Crítica – Belfast: Uma viagem nostálgica pelas memórias de Kenneth Branagh
Crítica – Belfast: Uma viagem nostálgica pelas memórias de Kenneth Branagh
Apesar de não ser inovador, filme semibiográfico é uma carta de amor do diretor à sua cidade natal
Com sete indicações ao Oscar de 2022, inclusive para Melhor Filme, Belfast finalmente chegou aos cinemas brasileiros recentemente. O filme é dirigido e roteirizado por Kenneth Branagh, que bebeu da fonte de suas próprias memórias para contar a história de um garoto sonhador em meio a um período devastado pela guerra civil na Irlanda do Norte, um conflito que durou 30 anos e afetou a vida de diversas famílias, como a do próprio diretor.
Sentimentalismo, nostalgia e melancolia são apenas algumas das palavras que permeiam todo o filme. Branagh segura na mão do telespectador e o leva em uma viagem nebulosa dentro de suas lembranças, em uma tentativa de recriar os melhores momentos da infância. Mas essa carta de amor à Belfast, cidade natal do cineasta, é contada através de uma cúpula, como se ela fosse preciosa demais e precisasse ser protegida de agentes externos. É assim que o filme deixa sua marca apenas como um grande amontoado de memórias, tornando-se mais um gancho para fisgar indicações ao Oscar ao invés de algo que nos desperte uma sensação inovadora.
Ficha técnica
Título: Belfast
Direção: Kenneth Branagh
Roteiro: Kenneth Branagh
Data de lançamento: 10 de março de 2022
País de origem: Reino Unido
Duração: 1h 38min
Sinopse: Na Irlanda do Norte dos anos 60, um menino de 9 anos experimenta o amor, a alegria e a perda. Em meio a conflitos políticos e sociais, o garoto tenta encontrar um lugar seguro para sonhar enquanto sua família busca uma vida melhor.
Eu só conheço Belfast
O ano é 1969. Belfast, a capital da Irlanda do Norte, está diante de uma violenta guerra civil entre protestantes e católicos que só tende a piorar a cada dia que passa. Mas Buddy (Jude Hill) não tem consciência disso. Com sua espada e seu escudo, o garoto de nove anos de idade quer ser o herói da própria história, levando consigo seus sonhos e desejos que apenas uma fase como a infância pode proporcionar.
Entretanto, a crueldade da guerra não poupa ninguém de seus horrores, e é quando Buddy se vê diante de uma manifestação agressiva de um grupo de protestantes que seu mundo se transforma permanentemente. Ao lado de Pa (Jamie Dornan), Ma (Caitriona Balfe), Granny (Judi Dench), Pop (Ciarán Hinds) e seu irmão mais velho, o menino tenta encontrar uma forma de ser feliz, enquanto seus familiares buscam a melhor maneira de manter a segurança de todos no meio do caos.
Embora a família de Buddy faça parte do lado protestante, eles vivem em harmonia numa comunidade onde a maioria é católica. Ainda assim, a sombra ameaçadora do conflito não pede licença para invadir os cômodos da casa da família: enquanto o pai se ausenta durante algumas semanas para trabalhar na Inglaterra, a mãe precisa segurar as pontas e ainda lidar com os filhos, ao mesmo tempo que uma guerra civil acontece do lado de fora.
Mas Kenneth Branagh não está interessado em se aprofundar nas causas desse período histórico, usando-o apenas como pano de fundo das vivências de Buddy. É pelos olhos inocentes de uma criança que o filme vai mostrando sua cara, carregando planos sentimentais e com uma lente de nostalgia. É Buddy quem nos conduz: ele está sempre escutando as conversas de seus pais por trás das portas, ouvindo sussurros aqui e acolá, sempre observando o que está acontecendo ao seu redor. O garoto sabe que tem algo de errado, mas não entende o porquê. Ele questiona, mas ninguém parece ter a resposta certa. E existe alguma resposta cabível dentro da realidade de uma guerra civil?
Por isso, Jude Hill, o intérprete de Buddy, é a grande força do filme. Sua energia e ingenuidade nos transporta para o seu universo particular, um mundo em que ele sonha ser jogador de futebol, apaixona-se pela colega de classe na escola, gosta de jogar conversa fora com os avós e ir ao cinema para escapar da realidade preocupante. Acompanhamos suas travessuras e lembramos das nossas próprias brincadeiras infantis que, mesmo em contextos diferentes, provocam aquela ideia de que a infância é a melhor época de nossas vidas.
