Acessibilidade nos games: Como os jogos podem ser mais inclusivos para pessoas com deficiência?

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Acessibilidade nos games: Como os jogos podem ser mais inclusivos para pessoas com deficiência?

Por Gabriel Mattos

Uma infinidade de universos fantásticos na palma das mãos transforma o mundo dos games em um verdadeiro paraíso. Porém, para pessoas com deficiência (pcd), esse acesso pode ser dificultado sem uma adaptação na experiência: a chamada acessibilidade. Nos últimos anos, os jogos têm ganhado cada vez mais recursos para incluir a todos os jogadores, mas ainda há muita coisa a ser feita.

Para entender melhor esses obstáculos, a Legião dos Heróis conversou com uma audiodescritora de jogos, Nicole Somera, que trabalha arduamente para aproximar cada vez mais as PcDs da comunidade gamer.

Escrito em colaboração com Luiza Caetano.

Uma questão de acesso

Menino negro com um braço jogando em controle adaptado

Hoje, a comunidade gamer não se limita apenas a quem joga. Games viraram o epicentro de uma cultura muito mais rica, que envolve streamers, jogadores profissionais de eSports, jornalistas, criadores de conteúdo e todos aqueles que acompanham essa cena. E uma quantidade considerável desse público possui algum tipo de deficiência.

No Brasil, cerca de 25 milhões de jogadores pertencem a esse grupo — seja por deficiência física, mental, intelectual ou sensorial. Essa estimativa vem da Ablegamers, uma organização internacional que luta para incluir cada vez mais pessoas com deficiência nesse meio virtual. E essa luta envolve também conhecer mais de perto como essas pessoas jogam.

Nicole, que conversou com a nossa redação, tem uma deficiência física que compromete seus membros inferiores. Mesmo que, a princípio, não pareça haver uma relação direta com sua habilidade de jogar a maioria dos games, sua vivência resultou em um desenvolvimento diferente, que moldou sua maneira de jogar.

“Como andei muito tarde, algumas coisas não foram muito treinadas em mim,” explica, “Meu tempo de reação não é muito bom, tenho enjoo de movimento. Algumas coisas em jogos me dão problemas. Jogos em primeira pessoa eu normalmente tenho que configurar bastante para não passar mal.”

Uma personagem feminina de roupa verde e máscara facial preta se esconde de um tiroteio.

Valorant, um jogo altamente competitivo de tiro, inclui opções satisfatórias de acessibilidade

Diminuir sensibilidade, o balanço de câmera, ajustar a resposta de botões — as opções são variadas na hora de adaptar uma experiência complicada para ser mais confortável a um jogador, respeitando suas limitações específicas. Esse é o grande poder dos recursos de acessibilidade. Apesar de serem ignorados por muitos, escondidos no fundo do menu de Opções, eles podem fazer toda a diferença para quem souber usar.

Mesmo pessoas sem deficiência têm muito a ganhar conhecendo melhor opções que atendam às suas necessidades. Em Fortnite, por exemplo, as marcações visuais de itens e inimigos, apontando a direção de qualquer mínimo ruído, não só ajudam aqueles com a audição comprometida como também são uma mão na roda nos cenários competitivos.

No caso de Valorant, a grande gama de ajustes fez com que Nicole pudesse aproveitar a experiência mesmo sendo um game em primeira pessoa. “Meus amigos me pediram muito para jogar, mesmo eu dizendo que passaria mal,” conta, “Quando eles sentaram comigo, configuraram muitas opções… Ele traz bastante opção para configuração.” 

Erros e acertos

Garoto acalmando uma aranha, que é simplificada como dois circulos com olhos

Para quem tem medo de aranhas, Grounded as transforma em formas menos asquerosas

O mesmo aconteceu com Sea of Thieves, lembra a jogadora, que dentre tantas opções, oferece até soluções para quem tem pânico de ficar submerso na água. Grounded também teve a preocupação de incluir recursos de acessibilidade, mas nem sempre suas boas intenções foram implementadas do jeito certo.

Este é um game focado na exploração de um jardim, visto pelo ponto de vista de uma criança reduzida ao tamanho de insetos. A opção de diminuir os traços aracnídeos de alguns inimigos, para permitir que pessoas com aracnofobia joguem sem desencadear pânico, foi muito elogiada. Entretanto, seu suporte para pessoas com deficiência visual deixa um pouco a desejar.

Desde o acesso antecipado, os desenvolvedores chegaram a implementar um leitor de tela opcional, que lê em voz alta os textos do título para quem não consegue ou tem dificuldade em enxergar. Entretanto, segundo Nicole, essa opção é limitada apenas aos menus do jogo e caixas de texto específicas do jogo.

Assim, ao interagir com um objeto, mesmo que houvesse uma descrição na tela, isso não era lido para o jogador. “Então é legal ter o leitor de tela, mas como um deficiente visual jogaria se in-game ele não sabe com o que está interagindo?,” questiona.

Jogador de fortnite escondido em uma casa com uma roda mostrando de onde vem efeitos sonoros

Fortnite oferece soluções visuais para efeitos sonoros, incluindo diferenciação de tipo e direção

Esse não é um problema exclusivo de Grounded. Junto com o surgimento de mais opções de acessibilidade, vieram também alguns recursos que não resolvem o problema de verdade, só disfarçam. “Muitas vezes vejo recursos implementados [de forma errônea] que faltam uma consultoria com uma pessoa que possui deficiência visual, que já daria um toque,” comenta. Quando uma equipe composta inteiramente por pessoas sem deficiência tenta encontrar uma solução para um problema que não entendem por completo, nem sempre o resultado é eficiente.

