Crítica: A Jaula expõe os medos políticos de um Brasil sequestrado pelo extremismo
Crítica: A Jaula expõe os medos políticos de um Brasil sequestrado pelo extremismo
Novo filme nacional com Chay Suede e Alexandre Nero é uma das gratas surpresas do ano!
Na última quinta-feira (17), chegou aos cinemas brasileiros o filme A Jaula, remake nacional do argentino 4×4. O longa, dirigido por João Wainer e estrelado por Chay Suede e Alexandre Nero restringe seu horror em um espaço confinado: um ladrão tenta roubar um carro e acaba sendo preso por um médico sádico, que está decidido em sua missão de provar que “bandido bom é bandido morto”.
Cheio de momentos estressantes e com destaque para seu trabalho de som, o longa vem para surpreender, dando ao público um excelente suspense recheado com personagens muito complexos, que refletem o Brasil atual — sem contar as críticas sociais e a forte presença do horror político na trama. Nós já conferimos ao filme e você pode ler a crítica de A Jaula aqui!
Ficha Técnica
Título: A Jaula
Direção: João Wainer
Roteiro: Gastón Duprat, Mariano Cohn e João Cândido Zacharias
Data de lançamento: 17 de fevereiro de 2022 (Brasil)
País de origem: Brasil
Duração: 1h 23min
Sinopse: É só mais um carro de luxo sendo roubado numa rua de São Paulo… ou não. Um ladrão entra com facilidade no SUV estacionado numa rua pacata, mas, ao tentar sair, descobre que está preso em uma armadilha, incomunicável, sem água ou comida. Recai somente sobre ele a vingança que um famoso médico (Alexandre Nero) planejou depois de sofrer inúmeros assaltos.
A Jaula é o filme certo para o período errado da história
Um bandido entra em um carro, determinado a roubar o rádio. Após fazer o que precisa, ele tenta sair e se vê preso em uma armadilha brilhantemente arquitetada. As portas estão trancadas, o vidro é blindado e polarizado e o carro se mostra totalmente à prova de som. Pessoas vêm e vão, mas ele nunca sai do lugar e nem consegue pedir ajuda, até ser torturado física e psicologicamente por um médico renomado e autoproclamado “cidadão de bem”. Assim segue a trama de A Jaula.
O filme, dirigido por João Wainer, é um remake nacional do argentino 4×4, que fez muito burburinho quando foi lançado em 2019. A nova produção é estrelada por grandes nomes do cenário atual, como Alexandre Nero e Chay Suede. Caçador e caça. Predador e presa. Vilão e vítima? Em seus eletrizantes oitenta e três minutos de duração, o filme não se contenta em dar respostas simples e nem oferecer soluções fáceis para problemas complexos. Problemas aliás que definem o período instável que vivemos em nosso país.
Fosse produzido em qualquer outro momento da história, A Jaula teria contornos mais maniqueístas. Torceríamos para o médico, sem pestanejar. Seria quase um filme de vingança, exercida contra alguém que lhe fez mal. Porém, o que torna o suspense tão aterrorizante e brutal são os paralelos que se levantam com a realidade social e política do Brasil nos últimos anos, onde o extremismo político gerou filhos violentos, sádicos e sedentos por sangue. O que nos resta é um longa agridoce e que nos insere ainda mais na realidade em vez de nos conferir um prazer escapista.
E o que faz com que essa trama adquira contornos tão grotescos é a complexidade investida em seus personagens. De um lado, temos o bandido Djalma, que rouba para sobreviver em meio às margens e mazelas da sociedade, ainda assim encontrando uma certa diversão pervertida em destruir o patrimônio alheio. Do outro, o médico Henrique, um ginecologista bem apessoado, acometido por uma doença terminal e traumatizado pelas inúmeras situações de violência que já presenciou.
