Como Doctor Who impactou a cultura pop?
Como Doctor Who impactou a cultura pop?
Como é possível para uma série permanecer ativa por 60 anos?
Ncuti Gatwa, Jodie Whitaker, Peter Capaldi, Matt Smith, David Tennant, Christopher Eccleston. Doctor Who está repleta de figuras carimbadas do universo nerd. Sendo vista quase como um início de carreira para a comunidade de artistas britânicos, participar de Doctor Who, seja como o protagonista, alien ou companion, é uma marco na carreira. Mas como uma série com um propósito educativo atingiu esse status?
A resposta vai além de uma lógica linear e mercadológica. Pelo contrário, assim como a vida do Senhor do Tempo com dois corações, a criação de Doctor Who é conturbada, dramática e divertida.
Criada em 1963, a série de ficção científica britânica teve início com o episódio An Unearthly Child (Uma Criança Sobrenatural em tradução literal). Nele, seguimos Ian e Barbara, dois professores que estão preocupados com Susan, uma aluna. Após seguir a garota até uma peculiar cabine telefônica policial, eles descobrem que ela e seu avô são alienígenas que viajam pelo tempo e espaço.
Com um enredo mirabolante, mas execução simples, Doctor Who evidencia o primeiro ponto que dá forma ao seu sucesso: a cabine telefônica policial, também conhecida como TARDIS.
“Não há melhor demonstração do impacto cultural de Doctor Who do que a máquina do Doutor está disfarçada como um artefato que, agora, é reconhecida apenas como uma máquina do tempo”, diz Steven Moffat, antigo produtor executivo de Doctor Who.
É sobre se adaptar a situação
A ideia de transformar uma cabine telefônica em uma máquina do tempo e espaço que é maior por dentro é apenas fruto de um dos pilares de Doctor Who: adaptação e “gambiarra”.
Conceitos importantes da mitologia do Doutor foram desenvolvidos a partir de execuções simples. Inicialmente concebida como uma produção educativa — criada para “tampar o buraco da grade da BBC” —, que levaria o público para diferentes épocas e, junto, ensinaria curiosidades históricas, se tornou uma grande aventura espacial com aliens de aspecto curioso e debates filosóficos.
Outras questões, como a “regeneração” — em que o Doutor toma um novo rosto e corpo para seguir com suas aventuras — surgiu pela pura necessidade de substituir William Hartnell, a primeira encarnação, mas sem a necessidade de recomeçar do zero.
Tudo isso surgiu através do improviso. O curioso é como o Doutor também é conhecido por isso. Sua principal arma contra qualquer vilão é a improvisação. Inventar um discurso para tomar tempo ou fazer sua “mágica tecnológica”.
A ficção sem sentido de Douglas Adams
E nesse molde louco e sem sentido de Doctor Who, nessas falhas que são tão estranhas quanto atrativas, diversos artistas, escritores e músicos se inspiraram. Douglas Adams e Doctor Who, por exemplo, sofreram uma simbiose que afetou a obra de ambos ao longo dos anos.
O primeiro livro de O Guia do Mochileiro das Galáxias foi publicado em 1979, quatorze anos após a estreia de Doctor Who. Nessa época, a produção estava em uma crescente por conta de uma das encarnações mais populares da série clássica, Tom Baker.
Também responsável por um dos Doutores mais irônicos, carismáticos e com um pé na comédia de Monty Python. Porém, um ano antes, Adams havia escrito alguns roteiros para Doctor Who. O tom louco das duas obras não era pura coincidência, mas proposital. E, queira ou não, os dois definiram a ficção científica britânica.
“A primeira história que Douglas escreveu para Doctor Who, The Pirate Planet, havia acabado de ser transmitida, e eu havia percebido algo de peculiar nela, ou melhor, no efeito que produzia nas pessoas. Sim, a série estava mais ousada e até mais colorida e extraordinária do que a maioria das histórias, mas não era só isso. Em geral, a reação de minha família no que dizia respeito a Doctor Who variava entre o desprezo brando e a total ridicularização, mas daquela vez, era como se tivessem ‘entendido’. Estavam rindo com a série, e não da série”, explica o escritor Gareth Roberts no posfácio de Shada, roteiro perdido de Adams para Doctor Who.
