Você sabia que o cinema quase teve cheiro? Conheça as tentativas de criar cheiro para filmes
Você sabia que o cinema quase teve cheiro? Conheça as tentativas de criar cheiro para filmes
Diversos cineastas tentaram – e falharam – em criar experiências mais imersivas ao longo de mais de um século
Por mais que os filmes tenham mudado drasticamente ao longo de mais de um século, é difícil imaginar outra experiência de assistir que não ir ao cinema, se sentar na platéia e curtir uma obra na telona. A tecnologia por trás da projeção e das telas até pode ter evoluído, mas o lado do público sempre manteve o mesmo.
Assim como em todas outras mídias, há alguns – tanto realizadores quanto espectadores – que sonham com maior nível de imersão, e com experiências mais interativas. Afinal, os filmes nos conquistam pela visão e pelo som, mas e quanto aos demais sentidos? Ao longo da história do cinema, há vários experimentos para tentar colocar o espectador dentro das obras – incluindo até mesmo projetar cheiros.
Se você visse um anúncio de “cinema com cheiro”, provavelmente pensaria que é alguma ideia moderna que definitivamente fará seu ingresso custar duas vezes mais, mas na real é um conceito quase tão velho quanto os próprios filmes.
Antes da invenção e adoção massiva da televisão, o cinema costumava ser um passeio de uma tarde inteira. Não só o público comprava ingresso para curtir múltiplos filmes de uma vez, como também o noticiário, com novidades da cidade ou mundo, eram exibidos nas telonas. É aí que surge o primeiro registro da tentativa de elevar a imersão com cheiros, logo em 1906, graças ao empresário S.L. Rothafel.
Conhecido também como Roxy, o administrador de dois cinemas de Nova York e um da Pensilvânia era conhecido por práticas excêntricas na exibição de filmes mudos. Seu feito mais notável se deu durante uma sessão de noticiário que mostrava o Desfile das Rosas de Pasadena, Califórnia. Roxy teve a brilhante ideia de pegar um perfume de rosas, borrifar em algodões e amarrá-los em grandes ventiladores, para difundir seu aroma na sala. A tentativa foi notável ao ponto de entrar na história, mas não lançou nenhum tipo de tendência – o que é, na verdade, um belo aviso de como essa prática sempre seria encarada nas décadas seguintes.
Vários experimentos do tipo foram replicados em cinemas norte-americanos no período pré-guerra. Um cinema de Los Angeles, por exemplo, liberou essência de laranja durante uma sessão do filme Gay Love em 1934, por conta de um número musical chamado “Orange Blossom Time”.
O problema é que tentativas do tipo aconteciam esporadicamente, e dependiam da boa vontade dos gerentes e administradores para funcionar. Mesmo uma tentativa de automatizar o processo, em uma patente de 1930 pelo inventor John H. Leavell, dependia de intervenção humana: a ideia era “atrelar” odores ao rolo de filme, com os cheiros ativados quando cenas específicas fossem puxadas ao projetor, mas mesmo isso precisava que o projetista supervisionasse e liberasse os cheiros na sala.
Vale lembrar que todas essas tentativas, e especialmente a disputa entre inventores para criar um sistema eficiente, aconteciam em um período em que filmes mudos eram a norma, e que filmes com som ainda estava se popularizando. Logo, cheiro era uma preocupação secundária no avanço tecnológico do cinema, mas isso não diminuiu o número de geringonças criadas (ou pelo menos imaginadas).
Criar filmes com odores se tornou um pouco mais urgente no pós-guerra, quando a televisão se popularizou e passou a ameaçar a dominação dos cinemas. Foi nessa correria que muitos dos problemas com a ideia se tornaram aparentes, em fracassos históricos. O mais memorável deles surgiu pelo inventor Charles Weiss, com o carismático nome de AromaRama (fale em voz alta, com sotaque de gringo).
A brilhante ideia de Charles Weiss – ou Chuck, para os mais íntimos – era uma máquina que injetava os odores no sistema de ar condicionado das salas. Sabe quando você encontra uma solução muito simples para um problema conhecido, e fala algo como “Nossa, como ninguém nunca pensou nisso”? Geralmente é porque é uma resposta ruim. Chuck descobriu isso em 1959 ao testar o AromaRama na exibição de Behind the Great Wall, documentário italiano sobre a China.
Em uma das primeiras cenas, é possível ver uma laranja sendo cortada, e um cheiro cítrico se difunde pela sala. A imagem da laranja some rapidamente, porém o cheiro fica no ar. Logo, outro cheiro é liberado na sala, e se mistura com o primeiro. E depois outro. E então mais um. Rapidamente o maravilhamento inicial se torna um pesadelo para suas narinas, e a experiência toda foi descrita por críticos da época como “caos olfativo”.
