Crítica: Nicole Kidman brilha no meio da bagunça de Apresentando os Ricardos
Crítica: Nicole Kidman brilha no meio da bagunça de Apresentando os Ricardos
Atriz se destaca entre elenco excelente do confuso filme de Aaron Sorkin sobre o casal pioneiro da televisão
Durante a madrugada, Lucille Ball – aqui interpretada por Nicole Kidman – convoca seus colegas do elenco de I Love Lucy para o estúdio. A estrela de uma das maiores sitcoms da história da TV está no meio de um colapso nervoso, e após muitas discordâncias com os diretores e roteiristas, ela quer garantir que uma das cenas do episódio que será gravado seja o mais engraçada possível.
A atriz muda a posição das cadeiras, e explica toda uma lógica de comédia pastelão que, sim, é mais engraçada do que a versão imaginada pelo medíocre diretor. O momento soa como uma pequena vitória, e Apresentando os Ricardos nos deixa tão íntimos de Ball que é preciso admirar seu perfeccionismo não-ortodoxo. O problema é que, a essa altura do filme, a cena se torna só mais uma das várias crises que a trama levanta sem saber exatamente o que fazer com elas.
Ficha técnica
Título: Apresentando os Ricardos (Being the Ricardos)
Direção e roteiro: Aaron Sorkin
Data de lançamento: 21 de dezembro de 2021 (Brasil)
País de origem: Estados Unidos
Duração: 2h 12m
Sinopse: Casal que protagoniza a sitcom clássica I Love Lucy, Lucille Ball e Desi Arnaz enfrentam uma crise que poderá pôr fim às suas carreiras e outra que poderá pôr fim ao seu casamento.
Apresentando os Ricardos – literalmente
Já é difícil encontrar alguém que desmereça a televisão, ainda mais quando a mídia acabou de passar por uma era de ouro repleta de séries grandiosas, sensíveis e maduras por todo lado. Essa beleza toda não veio do berço, e sim foi conquistada através de uma intensa fase de puberdade em que a TV era vista como inferior, uma versão diluída do cinema e mais apelativa que o rádio, com obras medíocres para agradar o povão. Muita gente dedicou a vida a mudar essa percepção, e Lucille Ball foi uma das primeiras a mostrar o valor da telinha.
Lançada em 1951, na infância da televisão, a série I Love Lucy definiu o ritmo, o humor e a estética de todas as sitcoms até hoje, e encontrou um público gigantesco no caminho, com uma média de 15 milhões de espectadores semanalmente nos Estados Unidos. Lucille Ball vivia o ápice de sua popularidade – até que um escândalo envolvendo sua associação ao comunismo, e várias crises com seu marido/produtor/colega de elenco Desi Arnaz colocaram toda a sua fama em cheque.
O filme de Aaron Sorkin mergulha justo na semana em que todas essas bombas explodiram de uma vez. O terreno é fértil para o drama, mas o longa mostra o que acontece quando as várias ramificações das intrigas não são podadas e crescem para todos os lados. Apresentando os Ricardos se divide entre dramatização e cinebiografia, com direito a “entrevistas” com personalidades (falsas, interpretadas por atores) que enfrentaram o caos ao lado da atriz.
É uma obra dividida entre apresentar Lucille Ball e Desi Arnaz (aqui vivido por Javier Bardem), e explorar o impacto das várias contribuições do casal para a televisão. Isso significa que o filme, em dado momento pode mostrar como os dois se conheceram, mas a cena seguinte ser sobre uma negociação entre os atores e os rígidos executivos da emissora para tentar incorporar um arco de gravidez ao seriado – algo completamente impensável de ser mostrado na TV da década de 1950.
Essa dualidade parece partir de um conflito de abordagens de Aaron Sorkin, que também assina como roteirista. Ele não consegue decidir se o seu filme é uma introdução à atriz, ou se parte do princípio que a figura é conhecida o bastante pelo público para explorar um trecho turbulento de sua carreira e vida pessoal.
É uma pena que o cineasta tenha escolhido a abordagem mais desnecessariamente complexa, já que tinha as cartas na mão para criar algo ótimo independente do lado que decidisse seguir. O trecho que serve como ponto de partida, quando Lucille é denunciada como uma comunista no auge do Macarthismo estadunidense, é intrigante o bastante para render uma boa trama sem precisar de muitas alterações históricas.
