Crítica: Mais que amigos emplaca um divertido romance gay mesmo com um protagonista irritante
Crítica: Mais que amigos emplaca um divertido romance gay mesmo com um protagonista irritante
O filme tem um bom coração, mas só enxerga o próprio umbigo
Mais que amigos, novo filme da Universal Studios, é um passo em direção a histórias melhores sobre casais gays. Longe de ser perfeito, o filme abraça a realidade sem maquiar os lados mais peculiares da experiência LGBTQ+. Com humor provocativo, o tom adulto faz um movimento importante para afastar essas narrativas da sombra de Com amor, Simon — a vanguarda das comédias românticas LGBTQ+ em grandes estúdios. Mas nessa sede de mostrar que é possível divertir o grande público sem esconder seu lado mais gay, o roteiro acaba exagerando na intensidade do protagonista.
Ficha técnica
Título: Mais que amigos (Bros)
Direção: Nicholas Stoller
Roteiro: Billy Eichner e Nicholas Stoller
Data de lançamento: 8 de outubro (Brasil)
País de origem: Estados Unidos
Duração: 1 hora e 55 minutos
Sinopse: Bobby, um solteirão resmungão que não acredita no amor, chama a atenção de Aaron, um gay bombado fora do meio. E agora ambos lutam contra esse romance por terem medo de se apaixonar.
A vida romântica de um gay sem filtros
Dirigido por Nicholas Stroller, o longa parte da interessante premissa de mostrar o complexo universo dos relacionamentos gays, combatendo a ideia de que toda forma de amor é igual: o clássico “amor é amor”. Esse conceito acaba tentando encaixar casais gays em uma tradição heterossexual que não lhes pertence e acaba sendo o maior erro de outras comédias românticas do tipo.
Com isso em mente, o roteiro sequestra a monotonia do gênero de comédia romântica, dominado por narrativas de amor hétero, para celebrar o que há de único nos relacionamentos gays. E essa drástica mudança de paradigma bagunça bastante o ritmo da trama que, como costuma ser na vida de pessoas LGBTQ+, demora um tempo para entender e assumir sua natureza romântica de coração aberto.
Até se aceitar, o filme se garante no humor para conseguir uma sobrevida, mostrando o lado cômico da realidade de Grindr, relações abertas e outras questões comuns da vida gay. Por um tempo, essa amostra cultural da vida de solteiro parece mais uma sequência de esquetes de comédia, um ensaio sobre o assunto do que parte de um filme. Diverte com sacadas boas que poderiam facilmente sair de um compilado do porta dos fundos. Só quando o amargo solteiro quarentão Bobby, que não acredita muito em amor, acaba relutantemente se aproximando de outro cético, Aaron, que conhece em uma balada que as coisas começam a andar.
Então começa uma releitura do clichê de enemies to lovers, inimigos que se passam a se amar. A paixão avança em fogo brando, sem pressa alguma, como costuma ser quando duas pessoas cheias de dores e inseguranças se envolvem. E quando você é LGBTQ+ e precisou esconder parte da sua essência até a vida adulta, acredite, o que não falta são dores e inseguranças.
Nessa relutância em se deixar levar, mas ao mesmo tempo já entregue a emoção, a dupla cria um clima gostoso de perseguição e sedução. É uma vibe bem gato e rato, em que ao mesmo tempo que ninguém que dar o braço a torcer, ninguém deixa de curtir o momento. Das cenas mais bobas às mais picantes fica evidente que Billy Eicher e Luke Macfarlane tem uma química natural que transborda da tela.
É legal ver a dinâmica que surge do casal aprendendo a conviver com os traumas do parceiro e os atritos e provocações são um bom tempero para a trama: bem característico desse tropo. Porém a gostosa sensação de ver dois pombinhos se bicando, normal em enemies to lovers, é atrapalhada pela impressão de que o grande inimigo na verdade acaba sendo o próprio protagonista. Na tentativa de criar um personagem socialmente consciente e super desconstruído, os roteiristas transformaram Bobby em uma pessoa mimada, exagerada e insuportável.
Todas suas falas parecem tiradas diretamente de uma thread do Twitter. E se por um lado isso rende piadas incrivelmente autênticas, que você ouviria da boca de qualquer gay por aí, por outro também absorve o lado mais cansativo da comunidade.
