Crítica: Sandman, Temporada 1
Crítica: Sandman, Temporada 1
Primeira temporada da série da Netflix é a personificação dos sonhos de Neil Gaiman.
Considerado por muitos fãs como uma das maiores HQs já escritas, Sandman é a obra definitiva de Neil Gaiman. Simplificando (muito) o que vemos em 14 volumes e 75 edições, tudo gira em torno do drama de Morpheus, o Sonho, com os Perpétuos, sua família disfuncional de entidades poderosas, bem como a maneira que a humanidade é afetada por eles.
Entre bruxas, heróis, vilões e Deuses, o que vemos se desenrolar pelas páginas são histórias delicadas, nauseantes, assustadoras ou simplesmente insanas. O mundo de Sandman é vasto, com uma mitologia riquíssima e com personagens tão carismáticos que marcaram a vida dos fãs. Mas será que a série da Netflix faz justiça a esta obra tão magnânima?
Contando com o apoio — e o entusiasmo — de Neil Gaiman, que acompanhou de perto cada detalhe deste projeto, o seriado é um começo excelente para os novos (e velhos) fãs do sonhar. Com mudanças pontuais que simplificam arcos mais complexos e, na mesma medida, enriquecem o projeto que vemos em live-action, o que temos é uma adaptação simplesmente maravilhosa.
Ficha Técnica
Título: Sandman
Criação e roteiro: Neil Gaiman, David S. Goyer, Allan Heinberg
Direção: Jamie Childs, Andrés Baiz, Louise Hooper, Mairzee Almas, Mike Barker, Coraline Fargeat, Hisko Hulsing
Ano: 2022 (Netflix)
Número de episódios: 10 (1ª Temporada)
Sinopse: Após anos aprisionado, Morpheus, o Rei dos Sonhos, embarca em uma jornada entre mundos para recuperar o que lhe foi roubado e restaurar seu poder.
Um sonho atualizado
Desde os anos 1990 vemos tentativas frustradas de adaptar Sandman para o live-action. Com diretores famosos — como James Mangold (Logan) e Eric Kripke (The Boys) — tentando fazer o sonho se tornar realidade como filmes ou série de TV. Gaiman, porém, sempre foi um ferrenho protetor do universo que criou e nenhum projeto vingou ou chegou a passar das discussões iniciais.
Até que a Netflix anunciou uma adaptação desta HQ na forma de série. E então, uma legião de fãs prendeu sua respiração, ansiosos e temerosos pelo que poderia surgir deste projeto. Pois bem, estou aqui para dizer que podemos respirar aliviados: Sandman é magnífico.
Desde que as primeiras informações sobre o seriado surgiram, já ficou claro que não veríamos uma tradução exata das páginas dos quadrinhos. E que bom que isso aconteceu! Quando se trata de adaptações, muitos fãs demandam pela fidelidade extrema de uma obra para outra, mas o que faz uma HQ funcionar nem sempre resulta em um bom filme ou uma boa série. São mídias diferentes que utilizam recursos diferentes para contar uma história.
Por este motivo, o projeto da Netflix toma decisões bem interessantes para garantir que vejamos uma narrativa envolvente e impactante. Muitas vezes assistimos cenas inteiras das HQs sendo recriadas com uma riqueza de detalhes, empregando doses cavalares de fanservice, mas o principal objetivo desta produção é contar uma boa história e não ser idêntica ao que já lemos.
Gaiman já havia falado sobre isso quando surgiram comentários racistas envolvendo a escalação de Kirby Howell-Baptiste como a adorável Morte, ou críticas machistas sobre Jenna Coleman e Gwendoline Christie serem escolhidas, respectivamente, como Johanna Constantine e Lúcifer. As HQs continuam existindo e nada vai mudar esta obra, mas a essência de Sandman nunca foi sobre o tom de pele ou gênero desses personagens. Que pena que nem todo mundo parece compreender isso.
Afinal, mesmo trazendo mais representação e diversidade do que poderíamos imaginar em uma obra da década 1980, ainda temos uma história que, em muitos aspectos, está desatualizada — e isso não diz respeito apenas às questões raciais ou de gênero. Atualizar a trama para os dias de hoje aproxima um novo público desta jornada grandiosa que, de tantas maneiras, é bastante caótica.
Simplificado, mas não menos grandioso
O que a série da Netflix faz com maestria é pegar um universo fantástico e adaptá-lo para uma narrativa modernizada que preserva os principais aspectos dos quadrinhos.
Ainda temos um Morpheus rabugento e depressivo, uma Morte que transborda empatia, uma Constantine cafajeste e um Lúcifer extremamente intimidador, apesar do seu sorriso angelical. O que faz esses personagens serem especiais e marcantes nas HQs ainda está presente, mesmo que alguns detalhes da história clássica estejam diferentes.
As mudanças, porém, não pararam por aí. Diversos arcos foram simplificados ou alterados de alguma maneira, o que resulta em um maior dinamismo para a trama e um seriado mais envolvente. Ao cortar alguns nomes e histórias secundárias, surge espaço para que outras figuras ganhem um destaque maior — tanto por aparecerem mais vezes do que nos quadrinhos, como por ganhar mais desenvolvimento em suas motivações ou nuances.
Assim, a narrativa fica mais direta e fácil de acompanhar, o que funciona muito bem para essa nova mídia. Isso também significa que nos importamos mais com quem está na tela, o que gera reações mais impactantes conforme a trama avança, e que conceitos grandiosos e mais confusos sejam compreendidos mais tranquilamente.
Além do excelente trabalho de roteiro, a série conta com um elenco que esbanja talento. Todos os personagens, mesmo os mais secundários, conseguem ser bem explorados. Em poucas cenas já somos capazes de compreender as intenções e motivações deles, mostrando nuances e complexidade.
Reforço tanto o talento dos atores porque, assim como nos quadrinhos, Morpheus também acaba assumindo um papel de coadjuvante em alguns episódios. Sumindo de cena em determinas ocasiões, o Senhor do Sonhar também brilha como espectador, deixando que outras pessoas assumam o protagonismo de histórias fascinantes.
Questão de ritmo
Em um momento em que muito se reclama sobre como séries estão parecendo cada vez mais filmes de oito ou dez partes, Sandman consegue escapar disso. Adaptando Prelúdios e Noturnos e A Casa das Bonecas, temos uma temporada que sabe o que quer contar e que desenvolve seus arcos satisfatoriamente
Apesar disso, fica bastante explícito quando deixamos a trama de um volume e entramos em outro. De certa forma isso faz parecer que temos duas temporadas em uma só, mesmo que os eventos estejam interligados. É de se esperar que nas próximas temporadas essa transição seja mais suave.
Por outro lado, isso significa que Sandman escapa de outro problema recorrente de algumas séries atuais. Com dois grandes volumes sendo trabalhados, vemos uma produção que não perde tempo “enchendo linguiça” ou enrolando o fã para que o clímax e resolução aconteçam apenas nos minutos finais da temporada.
Isto não significa que vemos uma história apressada e que atropela sua própria grandiosidade para incluir o maior número possível de conflitos e momentos chocantes em todos os episódios. Tudo porque Sandman encontra o meio termo entre esses dois extremos, tecendo sua teia no seu próprio ritmo, fisgando o espectador e o recompensando com uma narrativa que brilha em todo episódio.
Um início promissor
No fim, dá para entender o motivo para Neil Gaiman estar tão animado com essa série. Este é o sonho do autor que migra para o live-action, preservando a essência desta história única e dos seus personagens tão complexos e cativantes. Mais do que os cenários opulentos e a reconstrução fiel de diversas cenas, ou das mudanças que reforçam a mensagem de representatividade — que já era muito presente na obra original — temos o início de um universo extremamente rico e vibrante.
É encantador ver como trabalharam a primeira temporada, como se esforçaram para respeitar os quadrinhos ao mesmo tempo em que faziam com que a série se tornasse única e especial. A cada final de episódio, temos um misto de emoções desde o encanto (ou o espanto, dependendo do que acabamos de assistir) até a vontade de ter mais daquilo, de que a segunda temporada não apenas seja confirmada, como chegue na Netflix o mais rápido possível.
Podemos dizer que a primeira temporada de Sandman é um começo magistral, ainda que não ouse tanto quanto era possível levando em conta o surrealismo, delírio e horror que tanto marcaram os fãs das HQs. Por isso, a obra leva 5 estrelas da Legião dos Heróis.
A primeira temporada de Sandman já está disponível na Netflix!
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