Entre Marvel e DC: Brasileiro Tinta Negra fala sobre suas experiências com o mercado da ilustração
Entre Marvel e DC: Brasileiro Tinta Negra fala sobre suas experiências com o mercado da ilustração
Conversamos com Mateus Manhanini, ilustrador brasileiro que estampa as capas das grandes editoras de heróis
Desde o início da pandemia, temos olhado de forma diferente para as redes sociais. Entre uma forma diferente de se conectar em momentos de solidão e se distrair em meio ao caos, demos um olhar mais atento à arte. Presos nas mesmas paredes e paisagens, alguns artistas foram cruciais para que saíssemos da mesmice.
E, entre tantos que coloriram o feed de diversas pessoas, Mateus Manhanini, também conhecido como Tinta Negra, conseguiu transcender a barreira do digital e chegar até as capas de quadrinhos da Marvel e DC. Conhecido por usar a cor para construir uma narrativa única, o artista conversou com a Legião dos Heróis sobre as dificuldades e conquistas no mercado editorial.
“Eu sou ilustração”
Carioca, negro e dizendo que é ilustração, Mateus encontrou seu estilo em um projeto pessoal. Em um desafio das redes sociais em que era proposto criar super-heróis negros, Tinta Negra fez Akil, um personagem inspirado em um símbolo da cultura do carnaval suburbano carioca: o Bate-Bola.
“Foi a primeira vez que testei meu approach experimentalista nas cores e texturas e decidi que esse seria meu estilo a partir de agora. Foi uma ilustração que me deu visibilidade e onde começou de fato minha trajetória artística profissional”, explica com orgulho.
Mal sabia que esse seria o pontapé inicial para transformar um sonho de criança em algo real: se tornar ilustrador profissional. E, entre ser convidado a fazer ilustrações testes para a Marvel e construir um portfólio repleto de heróis negros, o primeiro trabalho oficial com as editoras foi para a capa variante de Marvel’s Voices: Comunidades #1. Nela, o artista teve a oportunidade de ilustrar América Chavez, heroína que tem ganhado destaque nos últimos meses devido a Doutor Estranho no Multiverso da Loucura.
“Nunca vou esquecer a sensação que foi o convite para fazer as ilustrações testes e depois sendo oficialmente convidado a fazer capas principais e variantes. De vez em quando eu paro e penso: “Nossa, eu realmente trabalho com isso, é?! Bizarro” Eu sinto que as maiores surpresas da nossa vida vem de lugares que jamais esperamos e estar trabalhando com quadrinhos é definitivamente uma dessas surpresas pra mim. Cada capa é uma nova aventura, é uma nova onda, e eu quero explorar muito desse mar ainda!”, o artista disse quando perguntado sobre se já havia se imaginado trabalhando com a Marvel e DC.
Mesmo que ainda exista incredulidade em perceber o quanto caminhou no mundo da arte, a verdade é que o sonho sempre esteve presente na vida de Mateus. Descrevendo a casa onde cresceu como um lugar onde ter lápis e papel espalhados era a coisa “mais normal do mundo”, o ilustrador sempre se viu nesse lugar quando perguntado sobre qual seria sua profissão. “Desenhista profissional”, respondia.
Como é ser negro e artista
Porém, mesmo com as suas conquistas na área, arte continua sendo um tópico delicado para o Brasil. Entre cortes nos setores culturais e uma pandemia que comprometeu a renda de 42% dos artistas brasileiros, de acordo com o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, “viver de arte”, às vezes, parece impossível.
Mesmo que não se veja como uma influência negra, Mateus representa esse sonho se tornando possível: da negritude ocupando espaço em todo lugar, inclusive na cultura pop. O trabalho de Manhanini é apenas a ponta do iceberg, de diversos outros profissionais que tem construído essa ponte. O projeto Anime DICRIA, a Perifacon e até a adaptação de Pantera Negra são constantes lembretes de que crianças pretas podem sonhar com o que quiserem, inclusive em se tornarem protagonistas de suas histórias.
#artvsartist2021
done things and reached places I never imagined. Thanks to everyone who was here in 2021! 🧡 pic.twitter.com/jk72l3i6fu— Mateus Manhanini (@tintanega) December 7, 2021
“Fiz coisas e cheguei a lugares que nunca imaginei. Obrigado a todos que estiveram aqui em 2021”, diz Manhanini em seu Twitter.
“Por mais que essa carga de “ser uma referência” ainda pareça “muita areia pro meu caminhão”, alivio a pressão tendo a segurança de que estou sempre dando o melhor de mim para que crianças e adolescentes pretos, como eu fui um dia, vejam que existem vários artistas pretos por trás dessas páginas tentando trazer um pouco mais de visibilidade pras nossas vivências a partir do nosso próprio olhar”.
Em um universo que apenas agora está olhando para corpos e identidades que não sejam apenas brancas e masculinas, o olhar diferenciado de uma pessoa racializada se torna um ponto determinante para criar identificação — característica que está estampado nas artes de Tinta Negra. Já tendo ilustrado o Sam Wilson, o Capitão América, Miles Morales e Timothy Fox, o Batman, é possível notar em suas cores e traços a importância desses símbolos negros para a cultura nerd e para o próprio Mateus.
Como ele explica, em suas artes, vemos como ele tenta honrar suas raízes e tornar isso uma potencialidade para destacar seu trabalho. Muito além de um trabalho “representativo” ou dar destaque ao movimento negro para parecer “progressista”, a arte de pessoas como Tinta Negra demonstram como é possível reunir toda essa existência conturbada que é ser negro e transformar em arte.
“Nós, como pessoas pretas, temos vivências, referências, culturas e formas de enxergar nossa realidade de formas distintas das pessoas brancas. No momento que você consegue transportar essas particularidades na folha de papel e adequá-las à sua média de trabalho, você já tem um ponto diferencial. É um ponto muito importante porque você honra suas raízes ao mesmo passo que se destaca no meio da multidão.”
E fazer essa transição não é fácil. Entre racismo e precisar evidenciar suas dores diariamente, colocar tudo isso no papel é um trabalho mágico, algo que Mateus tem bastante conhecimento sobre.
Utilizando suas cores vibrantes como fio condutor para seu portfólio, o artista explica como é diverso o universo dos quadrinhos, permitindo-lhe brincar com os personagens, mas respeitando seu design original. Usar seu estilo para trazer o foco para o personagem. Tudo isso sob a sua principal regra: explorar.
A exploração como fio condutor
Característica que, infelizmente, não é tão incentivada na infância negra. Com tantas preocupações, o permitir ser você mesmo, às vezes, é deixado de lado. Quadrinhos, desenhos, brincar se torna uma vontade e não uma busca pela construção da sua identidade. Para algumas crianças, investigar o que gosta e o que gostaria de ser e fazer se perdem com o passar dos anos.
“Eu e minha família vivíamos bem, mas sem luxos, portanto comprar quadrinhos mais refinados e caros era algo que acontecia eventualmente, o que fez com que eu guardasse esses quadrinhos com muito carinho até hoje”, comentou.
Essa investigação podada leva a jovens escolherem pelo “convencional”, o que conhece, o mais simples de se alcançar quanto a sociedade te poda de sonhar. Mesmo sendo exceção à regra de diversos jovens negros que não chegam a concluir o Ensino Médio ou que conseguem transcender a barreira da escolaridade e chegam ao Ensino Superior, a escolha de graduação de Mateus também reflete esse “podar social”.
Graduado em Arquitetura e Urbanismo, o rapaz encontrou nesse plano B, uma forma de unir o útil ao agradável: sobreviver e desenhar. Porém, na primeira oportunidade, transformou a ilustração no foco de sua profissão.
Ainda digerindo essa nova realidade, Tinta Negra leva Ororo Munroe, a Tempestade, no coração. “Ela foi a primeira heroína negra a integrar a equipe principal dos X-Men, não tem como eu não ter ela no topo da minha lista”, diz após comentar que, de vez em quando, fica pensando nas variadas formas de como poderia usar os poderes da personagem em seu dia-a-dia.
Mas, entre tantas mensagens otimistas, o que Mateus Manhanini parece deixar nessa conversa é um convite para olhar de forma mais humana para a arte e o artista. Em uma época de NFTs e polêmicas de Twitter, o que parece faltar é colocar os debates sobre representatividade em prática. Em outras palavras, apoiar essas estrelas negras em ascensão.
“Ainda teremos muito trabalho a ser feito para atingir níveis de igualdade devidos. Um ponto importante para mim e para diversos colegas de profissão é como a internet pode ser um aliado na divulgação profissional. Não apenas para visibilidade do público geral, mas para conseguir contatos nacional e internacionalmente”.
Olhando o portfólio de Tinta Negra, “Black Excellence” (ou Excelência Negra, em tradução literal) parece ganhar um novo significado. Não apenas quando tratamos para a habilidade do artista, mas o seu posicionamento em criar narrativas inclusivas. E, mesmo não percebendo, construindo degraus para que outros artistas cheguem onde ele tem chego e além.
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