Nada de pânico
Muito diferente das produções americanas da época, Doctor Who sempre sofreu com um grande problema: o orçamento. Sem grandes estúdios e efeitos especiais, inovar, como foi dito anteriormente, era crucial para manter a série no ar.
E isso criou um efeito cascata para o que hoje entendemos como séries de ficção científica britânicas. Diferente da clássica Star Trek, as idas a planetas alienígenas em Doctor Who são menos frequentes, mas o roteiro possui um ritmo distinto, que foca na atuação exagerada do Doutor, em suas companions e nos diálogos rápidos.
Algo que pode ser visto em séries como Misfits, de 2009, até Black Mirror, de 2011 e em autores como Neil Gaiman. Pela sua falta de dinheiro, a série do Senhor do Tempo conseguiu mudar o gênero de ficção científica. Tanto que, em 2010, quando Matt Smith se tornou o Doutor e Moffat trouxe uma narrativa “americanizada”, os fãs da série estranharam.
De fã para fã
Mesmo com as constantes mudanças de elenco e gênero, Doctor Who cresceu sob os moldes da “comédia britânica”, mas também do olhar do fã. Se Star Wars foi responsável por criar a cultura do fandom, levando espectadores a se vestirem como seus personagens favoritos, o fandom de Doctor Who foi o responsável por manter a série viva.
Não apenas quando tratamos de produtores de conteúdo que se tornaram parte da criação da série, mas quando apontamos o seu período sombrio. Entre 1989 e 2005, Doctor Who esteve cancelada. Totalizando 15 anos de hiato, a última temporada trouxe Sylvester McCoy e Sophie Aldred, o Doutor e Ace.
Com uma queda na popularidade do personagem e a necessidade de cortar gastos, engavetaram a série mais longínqua da BBC. Em 1996, foi feita uma tentativa de trazer a série de volta a partir de um telefilme em parceria com a Fox, porém, o fiasco da mesma apenas traria o Doutor de volta em 2005.
Mas o que aconteceu nesses quinze anos? De tudo. Mesmo com um hiato, os fãs mantiveram a série viva, alimentando esse universo e gerando demanda o suficiente para publicações de livros, audiodramas e quadrinhos.
A figura do personagem e sua caixa azul estava tão intrínseca a cultura pop que era referenciada em séries, filmes e ainda possuía seu próprio “universo compartilhado”.
Diferentes rostos, diferentes histórias
Um que, teoricamente, todos podem ser o Doutor. Muito além de um homem branco com artefatos tecnológicos mágicos, Doctor Who levanta um espelho para a sociedade e reflete seus pontos fortes e fracos.
Tanto para o bem, quanto para o mal. Tantos Doutores e apenas duas mulheres e duas pessoas negras sendo escaladas como o protagonista é uma resposta clara a isso. Curiosamente, para se manter ativa por 60 anos é por que sua única constante é a mudança.
“Assim como o Doutor, a série é capaz de constantemente se reinventar e se tornar o grande sobrevivente. Não é aprisionada pelo tempo, gênero ou elenco, então nunca fica velha, mas ao mesmo tempo, é capaz de manter a mesma qualidade esquisita que conhecemos e amamos”, diz a YouTuber Dael Kingsmill para a Forbes.
Recentemente, li um comentário apontando como Doctor Who é uma produção “diversificada”, que está “a anos luz de qualquer outra franquia” nesse quesito. Exageros à parte, estou longe de concordar com isso, mas acredito que, um dia, quem sabe?
O seu maior impacto cultural é a versatilidade. A forma como consegue medir seu público, entender o que ele precisa e testar. Diferente da Marvel, que tem todos os seus passos planejados e a DC, que não parece saber o que faz, Doctor Who está testando seu caminho desde 1963.
Longe de ser completamente inclusiva, ela parece estar disposta, no mínimo, a questionar e mudar. Em outras palavras, é como o que o Primeiro Doutor diz ao se despedir de Susan:
“Sim, eu voltarei. Até lá, não deve haver arrependimentos, nem lágrimas, nem ansiedades. Apenas seguir em frente com nossas crenças e provar que não estou enganado com as minhas”.
Aproveite e continue lendo: