Como Pantera Negra se tornou um dos blockbusters mais importantes de Hollywood
Como Pantera Negra se tornou um dos blockbusters mais importantes de Hollywood
Longa revolucionou o jeito que Hollywood enxerga o protagonismo negro.
Em 2018, a Marvel Studios lançou um longa tão grandioso que fez história ao concorrer ao Oscar de Melhor Filme. O feito inédito para o cinema de heróis trouxe um impacto ainda maior fora das telas. Pretos e pretas por todo o mundo sentiram na pele uma sensação de pertencimento como nunca antes. Crianças puderam enfim sonhar com um herói que parecia com elas, com o rosto de Chadwick Boseman. Um marco cultural, símbolo de uma comunidade — este é Pantera Negra. Às vésperas da estreia de Wakanda Para Sempre, próximo capítulo dessa saga, vamos discutir como Ryan Coogler criou um dos blockbusters mais importantes de Hollywood.
Aprendendo com a história negra do cinema
Não é exagero algum afirmar que Pantera Negra conseguiu criar uma verdadeira revolução cultural e industrial, com um impacto social que pode ser sentido mesmo quatro anos após a sua estreia. Foi como se cada projeto da carreira do diretor Ryan Coogler tivesse lhe preparado para aquele momento. E assim, ele aproveitou cada minuto de tela para reconstruir um olhar mais positivo sobre a população negra, abalado após décadas de uma representação pejorativa no cinema.
Se hoje a indústria ainda sofre com diversidade, no passado, Hollywood nunca escondeu o seu problema com negros. Durante a era de ouro da indústria, o Código Hays limitava a presença de atores negros em papéis de destaque. Havia uma cláusula que proibia a apologia a miscigenação, crime na época, o que na prática impedia romances entre brancos e negros em cena. Em uma era em que o herói sempre conquistava a mocinha no final dos filmes, as oportunidades para atores racializados eram minúsculas e nem assim eles eram respeitados.
Um caso emblemático envolve um clássico do cinema, E o Vento Levou. A atriz negra Hattie McDaniel ganhou o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante em 1947 por seu papel no filme, mas sequer pôde comparecer à estreia. Na própria cerimônia de premiação, Hattie precisou ficar isolada do elenco, pois a Lei Jim Crow ainda estava em curso, impedindo brancos e negros de ocuparem os mesmos espaços nos Estados Unidos.
Nesse período, entre os anos 1920 e 1960, os piores estereótipos que perseguem personagens negros até hoje foram muito bem enraizados na indústria: os negros como alívio cômico, os negros vivendo em função do protagonista branco, os negros hipersexualidados. O espaço dos negros, no cinema, era o de objeto de cena. Mas com a queda do Código Hays, as coisas começaram a melhorar e no início da década de 70 surgiu um forte movimento de protagonismo negro: o blaxploitation.
Talvez você esteja se perguntando o que isso tem a ver com Pantera Negra, um filme de herói da Marvel recente demais para ter enfrentado tudo isso. A resposta não poderia ser mais simples, afinal, como parte crucial da história negra do cinema, o longa de Ryan Coogler é um reflexo direto de tudo que veio antes dele. E o seu sucesso vem exatamente por incorporar a mesma lógica do blaxploitation após quase uma década da mínima representação negra nos filmes da Marvel.
Depois de serem relegados à periferia da produção cultural, cineastas negros passaram a escrever novas histórias com as próprias mãos entre os anos 70 e 90. O blaxploitation trouxe filmes que não só contavam com um forte protagonismo negro como também uma cuidadosa reversão dos principais estereótipos nocivos que eram tão comuns na época. A negritude finalmente foi representada como uma coisa plural, diversa e isso resultou em histórias incríveis.
Na maioria delas, a vingança era um tema comum, como não podia deixar de ser depois de um período tão opressor. Outra grande mudança estava nas personagens femininas que protagonizaram muitos filmes de ação, antes reservados a homens. Elas tinham forte poder de decisão, como em Coffy: Em Busca de Vingança (1973), em direto contraste às fragilizadas mocinhas indefesas das décadas anteriores. E havia também um teor político sempre diluído, de forma pouco invasiva, para passar sua mensagem sem distrair o público que buscava apenas entretenimento.
Não é coincidência que estes exatos elementos formam a essência de Pantera Negra, quase 40 anos depois. A vingança define bem a motivação de Killmonger, interpretado por Michael B. Jordan. As principais cenas de ação são carregadas por mulheres, graças à forte presença das Dora Milaje como Okoye (Danai Gurira). E a mensagem contra o racismo permeia até os momentos mais suaves da trama.
Ryan Coogler procurou no movimento blaxploitation, na história negra do cinema, as respostas para as questões de diversidade racial do MCU. Depois de anos de construção de universo em que atores negros foram relegados a papéis pequenos e rasos — meros ajudantes nas histórias de protagonistas brancos como o Máquina de Combate em Homem de Ferro 3 e Falcão em Capitão América: Soldado Invernal — temos um filme em que atores negros dominam os maiores papéis disponíveis.
Protagonista, par romântico, rival, vilão, herói… Pantera Negra trouxe uma história realmente afrocentrada que não excluía ou alienava o público. Pelo contrário, convida todos a conhecerem essas pessoas tão diferentes que, por um acaso, tinham uma cor de pele mais escura. Por trazer um elenco negro tão amplo, o filme consegue explorar variadas personalidades sem cair em estereótipos, abrindo assim caminho para um futuro mais justo.
Hoje, é possível dizer que Pantera Negra marca um novo tempo para os atores e atrizes negros em Hollywood, que agora lideram cada vez mais filmes de grande orçamento. De certo modo, seu sucesso deu início a Era de Ouro do Cinema Preto.
A Era de Ouro do Cinema Preto
Em sua passagem pelos cinemas, Pantera Negra acumulou uma bilheteria de quase 1,4 bilhão de dólares — quebrando todos os recordes da própria Marvel Studios na época. Até hoje, o filme segue sendo a história solo mais rentável da empresa: atrás apenas grandes eventos como Vingadores: Guerra Infinita, Vingadores: Ultimato e Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa. E uma quantidade tão expressiva de dinheiro definitivamente chamou atenção da indústria cinematográfica.
O impacto do T’Challa de Chadwick Boseman abriu portas para uma nova era de heróis e heroínas negros. Houve uma forte mudança no jeito que os executivos dos grandes estúdios enxergam esses projetos. Se antes eram apenas um risco, agora são uma boa oportunidade de investimento. Assim, Angela Bassett, Michael B. Jordan, Lupita Nyong’o e outros nomes do elenco do filme se consagraram como verdadeiros ícones negros, emplacando novos papéis que inspiraram uma nova geração.
Desde a estreia de Pantera Negra, em fevereiro de 2018, a representatividade não-branca nas maiores bilheterias do cinema atingiu um novo patamar. De acordo com um estudo publicado em março deste ano pela Universidade da Carolina do Sul (USC Annenberg), a quantidade de protagonistas não-brancos dos últimos cinco anos (2018-2022) foi quase a mesma que os dez anos anteriores (2007 a 2017). Isto é, em média, a diversidade nos principais lançamentos de Hollywood basicamente dobrou neste período.
E isso também resultou em um movimento de resgate da história negra. Se antes a contribuição preta era apagada, agora esses momentos importantes ocupam os holofotes — saem de documentários cultos e caem no gosto das massas. Conquistado pela magia de Wakanda, o público está mais disposto a ouvir e a simpatizar com essas figuras históricas revolucionárias. Em especial aquelas que despertam curiosidade por sua ligação inusitada com o Rei de Wakanda.
A história real do Partido dos Panteras Negras, por exemplo, deu origem ao filme Judas e o Messias Negro (2021), depois de inspirar a criação do herói nos quadrinhos. O longa rendeu um Oscar de Melhor Ator Coadjuvante ao Daniel Kaluuya — o líder da tribo da fronteira W’Kabi no MCU — e reconta a luta por igualdade racial nos Estados Unidos. Já as guerreiras que deram origem às Dora Milaje foram lembradas em A Mulher-Rei, de Viola Davis, lançado este ano.
Cada novo filme é como um capítulo de um livro que vai aos poucos sendo reconstruído pelas maiores vozes negras da atualidade. Vozes que ecoam por todo o mundo. Um livro que não fala apenas de opressão e sofrimento, mas também conquista, vitória e orgulho — quebrando assim a antiga narrativa colonialista e colocando os negros como protagonistas de sua própria história.
Pretos no topo
E como protagonistas, viramos reis e rainhas em Pantera Negra. Depois de anos sub-representados, Ryan Coogler colocou bem grande, nas telas de cinemas de todo o mundo, pretos no topo da hierarquia de poder. Em um único filme, o diretor e roteirista deu o pontapé na jornada de reconstruir a autoestima e a identidade de um povo dividido e subestimado.
A missão nunca foi fácil — a princípio, Coogler teria uma única chance de representar todos os diferentes aspectos da cultura negra em apenas duas horas. Não havia garantia de uma segunda chance, afinal, isso só dependeria do sucesso do filme. Mas com um roteiro econômico e abrangente, a história conseguiu tocar em vários aspectos da identidade negra.
O enredo de Pantera Negra, enquanto entretém a todo o público, consegue também devolver o passado, presente e futuro que foi roubado de pessoas negras de uma maneira muito natural. Enquanto desenvolve um arco maior para seus personagens, que chama mais atenção, os detalhes da produção contam uma história por si só para quem realmente prestar atenção. História essa pensada para ressoar com toda a diáspora africana.
A começar pelas tribos de Wakanda que, isoladas do mundo externo, mantém seus cultos e rituais muito vivos, com direito a roupas e penteados bastante tradicionais de grupos étnicos africanos de verdade. E camuflados pelo véu da fantasia que o longa propõe, tudo isso é facilmente aceito pelo grande público. Ao mesmo tempo que traz um elemento exótico, diferente, que fascina o espectador comum, essas tribos resgatam nossos de religiosidade, ancestralidade e linguística que foram roubados do povo preto.
Afinal, brasileiros que descendem de europeus ou asiáticos conseguem listar a origem de seus antepassados sem muita dificuldade — portugueses, espanhóis, japoneses… Essa linhagem foi fruto de uma imigração voluntária e muito bem documentada. Mas esse direito ao passado foi roubado das pessoas pretas, que tiveram seus antepassados arrancados de diferentes partes do continente africano e resumidos como pretos, como as diferentes identidades étnicas da África fossem todas iguais. Como é difícil construir essa linhagem perdida, Wakanda oferece refúgio como alternativa. É um lugar onde todo preto pode chamar de lar.
Para quebrar de vez esse mito cruel de que “negro é tudo igual”, ainda presente na sociedade contemporânea, o roteiro lança mão de uma narrativa afrocentrada, isso é, com foco em um elenco diversificado de pessoas pretas. Essa escolha crucial para a obra trabalhou bem a individualidade que muito foi roubada da população negra, mostrando que podemos ser fortes ou inteligentes, guerreiros ou cientistas, tranquilos ou revolucionários.
Mas mais importante ainda é exatamente o cenário onde acontece a trama: Wakanda, uma nação hiper tecnológica no coração da África. A forte presença de tecnologia combate a ideia que associa descendentes de africanos a algo primitivo, ainda enraizados na África antiga. E tira também o foco do passado doloroso de escravização para refletir sobre um futuro onde pessoas pretas possam se ver inseridas.
Não é muito intuitivo em um primeiro momento, mas Pantera Negra tangencia a ficção científica, com suas naves voadoras e tecnologia milagrosa. E historicamente, salvo raras exceções, este foi um gênero que pensou o futuro excluindo pessoas pretas da equação. Você não vê pretos nos clássicos filmes de Star Wars ou nos livros de Ray Bradbury. E isso inspirou um contra-movimento que pensa um futuro, ou um presente alternativo, a partir da experiência negra — o afrofuturismo.
O termo não é novo, mas voltou com força após a estreia do filme. Validados pelo protagonismo em uma produção de altíssimo orçamento, negros voltaram a se ver em um futuro otimista, mesmo que no presente o Estado esteja tão determinado a nos matar. Seja aqui no Brasil, onde “casos isolados” acontecem quase semanalmente, ou nos Estados Unidos, onde a brutalidade com George Floyd parou o país.
E Pantera Negra oferece um lugar de escape de toda essa realidade cruel do presente. Um lugar absolutamente utópico em que pessoas negras têm seus direitos respeitados, não sofrem risco de morrer de maneira arbitrária, nem de serem ofendidos gratuitamente por sua identidade e ainda são valorizadas pelo que fazem. Esse é o poder de Wakanda, inventar uma terra sagrada que deveria existir. E ter crianças negras podendo sonhar com um lugar como esse não tem preço.
Além de despertar esperança de um futuro melhor nos pequenos, Wakanda também virou símbolo de um lugar comum para pessoas negras de todo o mundo. Em Wakanda, todos somos irmãos. Em seu acolhimento, a nação fictícia reacendeu um sentimento de pan-africanismo bem real, que é exatamente essa ideia de união de grupos negros de diferentes partes do mundo lutando por um bem-estar comum.
No filme, isso é bem representado pela visão do mundo de Nakia, que luta para que Wakanda compartilhe seu recursos com negros de todo o mundo. E de certo modo, esse desejo por pan-africanismo, em uma forma corrompida pelo extremismo, também está no cerne da motivação de Killmonger e W’Kabi. Apesar de seus métodos, a dupla quer apenas que pessoas pretas de todo o mundo possam se unir para acabar com sua opressão. Ao trazer esse argumento tanto do lado dos vilões quanto dos heróis, Coogler cerca o público com uma inevitável discussão racial que, apesar de necessária, não é sufocante.
O segredo foi colocar o embate clássico entre super-herói e super-vilão no centro do debate. Enquanto as ideias são trazidas nos diálogos, havia um embate real acontecendo para entreter o público. E mesmo sem perceber, a espinhosa questão de como lidar com racismo é posta em pauta em um filme da Marvel, tido pelos mais cultos como bobo.
Nessa luta, nenhum lado está completamente certo ou errado e isso fica bastante claro. O protecionismo de T’Challa é uma resposta precavida ao medo do genocídio causado por brancos ao longo da África. E as atitudes extremistas de N’Jadaka surgem como uma resposta de alguém traumatizado por ver de perto esse genocídio, que acontece até os dias de hoje nas periferias. Discutir política sobre a perspectiva negra, pensando nosso papel em comunidade, é mais valioso do que introduzir qualquer Joia do Infinito.
Mesmo na vitória, o Rei de Wakanda precisa mudar seu modo de encarar o mundo e aceitar que existiam pontos que não podiam ser ignorados na dialética de seu rival. E no fim, há um sentimento de que eles nunca foram adversários de verdade na história, apenas duas pessoas com ideias bem diferentes para solucionar o mesmo problema. A mensagem que fica é que negros não deveriam estar enfrentando negros, mas unindo forças para fazer do mundo um lugar mais justo.
Pantera Negra consegue encontrar espaço para passar todas as mensagens que o público negro aguardou décadas para ouvir em um filme de tamanha popularidade. O longa é representatividade feita do jeito certo, não de forma vazia e sem deixar de lado o mais importante, que é entregar um filme de altíssima qualidade.
E a luta de Ryan Coogler já deu resultados. Enquanto T’Challa foi o único protagonista negro da Saga do Infinito, a Saga do Multiverso já conta com o Capitão América de Sam Wilson, a Shuri em Pantera Negra 2, Riri Williams em Coração de Ferro, Monica Rambeau em As Marvels, Nick Fury em Invasão Secreta e Máquina de Combate em Armor Wars.
Com um novo universo de infinitas possibilidades, o Universo Cinematográfico da Marvel encontrou espaço para cada vez mais heróis negros surgirem, representando um povo que luta e que sorri, que consome e produz, que dita tendências e tem o seu jeito único. A caminhada apenas começou e Pantera Negra: Wakanda Para Sempre é o próximo passo dessa jornada. O que será que vem por aí?
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