Esse foi o fim dessa ideia meio absurda? Não mesmo. Apenas um ano depois, o produtor Mike Todd Jr. decidiu trabalhar em cima dos erros de Charles Weiss, e criou um sistema chamado de Smell-O-Vision. Dessa vez, ao invés de soltar odores por toda a sala no ar condicionado, haveriam pequenos tubos de ar ligados em algumas cadeiras pelo cinema. Toda vez que um novo aroma fosse liberado, um neutralizador de cheiros seria lançado pouco depois. A novidade acompanhou uma sessão de Scent of Mystery, thriller de Jack Cardiff sobre o homicídio de um turista norte-americano na Espanha. A ideia do produtor era dar pistas da identidade do assassinato através de aromas em momentos específicos.
A execução foi sim um pouco melhor, mas ajudou a evidenciar outro dos problemas: o custo. Assim com nas últimas décadas as salas de cinema precisaram investir em tecnologia para exibir filmes 3D, era preciso converter salas para que funcionassem com o Smell-O-Vision, além de gastar uma grana na máquina para lançar os odores e também nas próprias essências. Portanto, Scent of Mystery teve sessões com cheiro em poucos cinemas de Nova York, Los Angeles e Chicago, todos nos Estados Unidos, e não teve nenhuma outra utilização desde então.
Sistemas automáticos eram caros e raramente funcionavam do jeito que deveriam, mas e se o público ativamente participasse no processo de sentir tais odores em certas cenas? Curiosamente, a ideia não surgiu da mente de nenhum inventor qualquer, mas sim de John Waters, o mestre do mau gosto. O cineasta cult, cujas obras frequentemente abraçam a breguice e escatologia, criou uma forma divertida de combinar olfato e cinema, que ficou conhecida como Odorama.
A ideia é simples o bastante. Ao comprar o ingresso para assistir Polyester, filme de Waters de 1981, os espectadores recebiam um cartão de papelão com vários símbolos. Esses símbolos então apareciam no canto da tela em determinados momentos, e o público então precisava raspar e cheirar o sinal correspondente no cartão, tipo uma raspadinha. Claro que Waters, sendo do jeito que é, utilizou o sistema para colocar cheiro de pé sujo, de peidos, de spray de gambá e outras nojeiras para embrulhar o estômago cheio de pipoca da platéia. A ideia foi feita na maldade, mas assim como toda a filmografia do diretor, o cineasta mirou na zoeira e acertou na genialidade.
O Odorama resolvia tudo que os demais sistemas erravam: os cheiros eram breves e aconteciam em cenas específicas, além de pedir a participação do público, o que tornava a brincadeira ainda mais imersiva. Tudo sem precisar infestar a sala de odores, e nem gastar grana na infraestrutura dos cinemas, já que transportar pequenos cartões de papelão é muito mais barato do que instalar um sistema de ar condicionado novo. E quem só quisesse curtir o filme, sem cheirar nada, podia simplesmente escolher não raspar o cartão.
Mesmo com os maiores empecilhos resolvidos, a ideia não foi para frente. Apenas um outro filme utilizou Odorama nos cinemas: a animação Os Rugrats e os Thornberrys vão Aprontar (2003), o encontro entre duas animações noventistas de sucesso da Nickelodeon. Provando que o conceito funcionava sem maiores dores de cabeça, rolaram até algumas sessões do tipo em cinemas brasileiros. Foi uma última tentativa de emplacar a prática em uma parte do público que com certeza é mais suscetível a esse tipo de coisa – e nem assim deu certo.
Talvez o público não esteja interessado em truques do tipo, ou talvez falte uma obra que realmente eleve o conceito para validar a existência da tendência, da mesma forma que Avatar (2009) aperfeiçoou e popularizou as tecnologias 3D e IMAX de uma vez por todas. Mas cinema com cheiro é uma ideia que simplesmente não vai morrer nunca.
Ainda em 2016, alguns cinemas em Nova York tiveram sessões “4DX” de Batman vs. Superman, que prometiam odores, vento e chuva, além de cadeiras balançando. Muitos sites relataram a experiência, mas os espectadores sequer falaram algo sobre – o que é ainda mais surpreendente considerando o quão vocal é o fandom de Zack Snyder.
É difícil imaginar que isso será o golpe fatal para essa ideia, então não se surpreenda se outro filme, cineasta ou rede de cinemas surgir prometendo mais imersão em salas com cheiro. O truque já é parte de uma tradição quase tão velha quanto o próprio cinema.
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