O texto tenta ser provocativo, que pretende incentivar reflexão sobre diversas estruturas da sociedade, mas por exagero acaba se tornando apenas um ruído de fundo. Tantas questões sociais são trazidas em contextos absolutamente irrelevantes que perdem o propósito e não causam qualquer impacto. Acaba sendo superficial e irritante, como uma militância errada que existe aos montes no Twitter.
De certo modo, não deixa de ser um sintoma de um filme que sente a pressão de representar toda uma comunidade. As histórias que circulam por Hollywood sobre personagens gays, quando não são trágicas, descambam muito para um otimismo extremo, de um mundo utópico sem preconceitos, que simplesmente não conversa com a realidade de grande parte do público.
Mas se o objetivo era espelhar a comunidade como ela é, esse protagonista sisudo não deixa de ser um reflexo da própria cegueira dos roteiristas. Mesmo que pensem estar escrevendo uma história progressista, acabam se limitando a uma visão superficial sobre a experiência LGBTQ+, típica de uma branquitude rica. Dentro da comunidade, é de conhecimento geral que existe um grupo de gays completamente alheio à realidade e às dores do resto da sigla. Parece que todos se reuniram para escrever esse filme.
Um exemplo claro está nas cenas em que o círculo de colegas de trabalho de Bobby se faz presente. Mesmo com um cuidado em representar cada letra da comunidade, com grandes estrelas LGBTQ+ de Hollywood como Dot Jones e Jim Rash, os personagens não passam de figuras unidimensionais que só replicam estereótipos rasos conhecidos nas redes sociais. Muitos conflitos do romance seguem o mesmo problema, em especial no clímax, são resultados de um ponto de vista egocêntrico da experiência LGBT+.
E isso, infelizmente, impacta o ritmo da trama. Mesmo que a relação entre o casal tenha avanços significativos, é a despeito do Bobby estar sempre com o pé no freio, se esforçando para causar conflitos onde não há necessidade. Há uma clara tentativa de trabalhar inseguranças, só que com monólogos e reclamações descabidas fica até difícil de acreditar que o seu gay padrão dos sonhos se apaixonaria por ele.
Mas nem em seus momentos mais amargos, Bobby consegue ofuscar o brilhante humor do longa. Mesmo quando o drama se perde, sempre vai ter alguma coisa que vai te fazer rir. Tanto as piadas sujas e apelativas quanto as mais forçadas na militância causam o mesmo impacto, sem jamais deixar a peteca cair. Existe uma ou outra piada interna, bem restrita à cultura estadunidense, mas costuma ser um humor que tira sarro de questões comuns entre gays de todo o ocidente, que o público hétero vai rir de tão ridículo.
Romances não-monogânicos, gente abusada, trocas de mensagens indecentes, a futilidade de parte da comunidade e interações desengonçadas com héteros sem noção… É uma grande tiração de sarro do grande caos que é ser LGBTQ+. Mas não é feito com a intenção de ofender a comunidade para o entretenimento do público hétero. Pelo contrário, é um convite geral para que todos possam se divertir com a barbaridade do nosso mundo.
E talvez essa seja a grande força de Mais que amigos. Não importa o quão longe vá seu humor, ele sempre está rindo com os LGBTQ+ do absurdo de suas rotinas. Nunca está rindo da comunidade, como historicamente acontecia em filmes de comédia. E isso faz toda a diferença.
No fim, Mais que amigos pode não ser a melhor comédia romântica gay do ano — esta honra continua sendo de Fire Island: Orgulho e Sedução — mas se posiciona bem acima da média, diferente de Meu Namorado Fake. Seu lugar, talvez, seja o de comédia romântica gay mais influente do ano, com potencial para inverter completamente o que se espera de histórias do tipo.
Na maior parte do tempo é uma mistura empolgante e divertida, mas que peca no tom combativo ao tentar educar o público hétero em assuntos que pessoas LGBTQ+ já estão cansados de falar. Ainda assim, é um filme que funciona exatamente quando mostra a confusão da experiência gay em sua totalidade. Somos militância e futilidade, maturidade e infantilidade, drama e comédia… Tudo junto, de uma vez só, e mais mil paradoxos que saem com a gente de fábrica, direto do armário.
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