defendendo um sistema articulado para esconder a corrupção que lhe beneficiava. Até este momento, Batman não é um herói, é um agente do privilégio. No auge de sua arrogância, o Batman é uma farsa.
A farsa do Batman
A motivação do herói nunca foi sincera. Ele não acreditava, no fundo, que Gotham precisava ser salva — esse era o sonho de seu pai. O plano de resgate de Gotham era algo muito pessoal para Thomas. Para Bruce, era apenas esta crença era apenas uma forma nada saudável de lidar com o luto. Ele apenas assumiu o manto de vigilante para vingar a morte de seus pais.
Então quando Falcone confirma a sujeira por trás do imaculado Thomas Wayne, Bruce começa a questionar a própria existência do Batman. Se seu pai não lutava pelo que é certo, por que ele deveria? Gotham merece um herói? Ele, que deveria pagar pelos pecados de seu pai, merecia ser o Batman? Afinal, por qual causa lutava Bruce Wayne? Vingança? Justiça?
Analisando este ponto tão crucial, Matt Reeves destrói o mito do Batman. O próprio Bruce Wayne aceita que esteve errado em seus primeiros anos sob a máscara de morcego. Ele não era um herói ainda. Era apenas um menino machucado, traumatizado, que precisava desapegar do passado. Ao aceitar isso e começar a se criticar, Bruce está pronto para construir o verdadeiro Batman — um herói.
Duas caras de uma mesma moeda
Algumas cenas depois, Charada acaba se entregando para colocar sua jogada final em ação e Bruce tem a oportunidade de ficar frente a frente ao vilão. Enfim chegou o momento de entender as motivações deste psicopata tão cruel. Bruce encara o abismo, mas não gosta do que vê.
Em primeiro lugar, ele precisa aceitar que diferente de Selina, que precisou se virar sozinha como órfã, e do Charada, que enfrentou um sistema sucateado de orfanato, Bruce não tem plena noção do que é ser invisível para a sociedade. Cresceu em berço de ouro, blindado pelo privilégio. Sua infância foi no alto de uma torre, com uma fortuna bilionária, olhando de cima para o povo de baixo.
Ele não tinha culpa de sua herança, mas não poderia negar o seu impacto na sua criação. Bruce poderia facilmente ter virado o Charada em outras circunstâncias e se enxergar neste outro, neste criminoso que tanto abomina, lhe assusta.
Para o seu horror, todas as façanhas do vilão foram endereçadas ao herói porque o Charada enxergava nele, devido a essa sincronicidade, um aliado, um cúmplice, um igual. Foi o Batman que permitiu o interrogatório ao promotor corrupto em praça pública. Foi ele quem conseguiu tirar Falcone, aparelhando a própria polícia de Gotham, de sua rede de proteção. Para todos os efeitos, eles trabalhavam juntos. Em sua mente, ambos lutavam pelo mesmo objetivo — o fim da corrupção.
Pode parecer absurdo, mas existe um raciocínio lógico, um fio de sanidade. No fundo, aqueles ideais de mudança e insatisfação desregrada que o Batman vinha representando em Gotham foram o que motivou o vilão a sair das sombras. O Charada é uma criação do Batman.
Este é apenas um cidadão de bem incentivado a se armar pelo governo que decidiu tomar a justiça nas próprias mãos. A única diferença é que uma vida às margens da sociedade roubou qualquer princípio que a vida de mordomias do órfão Wayne poderia proporcionar. Dada as devidas oportunidades, o Charada poderia ter se tornado o Batman.
Torne Gotham grande de novo
Mais que um homem, o Charada é um ideal que contamina. Em um momento tão sombrio para a cidade, alguém que lute pela família, pelos costumes e contra a corrupção rapidamente atrai seguidores. Quando a cidade está no seu ponto mais baixo, Batman ainda surge para espalhar o medo. Parafraseando o próprio Pinguim, Oswald Cobblepot, o medo leva pessoas de bem a cometerem atos terríveis. E é precisamente isto que acontece na história, assim como aconteceu também no mundo real.
A arte é um reflexo do contexto histórico e político em que foi produzida e não seria diferente com The Batman de Reeves. Produzida durante o declínio do governo Trump, o filme alerta para os perigos destes ideais rasos, que se espalham em fóruns privados da internet e armam pessoas comuns, alimentadas pelo medo e inflamadas por um líder carismático, mas irresponsável. Na vida real, foi Trump e seus similares. No filme, o Charada.
