De Gavião Negro a Will Smith: Afinal, por que negros ricos incomodam?
De Gavião Negro a Will Smith: Afinal, por que negros ricos incomodam?
Desde Pantera Negra, a hierarquia de poder está mudando nos cinemas
Além do anti-herói árabe, Adão Negro introduz um novo grupo de heróis: Senhor Destino, Ciclone, Esmaga-Átomo e Gavião Negro — a Sociedade da Justiça do Universo DC. Os roteiristas tomaram certas liberdades ao adaptar cada personagem dos quadrinhos às telas, mas infelizmente o que causou mais comoção nas redes, no último final de semana, foi a singela mudança de etnia de Carter Hall. O homem rico que lidera a equipe é negro, um detalhe que passaria batido se não fosse um comentário infeliz em um vídeo que viralizou. Mas afinal, por que negros ricos incomodam tanto?
Quem tem cara de rico?
Essa grande resistência em aceitar pessoas negras como parte da elite financeira do mundo, seja ele real ou fictício, não é alimentada pelo próprio filme em momento algum. Hall, vivido por Aldis Hodge, é introduzido como tendo uma inquestionável fortuna desde a primeira cena.
O herói começa o filme em sua mansão, altamente tecnológica. Aparece por escrito na tela que o lugar lhe pertence, para não ter sombra de dúvidas. E ainda assim teve gente imaginando que o lugar luxuoso só poderia pertencer a alguém como Kent Nelson, o Sr. Destino de Pierce Brosnan, que é branco, rico e tradicionalmente elegante, mesmo que não houvesse nenhuma evidência no roteiro que deixasse o mínimo espaço para essa interpretação.
Tal olhar suspeito muitas vezes não surge de um lugar de maldade e sequer é consciente por parte de muita gente, mas é a manifestação de uma das formas mais cruéis de racismo — o racismo que machuca sem ninguém ver. Não é uma agressão óbvia, como um soco ou um xingamento, o que torna mais difícil de quem não sofre identificar ou sequer entender. Mas é uma agressão mais profunda, é uma afirmação de que pessoas negras não pertencem a lugares de destaque, não importa o quão lutem pela ascensão social.
Quando a vítima é apenas um personagem de um filme é uma coisa, mas essa mesma mentalidade transborda o tempo todo para o mundo real. Não faltam casos de grande notoriedade de infelizes incidentes do tipo, mas a maioria acontece no cotidiano e nunca é reportado. É a pessoa negra que é confundida em uma loja como vendedor, mesmo com as roupas mais casuais possível. É a pessoa negra para quem pedem café em uma reunião, sem saber que estão falando com o diretor de outro departamento.
No Brasil, algo semelhante aconteceu recentemente envolvendo a cantora Luísa Sonza (via Extra), que confundiu uma mulher negra com dinheiro o suficiente para estar assistindo o seu show em Fernando de Noronha com uma garçonete do estabelecimento. A reação inicial da cantora, segundo o jornal Extra, foi descredibilizar a vítima em suas redes, mas recentemente houve um acordo conciliatório reconhecendo a gravidade da situação. Na gringa, houve outro caso que chamou atenção por ser ainda mais humilhante e até irônico — o diretor de Pantera Negra, Ryan Coogler, foi preso em um banco ao tentar sacar o seu próprio dinheiro.
Nem a própria figura que revolucionou a forma como pretos são retratados nas telas do cinema está imune de ser humilhado e menosprezado pela cor de sua pele. Casos assim acontecem aos montes e provam que nem mesmo o dinheiro protege alguém de sofrer racismo. Não há escapatória, além de combater veemente quem comete essas agressões para que não voltem a se repetir.
Uma história sangrenta de roubo e exploração
A principal justificativa de quem comete essas atitudes racistas é a própria forma como a sociedade ocidental foi estruturada. Em sua declaração de desculpas, Sonza usa esse argumento, alegando que “a nossa educação, nossa sociedade e nossa estrutura inteira são racistas. Não é que nós, brancos, temos culpa do que nossos antepassados fizeram, mas a gente tem a responsabilidade de mudar essa estrutura.”
Mesmo que possa ser interpretado como uma tentativa covarde de se isentar de culpa, transferindo a agressão a uma entidade abstrata que não pode ser punida, não está muito longe da origem do problema. Se a estrutura da sociedade é racista, seus pilares são a opressão, o roubo e a exploração desses antepassados brancos. O mundo como conhecemos foi feito para enriquecer gente branca e pretos ricos são uma ameaça clara a esse sistema.