Em meio a tudo isso, Roma, de Alfonso Cuarón, vem à mente devido às semelhanças narrativas com Belfast. Assim como o filme de Branagh, Cuarón também revisitou sua infância no México para contar uma história pelo ponto de vista da empregada doméstica de uma família de classe média. Mas as “similaridades” param por aí. Se Roma consegue trazer uma abordagem interessante, em que Cuarón questiona seu passado e se aprofunda na forma como o contexto político, histórico e social impacta a vida de seus personagens, Belfast faz o oposto, mantendo-se confortável na superfície, como se aquelas memórias fossem preciosas demais para serem contestadas.
Como Buddy, precisamos nos contentar em ouvir as conversas fragmentadas por trás das portas. Mesmo que em determinados momentos haja abertura para um certo reconhecimento da externalidade, não há tempo para isso, o que gera incômodo e insatisfação. Sabemos da intensidade do conflito apenas através das figuras adultas, como Ma, a personagem de Caitriona Balfe (que entrega um ótimo trabalho, especialmente na dinâmica com Jude Hill). Ela é a personificação da força na família, mas também vemos suas preocupações e receios a respeito do futuro transparecerem em suas conversas com Pa. Afinal, como sair da zona de conforto de sua cidade natal e partir para uma estrada desconhecida, onde o familiar passaria a ser estranho?
Aqueles que ficam, aqueles que vão embora e aqueles que se perdem
Uma questão que premeia o filme diz respeito à necessidade de encarar um processo de migração. À medida que o personagem de Jamie Dornan tenta convencer Ma que deixar a Irlanda do Norte é a melhor maneira de manter a segurança de seus filhos, a mulher se mantém firme na ideia de que Belfast é a única coisa que ela conhece. Sendo assim, deixar tudo sem olhar para trás é uma tarefa extremamente dolorosa. É um sacrifício que ela tem medo de precisar cometer, porque aquela cidade é o seu lar, foram naquelas ruas que se apaixonou por Pa e onde criou seus filhos. Ir embora é quase como dizer adeus a quem ela é.
Deslocamentos territoriais sempre fizeram parte da história da humanidade, principalmente quando envolvem perseguições étnicas ou religiosas. Independente da intensidade da guerra em questão, muitas pessoas se veem diante de um dilema: ir embora e buscar uma vida melhor ou ficar e continuar no centro da zona de combate? Vemos isso constantemente nos noticiários, como a guerra que acontece na Síria ou o conflito entre Ucrânia e Rússia, que seguem colaborando para o aumento das taxas de movimentos migratórios no mundo (a partir de perspectivas diferentes, claro).
Novamente, Branagh não tem intenção de se aprofundar na temática, mas o fantasma do êxodo ainda reflete nas ações dos personagens. Para Buddy, a ideia de ir embora significa perder tudo aquilo que ele sempre sonhou. Num acesso de fúria, a recusa em sair do local onde nasceu é quase um reflexo do desejo interno das figuras mais velhas. Como partir se Belfast é o sangue que corre em suas próprias veias?
Em meio ao universo monocromático do diretor, conhecemos um pouco de sua infância, como se estivéssemos olhando para uma fotografia. É nesse mundo que ele homenageia suas raízes e aquilo que moldou suas aspirações ao longo da vida. Mas há a sensação inquietante de que não somos autorizados a participar disso. Branagh comanda sua semibiografia com aquele olhar melancólico que temos ao relembrar dos momentos importantes da infância, algo que merece ser guardado a sete chaves para não sofrer as influências do mundo externo. É exatamente essa cúpula de vidro em que o filme se encontra que o torna mais frágil e o transforma em uma miríade de memórias um tanto quanto desconexas e bruscamente interrompidas. São aqueles sussurros ao vento que Buddy escuta ou os olhares enigmáticos que não mostram os verdadeiros anseios da alma.
Em vista disso, o filme, que é embalado pelas canções de Van Morrison, está longe de deixar uma marca original na história do cinema (afinal, o que não está em falta em Hollywood são narrativas de memórias). Ainda assim, Kenneth Branagh tem em mãos um de seus trabalhos mais íntimos, demonstrando um olhar sentimental a respeito do passado e como as nossas vivências anteriores moldam a pessoa que nos tornamos no futuro. Seja apenas uma narrativa para fisgar o reconhecimento da Academia ou uma vontade de reviver sua infância, Belfast é uma carta de amor do diretor às suas origens.
Belfast está em cartaz nos cinemas brasileiros.
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