Crítica: Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo entrega o verdadeiro caos que o multiverso merece
Crítica: Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo entrega o verdadeiro caos que o multiverso merece
Debate filosófico é transformado em um espetáculo visual, cheio de humor, ação e surtos pelo multiverso
Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, com todos os seus méritos e deméritos, foi muito contido na hora de explorar as possíveis realidades alternativas e a insanidade natural desta ideia. De certo modo, não entregou aquilo que prometeu bem no título, diferente do novo filme co-produzido pelos Irmãos Russo, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, que é tão caótico quanto o nome sugere.
Ficha técnica
Título: Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (Everything Everywhere All at Once)
Direção: Daniel Kwan, Daniel Scheinert
Roteiro: Dan Kwan, Daniel Scheinert
Data de lançamento: 23 de junho de 2022 (Brasil)
País de origem: Estados Unidos
Duração: 2 hr 19 min
Sinopse: Uma ruptura interdimensional bagunça a realidade e uma inesperada heroína precisa usar seus novos poderes para lutar contra os perigos bizarros do multiverso.
Em meio ao mais absoluto caos
A trama acompanha a história de uma chefe de família, Evelyn (Michelle Yeoh), que carrega o peso de resolver tudo dentro de casa ao mesmo tempo — o comodismo de seu marido, a teimosia de seu pai idoso e a rebeldia de sua filha adolescente. Sem falar nos clientes chatos de sua loja falida, nos problemas com impostos e outras chatices da vida adulta. Mas sua história muda de repente quando ela descobre ser a chave para impedir a destruição de todo o multiverso.
Deste ponto em diante, o longa se transforma em um verdadeiro surto, do tipo mais gostoso de se ver. A direção disseca o conceito de realidades alternativas e explora de todas as frentes possíveis — tudo, em todo lugar, ao mesmo tempo. Qual é a implicância de saber de tudo que poderia ter acontecido em sua vida? Como é estar ciente dos sentimentos de sua versão de todo lugar alternativo? E como uma pessoa mudaria depois de viver isso ao mesmo tempo?
Sem pressa, o filme é dividido entre estas três partes e toma seu tempo para que o espectador saiba exatamente de que perspectiva interpretar cada segmento sem ficar perdido. Funciona como um fio condutor para manter o foco quando as imagens na tela te puxam para todos os lados de uma só vez, propondo uma situação mais criativa que a outra.
Essa genialidade toma forma em cada aspecto da produção, especialmente nas cenas de ação. As lutas são insanas, absurdamente de outro nível, e carregam uma coreografia tão engraçada, limpa, leve e impactante que evocam sem dúvidas os melhores trabalhos de Jackie Chan. E conforme o filme avança, e o público aprende a esperar o inesperado, o surto vai evoluindo a níveis gritantes. Nada está fora dos limites e tudo pode acontecer.
Chegar neste estado mental de suspensão de descrença em que você, como público, realmente está aberto a qualquer maluquice é um caminho sem volta. O filme pode te jogar pessoas com dedos de salsicha em um momento super dramático que você comprará a ideia. Quanto mais os diretores extrapolam nas doideiras, mais fácil fica aceitá-las e o filme se permite brincar com as possibilidades mais bizarras e intrigantes já imaginadas.
Mas o fascinante é perceber que o tom animado e confortável construído pela ação e humor cativa o público, permitindo que o roteiro mergulhe em questões filosóficas profundas sem ficar maçante. Cada troca de diálogo entre a heroína e a vilã explora conceitos cada vez mais desconfortáveis — uma grande batalha entre a filosofia niilista e existencialista — provocando os limites do próprio público. A arte tem essa função de provocar e o longa consegue trazer essa discussão sofisticada sem parecer pedante.
Parte disso vem do enredo afiado, que traz falas tão diretas e honestas entre os personagens que você fica se questionando se veio de um lugar de fã ou hater. É nas entrelinhas das farpas trocadas que surge o questionamento sobre o lado mais cético e cru da condição de existir, sem largar mão de apontar os paradoxos da relação humana.
Talvez essa seja a maior força do filme: encarar qualquer questão de frente, sem ceder a nenhum pensamento, por mais doloroso que seja. E fazer tudo com um sorriso, com uma piada, com uma situação inusitada que vai te fazer rir do ridículo. A aleatoriedade da vida cotidiana por si só é ridículo, algo que é captado bem pelos diretores Daniel Kwan e Daniel Scheinert, que fizeram um trabalho verdadeiramente fantástico e eficiente.
A grande lição é que um filme não precisa se levar a sério para ser levado a sério. Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo consegue discutir questões absurdamente complexas de filosofia e psicologia sem comprometer sua irreverência. É a prova de que um filme não precisa ser chato para ser significativo, algo que tanto filmes cults quanto blockbusters ainda precisam aprender.
O segredo está no orçamento mediano típico de uma produção independente. Sem ter rios de dinheiro a sua disposição, os produtores são obrigados a pensar em soluções mais inteligentes, ao invés de depender de efeitos visuais caros para toda e qualquer situação. A escassez de recursos abre espaço para soluções visuais interessantes, que incorporam adereços inusitados e uma montagem competente.
Mesmo nesta realidade em que tudo beira o ridículo e o incompreensível, o elenco segue entregando uma atuação de altíssimo nível, sem pestanejar nas situações mais extravagantes. Até os personagens mais satélites, como o pai feito por Ke Huy Quan, o avô de James Hong ou a irritante personagem de Jamie Lee Curtis — todos tem seu momento de brilhar e impressionar.
Todas essas tramas pessoais engrandecem o enredo principal, quase como rios distintos desaguando em um mesmo oceano. E entre estas correntezas, o grande destaque fica mesmo para a dupla principal: Michelle Yeoh e Stephanie Hsu.
A história só funciona porque ambas estão entregando o máximo de si — elas realmente confiam neste roteiro. A intensidade que entregam como mãe e filha carrega a credibilidade da trama nas costas. Elas trazem um leque absurdo de sentimentos com uma sutileza capaz de tocar qualquer um.
O sentimento é palpável, mesmo que alguma coisa insana esteja acontecendo na tela. E é na poderosa conexão entre Yeoh e Hsu que a complexa batalha entre visões de mundo — do niilismo, onde nada importa; ao existencialismo, em que os prazeres dão significado à vida — se transforma em um delicado drama familiar.
Ao despir o longa de todo espetáculo visual, o que sobra ainda é uma sólida história sobre os conflitos de convivência de uma família. Em essência, não é muito diferente de Red – Crescer é uma Fera ou Encanto: temos mais um drama familiar que tira proveito do seu plano de fundo étnico para trabalhar conflitos geracionais complexos, que não são tão preto no branco.
Ao mesmo tempo, o jeito que a narrativa é contada está muito ligado em como Evelyn, a dona de casa sobrecarregada do começo do filme, vivencia o mundo. Como uma pessoa que sofre com transtorno de ansiedade, ela sente como se tudo estivesse lhe pressionando ao mesmo tempo. Refém da culpa dos erros passados e esperançosa pelo que pode vir do futuro, a aventura de Evelyn pelo multiverso é uma jornada para aprender a viver no presente e apreciar as coisas como elas são.
Tudo em Todo o Lugar Ao Mesmo Tempo funciona tão bem por ancorar a sua interpretação de multiverso nos dilemas de uma única pessoa. Em suas situações ridículas, lutas impossíveis e no humor barato, o filme encontra uma forma elegante de dizer que nós contemos multitudes.
O ser humano é muito complexo, um multiverso em si próprio. Quando usamos este conceito como ferramenta narrativa, ao invés de um artifício de marketing para metralhar fanservice, é quando ele revela seu verdadeiro potencial. Sem se deixar seduzir pelo caminho fácil, Tudo em Todo o Lugar Ao Mesmo Tempo entrega uma das experiências cinematográficas mais satisfatórias dos últimos tempos.
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