Crítica – Pantera Negra: Wakanda Para Sempre mostra a maturidade do gênero de herói em filme inundado de emoção

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Crítica – Pantera Negra: Wakanda Para Sempre mostra a maturidade do gênero de herói em filme inundado de emoção

Por Gabriel Mattos

Pantera Negra: Wakanda Para Sempre nasceu em meio a grandes expectativas. Não bastasse a eterna sombra do marco cultural que foi o primeiro longa, a nova aposta do Marvel Studios chega em um momento em que a perda de Chadwick Boseman, o eterno Rei T’Challa, ainda é uma ferida aberta. Sem medo de encarar temas difíceis, Ryan Coogler entrega um ritual terapêutico, queimando antes de limpar, como as agitadas águas do mar. O resultado é um filme potente, estrelando Letitia Wright, Tenoch Huerta, Angela Bassett, Lupita Nyong’o e Winston Duke, que troca a ilusão de perfeição por uma necessária vulnerabilidade.

Ficha Técnica

Título: Pantera Negra: Wakanda Para Sempre (Black Panther: Wakanda Forever)

 

Direção: Ryan Coogler

 

Roteiro: Ryan Coogler e Joe Robert Cole

 

Data de lançamento: 10 de novembro de 2022 (Brasil)

 

País de origem: Estados Unidos

 

Duração: 2h 41min

 

Sinopse: Rainha Ramonda e Shuri lutam para proteger o Reino de Wakanda de intervenção externa de novos poderes mundiais após a morte do Rei T’Challa.

Pôster nacional de Pantera Negra: Wakanda Para Sempre

A maturidade para encarar a dor

Luto é a força motriz que carrega o enredo. (Créditos: Disney)

Fechando com chave de ouro a Fase 4 do Universo Cinematográfico da Marvel, Wakanda Para Sempre é uma saudável harmonia entre uma história política e ao mesmo tempo profundamente pessoal. O gatilho para toda a trama pode ser o caos diplomático que vem de uma Wakanda exposta, mas o que carrega o roteiro é como o luto inunda a estrutura clássica de um filme de herói.

A morte de T’Challa poderia facilmente ser resolvida em poucas cenas, ou até ignorada caso os produtores escolhessem o caminho mais fácil. Mas decidir encarar essa dolorosa verdade trouxe tons contemplativos que só beneficiaram o roteiro. Cada diálogo é imbuído em uma honestidade visceral, que toca o coração de quem já perdeu alguém. E ao mesmo tempo é na dor que os personagens revelam novas facetas interessantes.

Angela Bassett como a Rainha Ramonda é incansável. (Créditos: Disney)

Quem não consegue se adaptar, acaba ficando apagado em um elenco tão forte. M’Baku, por exemplo, está muito mais centrado agora que integra a sociedade Wakandana, potencializado pelo carisma inesgotável de Winston Duke. Por outro lado, Okoye, de Danai Gurira, e a novata Aneka, de Michaela Coel, acabam sendo ofuscadas por não entregarem uma personalidade tão marcante. O oposto acontece com Riri Williams, de Dominique Thorne, que rapidamente conquista com seu humor rápido e ácido — facilmente uma das maiores surpresas do filme.

Não dá para negar que as mulheres são o destaque mais uma vez — elas são as heroínas e vilões, entregam comédia e drama, impressionam seja nas sequências de ação ou discutindo geopolítica. Mais uma vez, a direção sabe construir a noção de uma feminilidade múltipla, trazendo pontos únicos para suas diversas personagens, que muito falta em outros filmes da Marvel. Em especial, claro, as mulheres pretas ganham espaço para mostrar todo o seu talento, tanto as personagens quanto as próprias atrizes.

Nenhuma dessas personagens, entretanto, chega aos pés da Ramonda de Angela Bassett. Sempre que a Rainha entra em cena, entrega um verdadeiro espetáculo. Mesmo que a mágoa lacerante de uma mãe em luto atropele todos ao seu redor, sua atuação ainda encontra espaço para nuances. Encaixando fragilidade, força e fúria, o resultado é uma personagem complexa da qual é impossível desviar os olhos.

Arco de Shuri desenvolve o tema central de uma forma interessante, mas atriz não segura sempre a barra. (Créditos: Disney)

Mas talvez quem mais tenha mudado é Shuri. Ao deixar de lado a jovem engraçada e tagarela de antes, Letitia Wright traz uma escuridão inesperada para a irmã de T’Challa que não chega a descaracterizar a personagem. O roteiro sabe aproveitar sua racionalidade para discutir questões delicadas como a culpa que vem do luto e uma relação complexa com religião.

Longe da sombra do irmão, que era o poderoso Rei de Wakanda, Shuri é obrigada a redescobrir sua identidade como a próxima herdeira do trono. E essa jornada por amadurecimento obriga a heroína a fazer algumas escolhas complicadas, que desencadeiam algumas das cenas mais impactantes do filme.

A evolução, apesar de súbita, funciona bem o suficiente. Nos momentos mais calmos e melancólicos, Wright transmite bastante verdade em cada fala. Porém, quando as cenas exigem uma verdadeira explosão de fisicalidade, uma presença mais imponente e firme, a atriz não segura tão bem. O fato é que ao perder a veia cômica de sua personagem, Wright sofre para manter o mesmo nível de carisma que apresentou anteriormente. E sua presença em cena acaba sendo engolida por nomes mais imponentes, como Winston Duke e principalmente o Namor de Tenoch Huerta.

Uma nação afogada em lágrimas e ódio

Namor é o grande destaque do filme, pavimentando seu caminho no futuro do MCU (Créditos: Disney)

O líder da nação submersa de Talokan entra facilmente para o seleto grupo dos melhores vilões do MCU. E talvez o segredo tenha sido replicar a fórmula de sucesso de Killmonger, de trazer uma motivação perfeitamente aceitável que só se torna vilanesca pela natureza extremista do personagem. Por meio dele, o roteiro consegue explorar com naturalidade um novo lado da discussão racial, resgatando dessa vez a origem dos povos latino-americanos.

O passado de exploração dos povos originários da América não é muito diferente da dolorosa história da escravização das diferentes etnias africanas e o roteiro sabe aproveitar essa ligação de forma bastante instigante. Paralelos importantes são traçados, promovendo uma reflexão necessária sobre a necessidade de cooperação entre seus descendentes, que permeia boa parte do enredo.

Enquanto as discussões sobre negritude são diluídas a recortes de pequenas comunidades pelo mundo, como o Haiti, o origem das identidades latinas rouba a cena. Talokan apresenta uma mitologia muito rica, bebendo diretamente da fonte da Mesoamérica — a terra povoada por incas, maias e astecas. E conhecer esse lugar pelo olhar de Namor, que guia o público com uma paixão contagiante, foi uma forma inteligente de criar uma empatia instantânea com esse lugar místico.

Também fez toda diferença para garantir uma visão nada romantizada da história latina. Sempre existe o risco, tratando-se de uma produção americana, de reforçar estereótipos desrespeitosos quando filmes desse porte retratam culturas estrangeiras. Mas através da figura de Namor, o roteiro consegue não apenas trazer as belezas, mas também a história sangrenta de dominação linguística, cultural e geográfica da América Latina, compartilhada pela fictícia Talokan.

Cultura mesoamericana é o foco das discussões raciais (Créditos: Disney).

A cidade inundada em si é um espetáculo visual à parte, trazendo diversos paralelos com a exuberância de Wakanda. Cada pequeno detalhe salta os olhos, com soluções criativas que misturam a ancestralidade maia com um misticismo oceânico. Toda construção de mundo dessa nova nação é potencializada por uma trilha sonora com forte presença latina e uma fotografia que sabe explorar o melhor da beleza submersa.

As cenas embaixo d’água, mesmo não tão frequentes, são bem convincentes. Visualmente, consegue superar o trabalho confuso de seu principal rival neste quesito, Aquaman, mas não deixa de trazer uns raros momentos esquisitos. Há uma cena em especial envolvendo o Namor que a computação gráfica decai a níveis cômicos, mas um pequeno deslize não é capaz de diminuir a grandeza do povo Talokanil.

Afinal, o que eleva o Príncipe Submarino a um outro patamar, além de toda a caracterização, é o trabalho esplendoroso de Huerta. Namor é absurdamente intimidador sem precisar fazer o menor esforço. O modo como ele faz ameaças absurdas com uma voz serena e aveludada é de gelar a espinha, especialmente por não haver dúvidas de que pretende cumprir tudo o que diz. Alguns diálogos chegam a ser brutais, porém nunca abrindo mão da civilidade.

Shuri tem uma dinâmica incrível com Namor (Créditos: Disney).

E essa natureza imponente contrasta bem com a sutileza de Shuri. Como antagonistas, a dupla apresenta uma dinâmica similar a de T’Challa e Killmonger, em que ambos se desafiam constantemente a ir mais além. Porém acabam sendo mais parecidos, acrescentando uma natureza ambígua a essa relação que funciona como um bom tempero.

Esta não é a única semelhança presente na estrutura de Wakanda Para Sempre e seu antecessor. No início, o filme também traz cenas que repetem a mesma função para a trama, porém o impacto é completamente diferente. Esses ecos do passado ganham tons tão sombrios que apenas reforçam a falta que T’Challa faz e mostra como as coisas ficaram instáveis sem a sua presença apaziguadora. O Rei de Wakanda queria paz, mas dessa vez a nação está com sangue nos olhos.

E quando essa revolta acumulada se transforma em ação, a coisa pega fogo. Os guerreiros de Wakanda finalmente encontraram rivais à sua altura em Talokan. A consequência são cenas de ação bem mais violentas, onde nenhum lado precisa se segurar.

Ryan Coogler consegue manter o nível da adrenalina no topo escolhendo bem as técnicas para se adaptar a escala do conflito. Nos momentos de guerra, em que grandes exércitos se enfrentam, a câmera não para e traz um panorama frenético de todo o caos. E nos conflitos diretos entre os personagens, o diretor chega até a usar câmera lenta para frisar o nível de poder a cada impacto. Tudo feito com um controle absurdo, carregado de intenção.

Pantera Negra: Wakanda Para Sempre comprova que o gênero de herói não está morrendo. Pelo contrário, amadureceu o suficiente para falar de temas difíceis sem sacrificar sua essência. O longa é a única resposta possível após um período conturbado que levou tantas pessoas. Depois de um luto coletivo, acumulado ao longo de mais de dois anos de pandemia, essa história vem como uma necessária catarse emocional que descarrega toda a dor em sua beleza.

Nem mesmo os tropeços são capazes de diminuir o impacto dessa jornada. Afinal, esses momentos de vulnerabilidade são necessários para quebrar a fachada de perfeição e nos permitir sentir a honestidade da história. O luto e a vingança são estradas imperfeitas, dolorosas, como a própria natureza humana. Mas apenas superando essa parte inevitável da vida que conseguimos seguir em frente.

Nota: 4.5/5

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