Crítica – Crimes of the Future: O retorno de David Cronenberg e sua arte visceral em comunhão com o corpo
Crítica – Crimes of the Future: O retorno de David Cronenberg e sua arte visceral em comunhão com o corpo
Novo filme do cineasta consegue reunir o melhor de seus trabalhos anteriores com ótimas performances e discussões sobre o corpo e a arte
Assistir a um filme de David Cronenberg é quase como entrar em um universo à parte, uma terra sem lei onde os seus instintos mais animalescos e profundos emergem apenas para dar lugar ao grotesco, no sentido mais puro da palavra. E com Crimes of the Future, o mais novo filme do cineasta desde 2014, não seria diferente.
Desde os primeiros instantes, o longa vem sendo descrito como o grande retorno de Cronenberg ao body horror, um dos subgêneros mais intrigantes do terror. Mas Crimes of the Future é, na verdade, a prova de que o diretor nunca deixou suas origens de lado. Ele continuou carregando-as consigo até chegar o momento onde a arte em que é mestre pudesse triunfar mais uma vez.
Ficha técnica
Título: Crimes of the Future
Direção: David Cronenberg
Roteiro: David Cronenberg
Data de lançamento: 14 de julho de 2022 nos cinemas e 29 de julho na Mubi
País de origem: Canadá, Reino Unido e Grécia
Duração: 1h 47min
Sinopse: Os humanos se adaptam a um ambiente sintético, com novas transformações e mutações. Com a ajuda de Caprice (Léa Seydoux), Saul Tenser (Viggo Mortensen), artista performático de celebridades, mostra publicamente a metamorfose de seus órgãos em atuações de vanguarda. Timlin (Kristen Stewart), uma misteriosa investigadora, rastreia obsessivamente seus movimentos, quando acaba revelando um grupo enigmático cuja missão visa usar a notoriedade de Saul para lançar luz sobre a próxima fase da evolução humana.
Corpo é realidade
Quando Saul Tenser (Viggo Mortensen), certa manhã, despertou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um… Bom, nele mesmo. É pedindo licença a Franz Kafka e seu clássico A Metamorfose que vamos adentrando, de forma violenta, no mundo distópico criado por David Cronenberg em Crimes of The Future.
Nele, a espécie humana tenta se adaptar ao contraste entre o sintético e o orgânico, onde as modificações corporais passam a ser o centro das atenções. É neste pedaço de linha temporal que parece ser futurística que Saul, um artista performático, transforma sua habilidade de desenvolver novos órgãos em um espetáculo. Para isso, ele conta com a ajuda de Caprice (Léa Seydoux), sua parceira durante as performances e a responsável por retirar essas adições de seu organismo, já que eles as encaram como tumores.
Orbitando a dupla está Timlin (Kristen Stewart), uma burocrata que passa a demonstrar um interesse quase obsessivo pelo artista e suas performances nada convencionais aos nossos olhos. E no meio de tudo isso, encontramos uma explosão de ideias, conceitos e discussões que são maiores do que o próprio filme.
Existe um conceito freudiano chamado “unheimlich”, traduzido por teóricos como “inquietante” ou “estranho”, que pode muito bem ser aplicado em longas como Crimes of the Future. O verbete alemão foi usado pelo pai da psicanálise em um ensaio publicado em 1919, mas não deixa de ser atual por isso: segundo a teoria, existe algo familiar e reconfortante naquilo que consideramos estranho, obscuro, enigmático. O termo é muito mais complexo e abrangente do que isso, mas a ideia geral é o que nos importa no momento.
Em um mundo onde o sintético passa a ser a nova (ou não tão nova assim) obsessão da humanidade, o inquietante deixa de ser estranho para dar lugar ao agradável e àquilo que, de certa maneira, nos soa familiar. E é nessa relação entre o corpo, a arte, o desejo e a tecnologia que todo o grotesco é amenizado pelo trivial. Muito disso, claro, vem da direção cirúrgica de Cronenberg, que traz uma narrativa bem mais explicativa do que alguns de seus trabalhos anteriores, mesmo que de forma não tão coesa.
São esses projetos anteriores que, à sua maneira, refletem Crimes of the Future. Com pinceladas brandas do body horror de Videodrome: A Síndrome do Vídeo (1983) e os estranhos prazeres de Crash (1996), o filme consegue reunir o que Cronenberg sabe fazer de melhor e ainda abre espaço para debates sobre os limites do nosso próprio corpo e seus novos desejos e instintos carnais.
Afinal, em um mundo onde a dor não existe mais, como é que alguém conseguiria, racionalmente, deixar a anarquia de lado para se submeter a uma ordem vigente e que, a todo custo, quer domar corpos e cruelmente domesticá-los?
Se o nosso corpo é a realidade, então ele deve ser a nossa realidade e a de ninguém mais. Como seres únicos, os corpos são, obviamente, únicos. Ninguém e nenhuma força maior tem o direito de afirmar o contrário por mais que tente assumir o controle da nossa realidade.
A cirurgia é o novo sexo
Embora Crimes of the Future não esteja muito preocupado em se aprofundar psicologicamente em seus personagens ou estabelecer o contexto de seu universo, ainda assim é uma peça interessante no meio da filmografia de Cronenberg. Grande parte desse interesse vem do trio de atores que carregam a trama: Mortensen, Seydoux e Stewart.
A relação entre Saul e Caprice ganha ainda mais fôlego com as performances competentes de seus intérpretes. Stewart também se sobressai nos momentos em que rouba o olhar da câmera para si como a intrigante Timlin e seu insistente desejo de, assim como Saul, também vivenciar a catarse das performances do artista.
E é nessa nova forma de libertação que o erótico também se faz presente, algo que os entusiastas de Crash já estão familiarizados. “A cirgurgia é o novo sexo?”, Timlin pergunta a Saul após presenciar uma de suas performances. Ali, com apenas poucas palavras, Cronenberg aborda a incessante busca dos seres humanos pelos mais variados tipos de prazeres, mesmo que essa camada esteja associada a cortes cirúrgicos e à metamorfose de órgãos.
Com organismos em intenso conflito e transformação, Crimes of the Future conecta arte e corpo, duas palavras básicas no vocabulário de Cronenberg. Se é com a carne, os ossos e as vísceras que transitamos nesse vasto mundo, é na arte que encontramos uma maneira de dar sentido a tudo isso e de tentar encontrar, mesmo no meio da angústia, um caminho para alcançarmos a nossa epifania particular.
É assim que o mais novo filme de David Cronenberg consegue êxito naquilo que se propõe a elucidar. Por mais que não apresente um efeito tão catártico quanto o vivido por seus personagens, ainda assim é uma resposta do cineasta à sua própria jornada que, assim como Saul Tenser, abraça o visceral para criar arte e, então, compreender o mundo ao seu redor.
Crimes of the Future estreia no dia 14 de julho nos cinemas e estará disponível no streaming, pela Mubi, a partir do dia 29 de julho.
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