O ato final soa como uma elaborada alegoria a Invasão ao Capitólio que aconteceu em janeiro de 2021, alguns meses antes do final das filmagens. Ambos envolvem pessoas armadas instigadas por um líder omisso, que se recusa a aceitar sua derrota, a atacar a posse de um governante democraticamente eleito. Pode ter acontecido uma alteração no roteiro para fortalecer a alegoria, mas a proximidade do ataque torna isto improvável. Acaba que as semelhanças podem ser apenas coincidências, o que torna ainda mais peculiar e assustador como a realidade imita a ficção.
Eu sou a sombra
Enquanto enfrenta seus inimigos, que agora são apenas cidadãos comuns, cidadãos de bem, o Batman é forçado a confrontar de perto o resultado de seus ideais irresponsáveis. “Eu sou a Vingança,” declara um dos capangas ao ser detido, mostrando como aquela mentalidade puramente punitiva era perigosa. Isso não é justiça. Isso é ódio.
Neste momento, Bruce tem uma grande catarse, que poderia ser explicada com as ideias do psicanalista Carl Jung. Ele estabelece um conceito de Sombra, que em termos gerais, é aquela parte nossa que temos medo de reconhecer e escondemos no escuro do no nosso subconsciente. Jung explica que temos uma grande facilidade enxergar este lado sombrio nos outros. Bruce sempre via nos criminosos o mal que ele desejava enfrentar, quando no fundo este mal também era parte dele. Ele era a vingança, não a resposta.
Depois de reverter esta crise com muito custo, graças aos esforços coletivos da Mulher-Gato e Jim Gordon, o Batman emerge como um novo tipo de herói. Como um reflexo, ele salta das alturas — representando o alto de seu privilégio que Charada havia exposto — para ficar na mesma altura das pessoas que ele prometeu salvar. Ele estava enfim se colocando, fisicamente, no mesmo nível dos conterrâneos de Gotham.
Desta vez, ele não está mais interessado em instigar o medo em uma população já tão fragilizada após anos de corrupção e violência. Bruce enxerga um novo caminho — de liderança.
Eu sou a Esperança
A cena seguinte é bastante simbólica. Carregando um sinalizador, o Batman parte para o resgate, em um enquadramento quase religioso. Primeiramente ele estende a mão ao órfão da primeira vítima do Charada, simbolizando um resgate do futuro. A história de vida do garoto é muito parecida com a do jovem Bruce, então resgatar o menino funciona como uma conciliação com seu passado, ao mesmo tempo que protege o futuro da cidade: a próxima geração.
A segunda pessoa que recebe a ajuda de Batman é a nova prefeita, eleita democraticamente, Bella Réal. O roteiro deixa claro que esta é uma agente política verdadeiramente comprometida com o serviço ao povo, mas Charada e seus capangas não confiaram em sua mudança e preferiram propor a sua própria renovação — reforçando a ideia de uma figura anti-establishment.
O próprio Bruce Wayne passou grande parte do filme ignorando os diálogos com a recém-eleita prefeita, por não confiar nas instituições da cidade. Mas, neste momento, ele resgata a prefeita, fazendo as pazes com as instituições.
A partir deste instante, ainda com o sinalizador em punhos, o Batman lidera um grupo de cidadãos perdidos e desalojados pelo escuro. Se no filme ele afirmava que não vivia nas sombras, “Eu sou as sombras”, o símbolo de morcego se tornou luz. Se antes ele instigava medo e desconfiança, agora o último Wayne era um líder para o povo. Assim, demonstrando uma compreensão mais profunda de sua verdadeira missão, o Batman assume um novo mantra. É quase como se ele olhasse para o espectador e dissesse: “Eu sou a Esperança”.
Em tempos de incerteza, em Gotham, nos Estados Unidos e no Brasil, parece apropriado que o super-herói mais conhecido do mundo assuma uma postura mais engajada, otimista e altruísta. Se antes Bruce lutava por sua vingança pessoal, por um luto banhado nas proteções da classe mais rica, o herói assumiu o compromisso de usar a sua rede de privilégios em prol dos menos favorecidos, para os interesses do povo.
Na era de Zack Snyder era o Superman que carregava a chama da esperança, exibindo orgulhosamente o S em seu peito. Mas era uma esperança divina, distante, que beirava o conceito de fé. A proposta de Matt Reeves é construir na imagem do Batman uma esperança mais concreta.
Quando o povo enxergar o símbolo do morcego na noite escura de Gotham, não vão enxergar o medo, mas a certeza que existe alguém lutando por eles. The Batman constrói, no símbolo do morcego, uma esperança mais humana, frágil e que exija um esforço diário para ser mantida, mas também pela qual vale a pena lutar.
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