Além de não saber focar nos aspectos mais interessantes da premissa, é curioso que Sorkin tenha optado por explorar essa semana maldita de um jeito tão confuso e melodramático, com direito até a um final feliz artificial seguido por letreiros indicando o que aconteceu em seguida. Mesmo que se limite a um pequeno momento da vida da atriz, há toda a estrutura de cinebiografia água-com-açúcar de uma boa obra de Sessão da Tarde.
É um filme que parece ter sido feito no piloto automático. Não há uma visão bem definida para a trama, e nem mesmo cuidado com a direção e a fotografia, funcionais ao extremo. Aaron Sorkin se consagrou como roteirista, com um currículo impressionante e um estilo único que moldou West Wing, The Newsroom, A Rede Social (2010) e muito mais. Já como diretor, ainda há um longo caminho a percorrer, e Apresentando os Ricardos é um passo para trás em relação ao seu último trabalho no posto, Os 7 de Chicago (2020).
Teste de elenco
Por baixo da condução pouco inspirada, há fagulhas de genialidade. Afinal, ainda que Aaron Sorkin não seja um diretor incrível, ele pelo menos é um ótimo roteirista, e seus característicos diálogos ácidos e afiados dão personalidade o bastante para que o longa se mantenha vivo e dinâmico até o fim. Mas, além do texto, o que salva o filme da mediocridade é o seu excelente elenco.
Nicole Kidman desaparece dentro de Lucille Ball, e entrega uma atuação marcante na pele da pioneira da televisão. A Lucy de Kidman pode não ser fiel à personalidade real, mas só porque sua personagem entende o peso do legado que deixará, e a importância do trabalho que precisa realizar. O filme constrói a protagonista como alguém que veio do nada, uma atriz de filmes B que só precisava de uma oportunidade para mostrar seus vários talentos, e que está disposta a brigar para manter tudo que conquistou.
Na frente das câmeras, ela mantém a figura que se tornou tão amada pelo público. Nos bastidores, batalha para torná-la mais inteligente, engraçada e menos infantilizada pelo marido ou pelo estúdio. A performance de Nicole Kidman é, sem dúvidas, maior que todo o restante da obra.
O excelente Javier Bardem não fica atrás, com um Desi Arnaz que transita entre o maior defensor dos interesses da esposa, e um mulherengo com uma vida secreta. O ator também brilha no papel, mas não entrega o mesmo nível de comprometimento que a colega de elenco, o que faz com que seja mais suscetível aos problemas de foco da produção. Nicole Kidman toma Lucy como sua, e a mantém consistente por toda a obra. Já Bardem faz uma performance louvável que é ofuscada pelo excesso de subtramas enfrentadas por Desi, como um caso de infidelidade, seus traumas do passado, seus atritos com a esposa, e seu ego frágil ao perceber que Lucy é maior que ele.
As atuações de Nicole Kidman e Javier Bardem já seriam dignas de nota em qualquer outra produção, mas aqui se destacam ainda mais dentre um elenco verdadeiramente de peso. J.K. Simmons mostra sua força para comédia como William Frawley, colega de elenco bêbado e ranzinza. Nina Arianda, que fecha o quarteto de I Love Lucy como Vivian Vance, também segura a barra ao mostrar a colega que já não aguenta mais ser alvo das piadas.
Mesmo a equipe dos “bastidores” é excelente, com Tony Hale (Arrested Development) como o estressado produtor-executivo Jess Oppenheimer, que passa a surtar com o caos ameaçando seu programa, e também pela dupla de roteiristas vividos por Jake Lacy (The Office) e Alia Shawkat (Search Party), cuja personagem Madelyn Pugh não tem medo de bater de frente com os atores ou produtores.
No fim das contas, Apresentando os Ricardos só funciona pelo elenco absurdamente bom. A tradicional escrita de Aaron Sorkin é o suficiente para segurar a atenção, mas bate de frente com uma obra de tom e abordagem inconsistentes.
Não é a toa que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas apenas indicou Nicole Kidman, Javier Bardem e J.K. Simmons ao Oscar. Em todo o resto – e em especial na direção – é um filme terrivelmente mediano e pouco inspirado. Talvez sirva bem como entretenimento de uma tarde parada, mas com certeza o legado de Lucille Ball é muito maior do que isso.
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