Para cortar custos desse lado, que não costuma ser a grande prioridade do desenvolvimento, muitas equipes acabam lançando mão de práticas que mais atrapalham que ajudam. Entre elas, um grande vilão da boa acessibilidade é testar os recursos de forma alternativa.

“O ideal é não fazer creep face, que é simular uma condição biológica que a pessoa não tem,” explica Nicole, “Como amarrar uma das mãos de alguém que possui as duas mãos e ver se a pessoa consegue jogar com uma mão só, vendar alguém que enxerga e ver se ela consegue jogar, cortar o áudio para uma pessoa que escuta e ver se ela consegue jogar.”

Mulher segurando uma arma tecnológica ativa barreira.

Games como Overwatch 2 contam com modo daltônico que também ajuda pessoas com visibilidade limitada.

O modo como pessoas com deficiência interagem com o mundo é diferente e fingir por alguns minutos nunca vai se aproximar da experiência real desse grupo, que pode comparar as experiências do jogo com a sua vida cotidiana convivendo com a deficiência. Essa é uma prática completamente falha que desconsidera o impacto da vivência de uma PcD nesses testes. “A parceria com PcD, a inserção dessas pessoas no mercado é imprescindível, porque são elas quem vão garantir se seu produto é mais ou menos acessível ou até inacessível,” pontua.

Esta é uma máxima que a própria Nicole aplica em sua rotina profissional. Ela trabalha com o processo de audiodescrição, falando em voz alta os detalhes de cada cena de um jogo ou evento relacionado. E sempre que está atuando profissionalmente, faz questão de incluir um consultor validador em audiodescrição no processo.

“Eu posso ser um guia na live de um amigo deficiente visual para que ele possa jogar um jogo que talvez não seja tão acessível? Posso. Mas como profissional, a minha audiodescrição só é tida como acessível após uma consultoria validada por uma pessoa com deficiência visual,” afirma, “Ela que vai dizer se seu trabalho é acessível ou não.”

Quem faz esse trabalho ao lado de Nicole é Sidney Andrade, um profissional com deficiência visual que foi seu mentor no curso de audiodescrição. A dupla trabalha não apenas na acessibilidade de jogos, como também de lives, grandes eventos como Summer Game Fest. “E o que recebi do público com deficiência visual foi isso ‘nunca pudemos acompanhar esse tipo de evento por não ter o recurso’,” relata.

O futuro da acessibilidade

Controle de Xbox com setas saindo de cada botão.

Mapear botões pode ajudar pessoas com mobilidade limitada

Em sua percepção, são exatamente as pessoas cegas, com nenhum ou baixíssimo resíduo visual, que mais sofrem com a ausência de uma acessibilidade efetiva nos jogos. Ao lado das pessoas surdas, que dominam a língua de sinais e não o português como primeira língua, esse é o grupo mais impactado pela natureza audiovisual dessa mídia.

“Claro que o mundo dos jogos é prioritariamente visual, desenvolvemos um jogo em torno do visual. Então pessoas cegas estão mais impedidas de acessarem games do que pessoas surdas,” reflete Nicole. Enquanto a surdez dificulta a performance, a cegueira pode impedir um jogador até mesmo de encontrar as configurações de acessibilidade.

Mesmo que tenham surgido muitos avanços na área nos últimos anos, existe uma urgência na implementação de mais recursos de acessibilidade voltados para a comunidade cega e surda, como leitores de tela e áudio 3D. “Basicamente [é preciso] pensar que, na hora do desenvolvimento do game, todo estímulo sonoro deve ser visual e vice e versa, precisam ser correspondentes,” sugere. Para que cada vez mais gente seja incluída, precisa haver um maior investimento na área, compatível com a importância desse grupo para o mercado.

“Eles não percebem a diferença que esse público faz no consumo,” aponta Nicole, “Uma pessoa com deficiência visual chegar a comprar um console, como um Playstation 5 que custa por volta de R$7 mil, não sei ao certo, simplesmente para jogar The Last Of Us Part I, que teve o remake com audiodescrição embutida no jogo, e a segunda parte, que revolucionou a indústria de games em acessibilidade.”

O valor estimado pode ser bem acima do atual, que orbita em torno de R$4500, mas se aproxima do preço de importação de um quadstick. Sem importação oficial no Brasil, este controle específico para ser jogado usando apenas a boca revela outra realidade lamentável que vivem as pessoas com deficiência física nos membros superiores: a inexistência de hardware dedicado em território nacional.

A principal forma de interação em qualquer console dedicado, do Nintendo Switch ao PlayStation, é o controle, que nem sempre atende as necessidades dos jogadores. O Xbox é pioneiro quando o assunto são controles adaptáveis, que podem ser modificados para diferentes necessidades, mas quando algo mais específico é necessário, os jogadores com deficiência física precisam recorrer a organizações como a supracitada Ablegamers. “Eles têm um trabalho muito forte de adaptação de controle para pessoas com deficiência física,” comenta Nicole.

Recentemente, a instituição de caridade realizou uma arrecadação coletiva de fundos para financiar a importação de novos controles. E quem quiser ajudar, basta ficar ligado nas redes sociais da organização, que realiza eventos e parcerias com certa frequência, sempre dando destaque para a importância da comunidade de jogadores PcD.

Há muito o que melhorar nas condições de acesso da comunidade PcD ao universo gamer, mas aos poucos novos passos são dados rumo a um mundo mais inclusivo. Até mesmo a maior feira de games da América Latina, a BGS 2022, se mostrou aliada na inclusão PcD, disponibilizando entrada gratuita para pessoas com deficiência em todos os dias do evento. Assim, aos poucos, vamos cultivando uma comunidade que funcione para todos e não apenas para alguns.

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