Crítica: Doutor Estranho no Multiverso da Loucura desafia os limites do MCU com aventura macabra e estilosa
Crítica: Doutor Estranho no Multiverso da Loucura desafia os limites do MCU com aventura macabra e estilosa
Retorno de Sam Raimi aos filmes de herói traz todas as marcas do cineasta: violência, toques de horror e muita breguice
Em dado momento de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) aprende sobre o conceito de Possessão Onírica, uma forma de se manifestar em outros universos através do controle da mente. A cena tem um ar meditativo, com os rostos dos personagens praticamente dançando na tela.
O trecho, levemente cafona mas altamente estiloso, descreve bem a mais recente produção da Marvel Studios. O retorno do diretor Sam Raimi ao mundo dos super-heróis, mais de uma década após concluir a trilogia do Homem-Aranha, marca um dos filmes mais autorais do Universo Cinematográfico da Marvel. A segunda aventura solo do Mago Supremo caiu justamente nas mãos de um dos poucos cineastas que saberia como celebrar toda a glória de sua estranhice.
Ficha técnica
Título: Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (Doctor Strange in the Multiverse of Madness)
Direção: Sam Raimi
Roteiro: Michael Waldron
Data de lançamento: 5 de maio (Brasil)
País de origem: Estados Unidos
Duração: 2h 06m
Sinopse: Stephen Strange se vê obrigado a proteger America Chavez, capaz de transitar pelo Multiverso, quando os poderes da garota se tornam cobiçados pela poderosa Feiticeira Escarlate.
Até agora, a Fase 4 da Marvel pode ser resumida em um grande “Vem Aí”. Nenhuma obra realmente lidou com as próprias consequências, constantemente delegando desdobramentos e conclusões para o sucessor. Tudo isso culmina em Multiverso da Loucura, quando o Doutor Estranho precisa arrumar a bagunça deixada por Wandavision, Loki, What If…? e, claro, Homem-Aranha: Sem Volta para Casa. O longa é, sim, conectado ao que veio antes, mas é pouco dependente de grande parte das obras que referencia.
A crise no Multiverso aqui é trazida pela introdução de America Chavez (Xochitl Gomez), garota capaz de transitar entre diferentes realidades que se vê levada à Terra principal do MCU na fuga de um demônio. Ao se prestar para ajudá-la, Strange descobre que as criaturas são parte de um plano da Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen) para migrar para outra dimensão – uma em que pode se reunir com seus filhos.
O que destaca Multiverso da Loucura de seus antecessores é a ironia de ser um longa que trata de várias realidades, mas que é bastante contido dentro de seu próprio mundo. Há citações aos Vingadores e à destruição causada por Thanos, porém em momento algum o filme se esquece de que o que realmente está em jogo são as vidas de Stephen Strange e de Wanda Maximoff.
O Mago Supremo lida com um sentimento entalado na garganta de infelicidade, inconcebível após salvar o mundo diversas vezes, e que só se torna mais acentuado ao transitar entre dimensões e perceber algumas constantes nos vários universos. Nem de longe é um filme dramático, mas o que torna o protagonista tão cativante dessa vez é esse sutil entendimento de que o próprio questiona a todo minuto se seus sacrifícios estão valendo a pena.
Já o papel de Wanda é igualmente importante e trágico. Com a trama servindo basicamente como continuação de Wandavision, a Feiticeira Escarlate se vê atormentada pelas memórias da vida feliz que forjou em Westview. Corrompida por magia oculta, ela se torna cada vez mais violenta na busca por formas de se reunir com sua família – ainda que, no fundo, saiba que nada daquilo realmente existiu. É um pouco lamentável que Wanda se torne uma antagonista logo agora que começou a ganhar seu tão merecido protagonismo, mas o filme dá os holofotes que ela sempre mereceu – mesmo que seja uma agressiva demonstração de poder.
Bruxaria e viagens alucinantes
Se é para ter a Feiticeira Escarlate como uma bruxa impiedosa, é ótimo que tenha acontecido nas mãos de Sam Raimi. O cineasta a retrata como uma verdadeira força demoníaca, e no processo testa o quão longe consegue ir dentro das limitações de censura para 14 anos e dos moldes do Universo Cinematográfico da Marvel.
Sam Raimi se consagrou mesmo no horror. Ao lado de Bruce Campbell (que, claro, tem participação hilária no filme), foi o idealizador da franquia Evil Dead, repleta de humor sombrio e violência gráfica banhada a litros de sangue. O terror é parte do DNA do cineasta, e se faz presente mesmo em obras de outros gêneros, como demonstrou na trilogia Homem-Aranha. Em Multiverso da Loucura, que inicialmente foi anunciado como “o primeiro filme de horror da Marvel”, Sam Raimi está em casa.