Basta assistir as primeiras cenas de Pantera Negra, de 2018, e prestar bastante atenção na história de Killmonger. Em um museu em Londres, N’Jadaka questiona a especialista local sobre como cada peça africana foi parar naquele lugar, em uma ilha na Europa à milhares de quilômetros de distância de suas tribos originais. A mulher tenta disfarçar, mas ele continua assertivo “Como seus ancestrais conseguiram isso?,” provoca, “Você acha que eles pagaram um preço justo? Ou eles tomaram, como tomaram todo o resto?”
Muito além de Wakanda, essa é uma realidade que atingiu países reais, como o Zimbábue e a África do Sul. Recentemente, esse assunto ficou em voga exatamente no Reino Unido com a notícia da morte da Rainha Elizabeth II. Além das condolências dos principais chefes de estado, os dias que seguiram a morte da monarca foram marcados por diversos protestos de irlandeses e imigrantes africanos, as principais vítimas da monarquia britânica. O grande símbolo desse passado de sangue é precisamente a coroa e o cetro da Rainha, cravejados com pedaços de um dos maiores diamantes já encontrados — Cullinan I, a Grande Estrela da África, extraído da então colônia África do Sul.
Essa é apenas uma história que ilustra como o colonialismo roubou muitas riquezas dos descendentes africanos e sustentou um império de mentiras. A verdade é que as riquezas europeias e das elites latinoamericanas foram construídas diretamente com a exploração do povo preto. O próprio continente africano foi dividido entre os colonizadores por interesses políticos, sem levar em conta as culturas e etnias que já existiam ali. Uma brutalidade que segue em vigor até os dias de hoje, causando conflitos internos, mesmo após a independência de tais países.
Quando não eram suas casas que eram saqueadas ao longo da África, eram seus homens e mulheres que eram arrastados por todo o mundo em um sequestro de suas forças de trabalho em prol do enriquecimento dos colonizadores. E esses mesmos homens brancos construíram as bases das instituições que resistem até os dias de hoje. A Independência, os termos da alforria, a Proclamação da República, a formação da Polícia, dos Bancos — especialmente em nosso país, o poder vem se propagando ao longo dos anos em defesa da hegemonia branca.
E quando mesmo a despeito de toda essa estrutura opressiva um trabalhador se organiza e consegue ascender, ele é atacado. “Eles não guenta te ver livre, imagina te ver rei,” profere Emicida na música Ismália, de seu aclamado álbum AmarElo. E nesse verso, o cantor resume bem esse sentimento de incômodo que a população negra precisa enfrentar sempre que não se encaixa na narrativa racista das elites.
Personagens negros que são pobres, escravizados ou bandidos estão espalhados aos montes por filmes e séries, mas os que são colocados como fantasiosos são exatamente aqueles ricos, independentes ou poderosos.
Onde dói o tapa?
Mesmo contra a vontade do sistema, aos poucos cada vez mais pessoas pretas conseguem subir de vida. No Brasil, a Lei de Cotas, implementada em 2012, garantiu o acesso de população negra ao Ensino Superior, criando a primeira geração de formando de muitas famílias.
O rap, funk e o hip hop, que consagram artistas como o próprio Emicida e Ludmilla, são outro meio que a população preta achou não apenas de expressar sua identidade, mas também conquistar a difícil e sonhada ascensão social. E é exatamente esses ritmos que são marginalizados como música de bandido. “Só porque venci querem que eu me sinta culpado,” declama Baco Exu do Blues na canção Sinto Tanta Raiva do álbum Quantas Vezes Você Já Foi Amado?. Quando uma pessoa negra voa muito perto do sol, como Ícaro no mito grego, há uma grande comoção das próprias estruturas para derrubá-lo.
Foi o que aconteceu, por exemplo, com o ator Will Smith durante a última cerimônia do Oscar. Ao defender sua esposa de uma piada ofensiva feita em uma transmissão ao vivo, para todo o mundo, o comediante desferiu um tapa em um colega de trabalho. E aquele simples ato foi o suficiente para voltar a elite do cinema contra ele e sua carreira, em um movimento da indústria e da imprensa de culpabilizá-lo por romper com a civilidade esperada de uma pessoa rica.
Era como se, por ser preto, fosse um apenas convidado nessa grande festa que é a alta sociedade e, no menor deslize, ele pudesse ser barrado por essa gente que apenas lhe acolheu por falar a língua do dinheiro. Enquanto isso, outros artistas brancos cometem atrocidades pelo Havaí, pela Europa e onde mais for sem a menor consequência.
A mesma cerimônia que foi palco de ataques racistas a povos originários, que acolhe e premia homens brancos acusados de pedofilia, assedio sexual e moral, promoção a tortura e outras barbaridades sem nenhuma consequência, decidiu que a reação de um homem negro merecia ser punida severamente. O que incomodou a elite do cinema, nessa situação, não foi a transgressão em si. Muitos ali são transgressores legais em outros âmbitos, afinal. O problema maior foi ter sido tão público — é a mancha moral que a brutalidade representa para a falsa civilidade que eventos desse porte fingem trazer.
Preto é Rei: Black is King
É como as pessoas que se dizem antirracista por publicar uma imagem preta no feed do Instagram, mas se tremem ao ouvir o verso de Djonga: “Fogo nos Racistas”. A existência de pessoas pretas com poder, mais do que dinheiro, desperta um medo irracional de uma possível vingança, uma retaliação pela tão antiga história da escravização, como quer Killmonger em Pantera Negra. Mas remoer o passado não é nada produtivo. O importante é entendê-lo e aprender com ele, para então decidir a melhor maneira de construir um novo futuro.
Olhando para o passado, é fácil perceber que a ideia de pretos ricos, inclusive, não é sequer recente na História da humanidade. Na Europa, o êxito comercial dos mouros, grupo composto por muçulmanos negros do norte da África, é muito bem documentado — especialmente o período em que dominaram a península ibérica que hoje inclui a Espanha e Portugal. Também existem fortes evidências que indicam que os principais líderes do Antigo Egito foram negros. Antes de receber esse nome grego, o próprio território era conhecido como Kemet, uma palavra escrita em hieróglifos que significam “terra negra” ou “terra dos negros”.
Por muito tempo, essa parte da história foi apagada por narrativas embranquecidas de Hollywood que exaltavam as conquistas dos Antigos Egípcios enquanto escondiam sua etnia. Pessoas negras sequer podiam atuar em filmes e séries estadunidense durante a vigência do Código Hays, entre a década de 1930 e 1980. Os antigos egípcios só retornaram ao imaginário popular como um povo negro mais tarde no clipe Remember the Time, do Michael Jackson, estrelado por Eddie Murphy.
Foram os grandes artistas pretos, como Michael, que assumiram o papel de reconstruir a imagem de negros ricos no imaginário popular. Nos anos 90, Will Smith trouxe para os holofotes uma família negra de Bel-Air no seriado Um Maluco no Pedaço. E nos últimos anos, Beyoncé tem sido cada vez mais incisiva em naturalizar negros em posições de poder. Primeiro, ela levou a negritude ao conceituado Museu do Louvre, no clipe de Apeshit com Jay Z. E depois, ainda teve o álbum visual Black is King, que recontou a história de O Rei Leão usando construções de culturas africanas.
No Brasil, esse processo ainda está em seu princípio, engatinhando nas novelas mais populares. A maioria dos pouquíssimos personagens negros, que costumam ser contados nos dedos no elencos dessas produções, acabam desempenhando o papel de empregadas, seguranças, bandidos ou pessoas da periferia. Cobras & Lagartos havia quebrado esse ciclo em 2006, e Amor de Mãe, de 2019, também ganhou destaque com a personagem de Tais Araújo, que era uma advogada.
Assim, aos poucos a ideia de negros ricos vai se tornando mais comum e caminhamos rumo ao desejo de T’Challa, interpretado pelo eterno Chadwick Boseman, no fim do primeiro Pantera Negra. O sonho é alcançar um futuro mais igualitário, onde racismo seja um problema do passado. Para isso acontecer, no presente “nossa gente vencer tem que deixar de ser raro”, como já diria Baco em sua tão inspiradora canção. Que Carter Hall seja apenas o começo da negritude rica na DC Studios — que venham o Batman, de Jace Fox, e o Senhor Incrível, de Michael Holt, para que todas as crianças negras possam sonhar com um futuro melhor.
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