A humanização é a palavra-chave para entender os processos que se passam na cabeça dos dois, e nesse sentido, as atuações conseguem conferir um tom dolorosamente realista. Chay Suede começa com pose de marrento, sem ter um pingo de respeito ou arrependimento (e até o fim do filme, isso se conserva), mas aos poucos vai quebrando pela dor e pela tortura, enquanto teme perder sua família. Já Alexandre Nero faz milagres mesmo com vários diálogos excessivamente expositivos.
O doutor é cego por uma noção de vigilantismo, de fazer justiça com as próprias mãos. No fim, ambos são carrascos e vítimas em um sistema que explora essa desigualdade e a luta de classes. Até mesmo a cena em que Nero comenta as principais notícias de um jornal, por mais “na cara” que soe, insere o personagem em um contexto maior, em uma problemática que aflige não só indivíduos, mas todas as camadas de uma sociedade beligerante. Outra cena traz um linchamento público que atinge em cheio por remeter diretamente a um caso bem recente e tenebroso.
Não só um remake
Para tudo isso funcionar, uma equipe técnica precisava ser montada do jeito certo. A dupla composta por Mariano Cohn e Gastón Duprat (que haviam escrito o roteiro do original 4×4) assinam o texto-base do longa, que por sua vez é adaptado por João Cândido Zacharias. E aqui está a chave do sucesso: não apenas um remake traduzido em outro idioma, A Jaula realmente incorpora elementos próprios da cultura brasileira, fazendo com que o filme passe uma sensação inquietante de que poderia estar acontecendo nesse exato momento, em algum lugar daqui.
A direção de João Wainer é outro ponto fortíssimo – o que até surpreende, levando em conta que esse é o primeiro longa de ficção do cineasta. Ele se preocupa em explorar o terror do confinamento e as barbáries cometidas pelo Dr. Henrique, ao mesmo tempo em que consegue extrair de Suede uma interpretação física bem impressionante. Aliás, a construção de tensão e o crescendo que culmina no clímax também é primoroso, salvo por algumas sequências onde a trama parece estancar e se delongar por mais tempo que o necessário.
Porém, um dos maiores feitios do diretor está no trabalho de som, que consegue oferecer um áudio cristalino nos diálogos. Mais do que isso, o filme apresenta um uso espetacular de foley (sons produzidos em estúdio que emulam barulhos ambientes do próprio filme). Há um momento em que isso funciona muito bem, quando o personagem de Nero decide torturar sua vítima, ligando o ar-condicionado e deixando o carro congelado. Ao fundo, podemos ouvir um barulho de vento que soa quase glacial, criando uma conexão direta com o que Djalma está sentindo na pele.
Ainda que não seja tão sutil quanto, digamos, O Animal Cordial de Gabriela Amaral, o filme consegue traçar bem esse lado podre do “cidadão de bem”, ao mesmo tempo em que não exime seu protagonista de suas falhas. Em vez de ser um manifesto partidário, ele funciona melhor como uma análise da decadência moral e da barbárie a qual somos submetidos diariamente – e tudo isso é fortalecido pelas cenas em que vemos um noticiário policial, daqueles que todo mundo conhece, regado a sangue e violência.
Nessas sequências, observamos bem a espetacularização da brutalidade e a forma como consumimos medo, terror e morte no cotidiano, anestesiados por toda a falta de humanidade que está inserida nesse contexto. E se, no começo, essas cenas parecem ser só um acréscimo para “dar o contexto” da trama, perto do final elas ficam cruciais dentro da narrativa central, apostando em um clima que beira um reality show de depravação moral, no qual a morte ou vida de uma pessoa pode ser decidida por uma ligação de telefone.
No fim, A Jaula é um filme assustador, não só por ser muito bem-dirigido e interpretado, mas por retratar, ainda que de forma um tanto quanto expositiva, um país fragmentado onde classes mais baixas se atacam, enquanto a elite paira como um fantasma, se deleitando da desgraça alheia. Assisti-lo em ano de eleição se prova como um desafio, pois sabe-se deus o que nos aguardará até lá. Mas de um jeito ou de outro, é um suspense nacional imperdível que cutuca feridas que precisam ser abertas e devidamente tratadas.
A Jaula está em cartaz nos cinemas!
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