O próprio cineasta já declarou diversas vezes que não acredita que o longa é um genuíno filme de terror, mas na realidade todos os elementos estão aqui: tensão sufocante, sustos surpreendentes e até mesmo mortes. É deliciosamente chocante entrar no cinema para assistir um filme da Marvel Studios e ser recebido com olhos arrancados, cabeças explodindo e gente sendo partida no meio. Nada é muito explícito, mas só a implicação já torna a obra um tico mais violenta que o restante.
O estilo que consagrou o diretor em Evil Dead ou Homem-Aranha continua tão forte como sempre. O longa abraça a psicodelia do Doutor Estranho em transições inventivas, em que personagens surgem na tela quase como alucinações; e também em movimentos de câmera ousados, que giram de cabeça para baixo, varrem o cenário, aumentam a sensação de ocorrências sobrenaturais ou então imergem o espectador em metrópoles do presente ou do futuro. Tudo vibra com muita cor. Há textura, verticalidade, um senso de espaço – ao contrário daquela sensação de algo chapado e unilateral, rodado inteiramente em tela verde e “consertado” pela equipe de efeitos especiais.
Sam Raimi não se contenta em só fazer um filme da Marvel Studios, e sim um bom filme acima disso. Comparado com diretores funcionais e sem personalidade, como Jon Watts (Sem Volta para Casa), é um salto gigantesco em qualidade e estilo. Essa abordagem, de criar dentro das limitações ao mesmo tempo que as questiona e desafia, marca a trama e a estética, e é aqui que Multiverso da Loucura dividirá a fiel base de fãs do MCU.
Nada Como Um Dia Após o Outro Dia
Ao mesmo tempo que testa o quão longe consegue ir dentro dos moldes, o diretor também toma o filme para si e constrói algo fiel com seu portfólio, mesmo que desafie o que muita gente espera de um filme da Marvel. Grandes participações especiais chegam e vão sem deixar grandes possibilidades para o futuro. As cenas pós-créditos não estabelecem grandes expectativas. Muito pelo contrário, uma delas é só uma piada com o excelente Bruce Campbell, fiel parceiro de Raimi e intérprete de Ash Williams em Evil Dead.
Sem se preocupar com “o futuro da Marvel nos cinemas”, a obra ganha liberdade de ousar como nenhuma outra. Raimi traz a sua assinatura, e também dá um gostinho de aventura retrô gótica que poderia muito bem ter saído de uma locadora dos anos 2000. Há excessos de frases de efeito canastronas, templos profanos no topo de montanhas, duelos entre clones e até mesmo um ataque de almas penadas.
Pelos rumores, vazamentos e a notícia das refilmagens, parecia um longa repleto de participações especiais e grandes viradas para o Universo Cinematográfico da Marvel. O resultado, porém, é algo contido, que não se deixa seduzir só pela chegada de rostos inéditos. Os conflitos de Stephen Strange e Wanda Maximoff sempre são o foco, e a trama corre de forma dinâmica e agitada para garantir que ambos os lados sejam bem desenvolvidos. Nenhuma aparição especial ofusca isso.
Indo além do tom padrão de heroísmo do MCU para flertar com misticismo e psicodelia, esse é o filme que o Doutor Estranho sempre mereceu. Um confronto entre um mago e uma bruxa soa exatamente como premissa de filme B, e o diretor não tem medo de assumir isso. Ainda que hoje os filmes de herói sejam um império bilionário, Sam Raimi entende que as HQs por muito tempo foram consideradas entretenimento barato – assim como o horror.
O resultado é uma obra que, em sua breguice e pura vontade de entreter, acaba soando mais ousada, original e memorável que muitos dos outros filmes da Marvel Studios. Em uma eterna história recorrente em que o público só quer saber do próximo episódio, Multiverso da Loucura vem para amarrar pontas soltas com muito estilo e personalidade.
O retorno de Sam Raimi à cadeira de diretor não decepciona. Mesmo 20 anos após Homem-Aranha, o cineasta não parece ter perdido o fôlego e a curiosidade pelas obras de heróis, em uma obra que consegue conciliar a cafonice inerente das HQs com genuíno interesse pelos dramas pessoais dos protagonistas – e no presente, sem se preocupar com o que vem pela frente.
Como fizeram James Gunn e Taika Waititi antes, Sam Raimi usa Doutor Estranho no Multiverso da Loucura para lembrar que os filmes de herói podem ir além de se apoiar em hiperconexões quando são feitos como cinema e não como outro produto na linha de montagem.
Aproveite e confira também: